Quando liberais toleram a violência política

As reações de comemoração ao ataque contra Dugin e sua filha expõem que apesar do seu conceito de neutralidade, os liberais têm mais tolerância por algumas formas de violência política do que outras.

O esfaqueamento de Salman Rushdie por um muçulmano fanático, em 12 de agosto, lembrou o mundo de que, apesar de parecer o contrário, intelectuais não estão imunes das consequências de suas ideias sobre política e religião. Uma sociedade livre como a que temos entende isso, porém, deseja anular o risco mortal, acreditando que ninguém deve ser atacado ou morto por conceitos que são essencialmente contestados.

Esse ideal de sociedade livre é difícil de manter. A dificuldade está no coração do problema político em uma democracia liberal. Uma forma de se proteger contra pensamentos perigosos é não mais permiti-los, cerceando a liberdade que tal sociedade deveria defender. Isso é como apagar o fogo da facção por cortar o oxigênio da liberdade e se sufocar, como os Fundadores sabiam. Mas permitir pensamentos não heterodoxos e então puni-los por heterodoxia dificilmente é uma boa solução.

O que deve ser feito? Se, por exemplo, você acredita que crianças não deveriam transicionar sem uma permissão dos pais antes de uma certa idade e alguém argumenta o contrário, sua disputa não é apenas sobre ideias abstratas. É sobre famílias reais, vidas de crianças reais e o bem-estar real da sociedade. Há algo real em jogo. Ideias permeiam o mundo de carne e osso, através da lei e outros meios. Como lhe damos seu direito? No caso de Rushdie, não deveria uma sociedade livre ser unânime em afirmar que não há justificativa para a tentativa de assassinato de um escritor?

E quanto ao caso terrível do infame pensador russo Alexander Dugin, chamado de “Cérebro do Putin” pela Foreign Affairs pela sua influência ideológica na formação do projeto de um novo imperialismo russo? No sábado, houve um ataque aparente contra ele em Moscou, que levou à morte sua filha, Darya, uma comentarista social e política. Enquanto ambos participavam de um festival “tradicional” de música e literatura, alguém implantou uma bomba em seu carro. Alexander pegou um veículo diferente ao sair do festival. Darya dirigiu seu carro. Parece que ele era a vítima pretendida; seus inimigos estão contentes que ao menos um deles está morto.

Ambos pai e filha são lideranças proponentes de uma teoria política que é anti-liberal, anti-comunista, anti-fascista, anti-globalista, anti-atlantista, anti-woke, pró-eurasiana, pró-multipolar, pró-tradicionalista, pró-russa. Ambos falaram em favor da guerra da Rússia contra a Ucrânia como parte de um grande confronto de civilizações, ideologias e forças geopolíticas. Alexander era particularmente inflexível durante as hostilidades de 2014, insistindo que Putin deveria fazer mais para punir o regime ucraniano anti-russo lutando pelo estabelecimento da Novorussia ao leste. Em sua visão, uma Ucrânia ocidentalizada que se junta à OTAN representa uma ameaça existencial para a civilização russa. Em um discurso de 2021, Putin comparou o perigo com o uso de armas de destruição em massa contra a Rússia.

“Muitas pessoas sugeriram que Dugin teve o que mereceu.”

Os ucranianos pró-ocidentais que lutavam pela independência nacional tinham, portanto, razões para não gostar das ideias dos Dugins. Assim como os russos anti-eurasianismo que defendiam outra visão de futuro da Rússia. Não é surpresa, então, que o assassinato dela e a quase morte dele foram celebrados online como um destino bem vindo de fascistas neo-nazistas. “Ele que semeia vento, colherá tempestades,” tuitou Julia Ioffe. Várias pessoas sugeriram que Dugin teve o que mereceu, assim como você poderia encontrar vozes enlouquecidas elogiando o ataque a Rushdie, o infiel, ao lado de um silêncio assustador de alguns que, ao não denunciar o ataque, quase pareciam tolerá-lo.

Esses dois casos levantam questões difíceis para os intelectuais ocidentais. As potências ocidentais se alinharam à Ucrânia contra a Rússia em resposta à invasão de Putin. A Ucrânia representa liberdade e democracia; a Rússia, autoritarismo e repressão. Zelensky é um herói; Putin, o diabo. O significado desse alinhamento geopolítico no plano intelectual é que comentaristas que compartilham qualquer parte da posição “russa” ou se opõe a qualquer parte da posição “ucraniana” ou “ocidental” são tratados como praticamente traidores, para não dizer como satânicos. Quase tudo vale para calá-los. Pesado na balança da justiça, nada se compara ao crime de apoiar o novo Hitler.

Rushdie é um caso um pouco diferente. Ele ao menos defende um princípio liberal de liberdade de expressão, apesar de problemático. Mas mesmo nesse caso a possibilidade de violência poderia ser minimizada ou até mesmo aceita. Por insultar o islã, ele violou o imperativo liberal da inclusão. Ameaças contra sua vida, como as contra a de Dugin, poderiam ser aceitas muito mais prontamente do que ameaças contra a vida de qualquer intelectual impecavelmente progressista. Apesar do conceito de neutralidade liberal, os liberais têm mais tolerância por algumas formas de violência política do que outras.

Alexander e Darya Dugin têm uma visão de ordem mundial. É impossível pensar em política e não se inclinar para uma visão ou outra, seja nacionalismo, internacionalismo, imperialismo, anarquismo, republicanismo, ou o que queira. Essas visões têm consequências quando são concretizadas. Mas devemos resistir de qualquer forma a aceitar, justificar, desculpar ou celebrar a violência física contra pensadores de quem discordamos, por mais visceral que seja. O mundo está obscurecendo. Assassinar intelectuais não traz luz. Nem mesmo mata suas ideias.

Fonte: Compact

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Michael Millerman

Bacharel em filosofia e doutor em ciência política, é profundo estudioso da filosofia de Leo Strauss, Martin Heidegger e Alexander Dugin.

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