Analisando a Nova Estratégia de Segurança Nacional dos EUA

Biden lançou nessa última semana sua Estratégia de Segurança Nacional, que passou despercebida pela grande mídia. Nos cabe uma rápida observação sobre seu conteúdo.

O que fica claro de primeira é a reafirmação do hegemonismo unipolar. O documento diz: “Em todo o mundo a necessidade de liderança estadunidense é maior do que nunca”. O documento deixa claro que essa liderança estadunidense se baseará, especificamente, em valores. A ideia é não permitir que o futuro seja moldado por forças que não compartilhem os valores estadunidenses.

Há um aspecto dual no documento. A hegemonia unipolar é enfatizada, mas essa hegemonia se apoia em uma cooperação global, cujo consenso parece garantido por uma rede atlântica de alianças (OTAN+AUKUS).

Como comentei em outras ocasiões, o governo estadunidense situa a contradição em um grande confronto entre democracias e autocracias. Segundo o documento de Biden, China e Rússia querem moldar a nova ordem, elas e outras autocracias pretendem “exportar seu modelo” baseado em repressão. E é o papel dos EUA impedir.

Novamente: um documento de segurança nacional do Brasil conteria uma série de considerações sobre riscos internos (crime organizado, separatismo, etc.) além de considerações sobre possíveis controvérsias com nossos vizinhos, sobre o Atlântico Sul e, talvez, algo relativo ao Caribe e Antártida. A estratégia de segurança nacional de Biden é um documento de escopo mundial.

Proteger os interesses americanos exige do governo dos EUA uma atuação em todos os continentes e oceanos, pautada na difusão dos valores democráticos e do American Way of Life. Nacionalismo e populismo são apontados como marcas dos “inimigos”, que à liderança estadunidense oferecem uma “visão mais sombria” de futuro.

Outro ponto interessante: o documento expressa uma visão arco-íris dos EUA. Descreve-se um país em crescimento econômico vertiginoso, dinâmico, vigoroso, jovem, seus rivais estariam “cheios de problemas” insolúveis. O documento apela a um típico orientalismo racista culpabilizando uma suposta natureza “engessada” das “autocracias personalistas” como uma desvantagem dos rivais dos EUA. O documento nega explicitamente que os EUA estejam passando por um declínio. Mas só precisa negar decadência nas primeiras páginas de um documento como esse quem está, de fato, em decadência.

Segundo o documento, os EUA defendem a autonomia de cada Estado trilhar seu caminho, enquanto Rússia e China teriam a pretensão de “universalizar seu modelo iliberal”. O documento, porém, entra em contradição. Ele insiste no papel dos EUA em exportar “a democracia” (porque ela seria “superior”) e diz que cabe aos EUA “moldar o ambiente externo” de Rússia e China para “convencê-los” a trilhar o caminho “correto”. Tradução: pressionar parceiros dos dois países para que sancionem ou condenem Rússia e China na tentativa de isolá-los até a rendição.

Simultaneamente, a crise pandêmica (que, profetiza Biden, voltará) e a crise climática exigem integração global. Países como Rússia, China e outras autocracias apenas atrapalham e dificultam o processo. A Rússia, especificamente, é acusada de usar a energia como arma. Nenhuma palavra sobre as sanções. A solução de Biden: transição “verde” independentemente das consequências.

O documento lista as autocracias mais “ameaçadoras”, em ordem: China, Rússia, Irã e Coreia do Norte.

Reitera-se o papel dos EUA e seus aliados na exportação dos “direitos humanos”, com base na crendice kantiana da paz perpétua, que só poderá ser alcançada quando todos os países do mundo se submeterem aos “valores verdadeiros” sustentados pelos EUA. Acrescenta-se diatribes sobre cooperação para o “combate à desinformação”, ou seja, censura.

Os EUA, aliás, defendem a redução no risco nuclear global. O plano é: impedir a proliferação de armas nucleares para os países que ainda não as têm, convencer os países que as possuem a irem reduzindo seus arsenais. Os EUA? Ora, os EUA se desarmarão por último, claro.

Ao que nos concerne: A primeira referência a nós é preocupante, ainda que indireta: o hemisfério ocidental é designado como região que impacta os EUA mais do que qualquer outra, logo, será prioridade na “segurança nacional” dos EUA. Um outro artifício preocupante, é que “nós” não temos nome. Não somos a “América Latina”, somos, simplesmente, “as Américas”, postos de forma “natural” na esfera dos EUA. É aqui, nessa região, que os EUA pretendem promover a “democracia” e os “direitos humanos” mais vigorosamente, inclusive interferindo em forças policiais e nos judiciários. Isso é dito no documento.

Nesse projeto, a Amazônia está inserida na Agenda 2030 e no projeto de transição energética. Tudo alinhado com as declarações da comandante estadunidense do SOUTHCOM, que afirmou que a Amazônia é parte da estratégia de segurança nacional dos EUA.

O documento possui ainda muitos outros detalhe, mas temos aqui um bom panorama dos delírios perigosos e tirânicos de uma talassocracia decadente. Torço para que Rússia e China esmaguem esse “futuro” doentio em que nós, ibero-americanos, não teremos voz.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

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