A Juristocracia como Mecanismo de Controle em Benefício do Globalismo

O Brasil não é mais uma democracia. Ele é uma Juristocracia e não chegamos nela por acaso, mas por meio de modificações institucionais presentes já em nossa Constituição desde suas origens. Ademais, ela é a expressão liberal do anseio brasileiro histórico por um poder decisionista soberano por cima do ordenamento. No caso nacional, porém, esse poder hoje serve apenas para garantir a aplicação dos ditados globalistas.

Texto apresentado no IIº Congresso Internacional de Geopolítica e Filosofia da Colômbia.

Aquilo que entendemos como globalismo, para que seja devidamente analisado e combatido, deve ser interpretado mais do que como uma palavra abstrata e genérica, com conteúdo difuso. Devemos tentar entender de forma específica como ele pode ser implementado em cada país e quais são os desenhos institucionais utilizados para garantir a sua implementação.

Para abordar esse tema, utilizaremos o caso do Brasil como exemplo. É nosso entendimento, hoje, que o Brasil não pode mais ser considerado uma democracia em sentido estrito, tendo o país se convertido paulatinamente em uma Juristocracia. E que essa transformação foi implementada para garantir que o Brasil se adeque aos processos globais.

Por democracia estamos nos referindo aqui, de forma bastante simples, ao tipo de regime caracterizado pela soberania popular encarnada em uma vontade que é expressa ou por aclamação ou, como costuma ser o caso, por voto. Essa democracia pode estar ou não estar vinculada ao liberalismo, que no âmbito político-jurídico é caracterizado pelo legalismo, pelo constitucionalismo, pelos direitos subjetivos individuais, pela separação de poderes entre outras características.

Quando pontuamos que o Brasil não é mais uma democracia estamos, portanto, simplesmente dizendo que o princípio da soberania popular não é mais o norte do sistema político. Mas essa suplantação da democracia não levou consigo o liberalismo, ao contrário. É nosso entendimento de que o liberalismo se “desacoplou” do princípio democrático e encontrou seu suporte institucional no Judiciário, e a isso chamamos de Juristocracia.

No caso brasileiro específico, para compreendermos o processo, é necessário ter noção, sem aprofundarmos pelas limitações de tempo e espaço não permitirem, de certos aspectos importantes do desenho institucional histórico do Brasil, mais especificamente do Poder Moderador.

O Poder Moderador era parte do desenho institucional projetado pelo filósofo francês Benjamin Constant, a sua função sendo moderar e arbitrar entre os outros poderes do Estado. O sistema institucional de Constant foi implementado no Brasil, entre outros lugares, e no Brasil ele era encarnado pelo Imperador, que harmonizava o sistema através de sua supervisão das atividades dos outros poderes.

Mas o Imperador não utilizava esse Poder Moderador sozinho, dispondo de um Conselho de Estado de 10 homens de “notável saber jurídico” selecionados por ele próprio. Com o Imperador, compunham um conselho de 11 homens, onde o Imperador tinha o voto de Minerva.

O Poder Moderador é extinto com a Proclamação da República, mas no discurso político brasileiro nunca se deixou de fazer referência ao Poder Moderador. Dito de outra forma, conscientemente ou não, sempre houve um certo senso de inadequação no Brasil quanto à “doutrina da separação dos três poderes” de Montesquieu. Diante disso, a prerrogativa de “Poder Moderador” foi reivindicada ou, pelo menos, aludida ainda que metaforicamente mesmo após o fim do período monárquico.

No projeto de Constituição de 1933, durante o governo de Getúlio Vargas, por exemplo, foi proposto o resgate do Poder Moderador como ferramenta política para controlar as oligarquias regionais que utilizaram a democracia liberal para controlar o Brasil do fim do Império até 1930. De fato, diferentes intelectuais do período apresentaram projetos de restauração do Poder Moderador, de homens como o general Góis Monteiro que pretendiam concentrar o Poder Moderador em um Conselho de Segurança Nacional com capacidade de declarar estado de sítio e estado de guerra, até juristas liberais como João Mangabeira, que defendia a elevação do papel do Supremo Tribunal Federal ao papel de árbitro entre os poderes, seguindo o modelo normativista kelseniano que já estava em vigor na Áustria e na Tchecoslováquia. Já nessa época, os nacionalistas criticavam o projeto de atribuir à suprema corte essa função na crença de que isso implementaria a ditadura do Judiciário.

O que vigorou na prática, em 1937 com a implantação do Estado Novo foi a atribuição do Poder Moderador ao presidente, que era também o Executivo. O fim do Estado Novo, porém, não extinguiu a disputa pela legitimação da necessidade de que algum órgão ou instituição se sobrepusesse aos três poderes clássicos da democracia liberal.

Inaugurou-se uma era na qual, principalmente, as Forças Armadas e o Judiciário passaram a disputar essa prerrogativa. As argumentações utilizadas por ambos os lados vão em direções contrapostas, com os apologistas do Poder Moderador militar se apoiando no fato de que a principal função desse Poder seria preservar a integridade territorial e a segurança nacional em situações de grande crise e que, portanto, só os militares poderiam exercer este poder. A argumentação da outra facção se apoiava em argumentos normativistas autorreferenciais inspirados no positivismo de Hans Kelsen, em que a Constituição ocupa o ápice do ordenamento jurídico e que, portanto, todas as decisões administrativas e mesmo atos legislativos democráticos deveriam estar sujeitos a revisão constitucional, exercida pelo Supremo Tribunal Federal.

O golpe militar de 1964 teve, entre suas justificações jurídicas a posteriori precisamente a legitimidade das Forças Armadas intervirem em períodos de crise e instabilidade que ameaçassem a integridade nacional. À época, manifestações de classe mídia organizadas a partir de instituições não governamentais e jornais apoiados por fundações estadunidenses, tudo em coordenação com a embaixada dos EUA, serviram como o gatilho para “convocar” os militares a “salvarem o Brasil do comunismo”.

Se o período militar representou um período de exceção em que os militares exerceram o Poder Moderador, a redemocratização, apesar de se pretender como implementação de um regime liberal-democrata típico, plantou as sementes da supremacia do Judiciário já em sua Constituição.

Isso é perceptível na concentração de poderes no Supremo Tribunal Federal, fruto da influência neoconstitucionalista que, nessa altura, se espalhava globalmente. No novo ordenamento jurídico brasileiro, o Supremo Tribunal Federal é, simultaneamente, última instância e corte constitucional, além de supervisionar o processo eleitoral (através do TSE, cujo presidente é sempre o presidente do STF) e julgar os ocupantes de alguns cargos políticos em ações penais. Segundo a maioria dos juristas, essas atribuições, em outros países, estão distribuídas entre pelo menos 2 órgãos, em alguns casos mais.

Agora, precisamos atentar para vários elementos que se dão simultaneamente na Sexta República Brasileira e que possui repercussão institucional.

A classe jurídica brasileira é educada, desde as universidades, a acreditar que o Judiciário é o poder dotado de maior credibilidade e respeitabilidade em comparação com o Executivo e o Legislativo, com a justificativa de que estes dois poderes seriam mais “corruptos” e menos “competentes”. Nesse sentido, na educação dos operadores do Direito já existe uma ideologia tecnocrática, que despreza os Poderes mais estreitamente ligados à vontade popular soberana e que singulariza o Judiciário como meritocrático e menos corruptível.

Em paralelo, como importação ideológica dos Estados Unidos, desenvolve-se no Brasil uma filosofia de “ativismo judiciário”, pela qual o Judiciário, precisamente por sua natureza diferenciada, teria uma responsabilidade missionária de defesa do chamado “Estado Democrático de Direito” que, apesar do nome, possui como núcleo a ideologia dos direitos humanos e, de modo mais geral, o liberalismo político-jurídico.

Essa importação do ativismo judiciário pelo Judiciário brasileiro tem se dado, de modo geral, por meio de intercâmbios acadêmicos, além de seminários e cursos oferecidos pelo Departamento de Justiça dos EUA.

Essa engenharia social repercutiu em mais mudanças, a mais notável sendo a súmula vinculante, um mecanismo de uniformização de decisões judiciais que serve para submeter os outros juízes inferiores às interpretações do STF. Essa inovação representou a penetração de mais elementos da tradição jurídica anglo-saxã, centralizada na supremacia dos precedentes, no ordenamento jurídico brasileiro que possui suas raízes históricas na tradição continental europeia, ou seja, na tradição romano-germânica.

Agora, compondo todos esses elementos em um cenário: a súmula vinculante aumentou os poderes do STF já que, a partir de então, tornou-se possível para eles impor a sua hermenêutica constitucional a todos os tribunais inferiores do país. Mas essa hermenêutica constitucional é guiada, precisamente, pela ideologia dos direitos humanos, considerada o núcleo do chamado “Estado Democrático de Direito”, de modo que se evidencia, assim, o papel do Judiciário e, especialmente, de sua cúpula na subjugação do Brasil aos valores alienígenas e cosmopolitas do globalismo que se expressa e difunde por meio das instituições internacionais. E essa transformação do Judiciário brasileiro se deu, em boa medida, teleguiada a partir dos EUA.

Tomemos como exemplo prático disso a famosa Operação Lava-Jato, conduzida pelo juiz Sergio Moro e pelo Ministério Público Federal. Todos os principais envolvidos foram treinados em “combate à corrupção” pelo Departamento de Justiça dos EUA e atuaram em conjunto e com troca de inteligência com seus parceiros estadunidenses, inclusive, aplicaram legislação estrangeira ilegalmente em nosso país, o Foreign Corrupt Practices Act.

Isso permitiu ao Judiciário brasileiro cometer várias ilegalidades, como buscas e apreensões sem indícios prévios para colher evidências, chamado no Direito de “fishing expedition”, a técnica da delação premiada e outras, tudo com amplo apoio midiático.

É de se recordar que o resultado da Operação Lava Jato foi a destruição de várias empresas brasileiras importantes, como a Odebrecht, além de imenso enfraquecimento e descredibilização da Petrobrás, empresa estratégica de importância continental, o que inclusive facilitou a fragmentação da empresa e a privatização de várias subsidiárias sob aplauso público. Não podemos deixar de mencionar, também, que durante a Operação Lava Jato foi condenado a quase 40 anos de prisão o engenheiro Almirante Othon, pai do Programa Nuclear Brasileiro, através do esquema de delação premiada, por meio do qual um empresário preso trocou sua liberdade por uma acusação sem provas contra o Almirante. O Programa Nuclear Brasileiro tem sido alvo dos EUA desde o período militar, importante ressaltar.

Ao longo de todo esse período, os militares, completamente retraídos da vida pública, preparou o caminho para retornar à vida pública brasileira, ainda, em muitos casos, insistindo na filosofia do Poder Moderador como atribuição natural das Forças Armadas. Mas sem a densa fundamentação nacionalista de décadas anteriores, agora com um discurso pautado em questões puramente morais, neopositivistas, de combate à corrupção e alinhamento com os EUA “contra o comunismo”.

O impeachment de Dilma e a prisão de Lula podem ser vistos como momentos nos quais tanto o STF como os militares atuaram em conjunto, na culminação de um longo processo de guerra híbrida, para retirar do caminho forças que apesar de liberais retardavam e suavizavam as reformas liberais radicais exigidas pela Banca internacional. Nesse momento, merece destaque a decisão por meio da qual o STF impediu Dilma de nomear Lula para ministro de seu governo, decisão completamente ilegal e que o governo de Dilma poderia ter desobedecido caso fosse mais firme.

Sem pretensão de nos estendermos em relação ao processo eleitoral brasileiro desse ano, mas para conseguirmos chegar às conclusões necessárias. Em 2022, vimos claramente a disputa entre um Bolsonaro como representante da agropecuária, das polícias, dos militares, da pequena classe média e de alguns setores populares, especialmente os mais religiosos e das regiões sul e sudeste contra Lula como representante do setor financeiro, dos artistas, da classe média urbana cosmopolita e de setores populares da região nordeste. Mas Lula teve, também, apoio do STF ao longo de todo o processo.

Durante a disputa eleitoral isso ficou evidente. O STF aproveitou a polarização para acusar o campo bolsonarista de difundir fake News e, por isso, se colocou como Ministério da Verdade através do TSE. O TSE, sem respaldo legal, aprovou para o seu presidente, Alexandre de Moraes, poderes extraordinários que lhe permitiam impor censura de qualquer mídia de forma liminar e sem contraditório, em casos de difusão de desinformação. O papel de decidir o que era desinformação ou seja, de decidir sobre a verdade, foi usurpado sem oposição. Embasando decisões judiciais do TSE e de outros juízes inferiores alinhados, não raro postagens em redes sociais de contas de “fact-checking” sem qualquer tipo de legitimidade, credibilidade ou mesmo publicidade, já que essas agências de checagem de informações usualmente operam com anonimato.

Os poderes extraordinários de Alexandre de Moraes durariam até o final das eleições, mas eles permanecem em vigor. Diante de incontáveis arbitrariedades surgiram diversos pedidos de impeachment contra Alexandre de Moraes e, em resposta, o STF e seus aliados estudam dificultar a possibilidade de impichar os ministros do tribunal.

Em outras palavras, para além da concentração de poderes e da posse de poderes em estado de exceção, a cúpula do Judiciário pretende reduzir as hipóteses de deposição legal de seus membros.
Em termos schmittianos, portanto, o Brasil não pode ser considerado uma democracia no sentido tradicional. Na contradição entre democracia e liberalismo, tornada evidente na era do populismo, o Judiciário apareceu no Brasil como melhor ferramenta para garantir a implementação do liberalismo em sua fase pós-moderna através da institucionalização de uma Tecnocracia guiada pela ideologia dos direitos humanos.

É a isso que chamamos de Juristocracia, fenômeno que parece despontar como tendência em várias partes do mundo mas que, no Brasil, parece estar em estágio avançado.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 48

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