Porque a intervenção russa na Ucrânia é legal segundo o direito internacional

A incursão russa na Ucrânia é mais justificada pelo “direito à proteção” que qualquer intervenção ocidental no passado.

Por Daniel Kovalik

Por muitos anos, tenho estudado e refletido bastante sobre a carta da ONU de proibição da guerra agressiva. Ninguém pode seriamente duvidar de que o propósito principal do documento – redigido e acordado no contexto dos horrores da Segunda Guerra Mundial – era e é prevenir a guerra e “manter a paz e a segurança internacionais”, uma frase repetida enfaticamente.

Assim como os juízes em Nuremberg acertadamente concluíram, “iniciar uma guerra agressiva” é não apenas um crime internacional, mas é o crime internacional supremo, que difere dos outros crimes de guerra apenas por conter dentro de si o mal em sua totalidade. Isto é, a guerra é o crime primordial, pois todo o mal que abominamos – genocídio, crimes contra a humanidade, etc. – são os frutos terríveis da árvore da guerra.

A partir do supracitado, eu passei toda minha vida adulta me opondo à guerra e à intervenção estrangeira. Claro, sendo um americano, tive toda a ocasião para fazê-lo, dado que os Estados Unidos são, como Martin Luther King coloca, “o maior promotor da violência no mundo.” Analogamente, Jimmy Carter disse que os Estados Unidos são “a mais bélica nação na história do mundo.” Isso é comprovadamente verdadeiro, é claro. Somente no meu tempo de vida, os EUA empreenderam guerras agressivas e não-provocadas contra países como Vietnã, Granada, Panamá, a antiga Iugoslávia, Iraque (duas vezes), Afeganistão, Líbia e Somália. E isto sem contar as numerosas proxy wars que os Estados Unidos lutaram através de fantoches (por exemplo, através dos Contras na Nicarágua, dos vários grupos jihadistas na Síria, e através da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos na corrente guerra no Iêmen).

Sem dúvida, por tais guerras, os Estados Unidos têm feito intencionalmente mais do que qualquer outra nação na terra para desmantelar os pilares legais proibindo a guerra. Foi em reação a isso, e com o explícito desejo de tentar salvar o que restou da carta da ONU de proibição à guerra agressiva, que algumas nações, incluindo Rússia e China, fundaram o Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU.

Em tempo, os Estados Unidos, denunciando a invasão russa da Ucrânia como uma violação da lei internacional são, no máximo, os sujos falando dos mal lavados. Ainda assim, o fato de os EUA serem claramente hipócritas nessa afirmação não torna Washington automaticamente errada. Enfim, devemos analisar a condução da Rússia em seus próprios méritos.

Deve-se começar essa discussão aceitando o fato de que já havia uma guerra acontecendo na Ucrânia pelos oito anos anteriores à incursão militar russa de fevereiro de 2022. Ademais, essa guerra do governo de Kiev contra os povos russófonos do Donbass – uma guerra que ceifou as vidas de cerca de 14 mil pessoas, muitas dessas crianças, e pôs em diáspora cerca de 1.5 milhões mesmo antes da operação militar da Rússia – foi comprovadamente genocida. Isto é, o governo em Kiev, e especialmente seus batalhões neonazistas, empreenderam ataques contra esses povos com a intenção de destruir, ao menos em parte, os russos étnicos precisamente em função de sua etnia.

Enquanto isso, o governo dos EUA e a mídia estão tentando fortemente ocultar esses fatos, mas são inegáveis, e foram de fato noticiados pela mídia ocidental mainstream antes que fosse uma coisa inconveniente de se fazer. Logo, um comentário feito pela Reuters em 2018 claramente explica como os batalhões neonazistas foram integrados ao exército Ucraniano oficial e às forças policiais e, assim, se tornaram atores estatais, ou quase estatais, pelos quais o governo Ucraniano tem responsabilidade legal. Como o texto relata, existem cerca de 30 grupos de extrema-direita operando na Ucrânia, que “foram formalmente integrados às forças armadas da Ucrânia,” e que “os mais extremos dentre esses grupos promovem uma ideologia iliberal e intolerante…”

Isto é, eles têm e promovem ódio contra russos étnicos, o povo cigano e contra membros da comunidade LGBT, e expressam esse ódio atacando, matando e dispersando esses povos. O texto cita o grupo pró direitos humanos ocidental Freedom House e sua proposta de que “um aumento no discurso patriótico apoiando a Ucrânia em seu conflito contra a Rússia coincidiu com um aparente aumento tanto no discurso de ódio aberto, às vezes por oficiais públicos e enfatizados pela mídia, quanto na violência contra grupos vulneráveis, como a comunidade LGBT.” E isso tem sido acompanhado de violência real. Por exemplo, o “Azov e outras milícias atacaram protestos antifascistas, reuniões de câmaras municipais, meios de comunicação, exposições de arte, estudantes estrangeiros e o povo cigano.”

Como noticiado no Newsweek, a Anistia Internacional tem denunciado esses mesmos grupos extremistas e suas atividades violentas desde 2014.

É esse exato tipo de evidência – discurso de ódio aberto combinado com ataques sistêmicos, de larga escala, nos alvos do discurso – que é usada para condenar indivíduos por genocídio, por exemplo no caso do genocídio em Ruanda, contra Jean-Paul Akayesu.

Adicionalmente, há por certo mais de 500 mil residentes da região do Donbass na Ucrânia que também são cidadãos Russos. Embora essa estimativa tenha sido feita em abril de 2021, depois do decreto de Vladmir Putin de 2019 de simplificar o processo de obtenção de cidadania russa para cidadãos das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, isso significa que cidadãos russos têm sofrido ataques raciais de grupos neonazistas integrados ao governo da Ucrânia, e bem na fronteira da Rússia.

Para que não restasse dúvida Russa a respeito das intenções do governo ucraniano para com os russos étnicos no Donbass, o governo em Kiev aprovou novas leis relacionadas à língua em 2019, que deixaram claro que os russófonos eram, na melhor das hipóteses, cidadãos de segunda classe. Realmente, a sempre pró-ocidente Human Rights Watch (HRW) expressou preocupação com essas leis. Como a HRW explicou num relatório no começo de 2022, que não teve quase nenhuma cobertura da mídia ocidental, o governo de Kiev aprovou leis que “requeriam que meios de mídia impressa ucranianos publicassem na língua ucraniana. E que publicações em outras línguas deviam sempre ser acompanhadas de uma versão ucraniana, equivalente em conteúdo, volume, e método de impressão. Ademais, centros de distribuição, bem como bancas de jornais devem ter ao menos metade do seu conteúdo na língua ucraniana.”

Ainda, de acordo com a HRW, “O artigo 25, que dispões sobre meios de comunicação, faz exceções para certas línguas minoritárias, inglês, e línguas oficiais da UE, mas não para o russo” (ênfase acrescentada), sendo a justificação para isso “o século de opressão ucraniana em favor dos russos.” Como a HRW explicou, “há preocupações sobre se as garantias para minorias linguísticas são suficientes. A comissão de Veneza, o principal órgão consultivo da Europa em questões constitucionais, disse que diversos artigos da referida lei, incluindo o artigo 25, ‘falharam em criar um equilíbrio justo’ entre promover a língua ucraniana e salvaguardar os direitos linguísticos das minorias.” Tal legislação apenas ressaltou o desejo do governo ucraniano de destruir a cultura, senão a própria existência, dos russos étnicos na Ucrânia.

Ademais, como a Organização para a paz mundial noticiou em 2021, “de acordo com o decreto n. 117/2021 do Conselho de Segurança e Defesa Nacional da Ucrânia, a Ucrânia se comprometeu em colocar todas as opções na mesa para retomar o controle da região da Crimeia anexada pela Rússia. Tendo-o sancionado em 24 de março, o presidente Zelensky se comprometeu a levar o país a perseguir estratégias que ‘irão preparar e implementar medidas para assegurar a desocupação e reintegração da península.” Sendo que os residentes da Crimeia, os quais são, em maior parte, russos étnicos, estão bem felizes com o atual estado das coisas sob a administração russa – isto de acordo com um artigo do Washington Post em 2020. A ameaça de Zelensky nesse contexto era não apenas uma ameaça contra a Rússia em si, mas também uma ameaça de uma possível derramada de sangue massiva, contra uma população que não quer se reintegrar à Ucrânia.

Sem mais delongas, essa situação representa um caso muito mais interessante para justificar a intervenção russa sob a doutrina da Responsabilidade de Proteger (R2P) que tem sido defendida pelos ‘humanitários’ ocidentais, como Hillary Clinton, Samantha Power, e Susan Rice, e que foi a base para justificar as intervenções da OTAN em países como a antiga Iugoslávia e a Líbia. Além disso, nenhum dos Estados envolvidos nessas intervenções poderiam alegar qualquer autodefesa. Esse é especialmente o caso dos Estados Unidos, que tem mandado forças para milhares de milhas de distância a fim de bombardear terras longínquas.

De fato, isso evoca à mente as palavras do intelectual palestino Edward Said, que opinou anos atrás em seu influente trabalho, ‘Cultura e Imperialismo’, que é simplesmente injusto tentar comparar a construção do Império Russo, com a do império ocidental. Como o Dr. Said explicou, “A Rússia adquiriu seu território imperial quase exclusivamente por adjacência. Diferentemente do Reino Unido e da França, que voaram milhares de milhas para além de suas fronteiras, em direção a outros continentes, a Rússia passou a assimilar toda a terra e todos os povos que estavam próximos a suas fronteiras, mas no caso do Reino Unido e da França, a própria distância dos territórios atrativos convocou a projeção de interesses longínquos.” Essa observação é igualmente aplicável aos Estados Unidos.

 Além disso, há mais para se considerar a respeito das alegações russas para justificar da intervenção. Assim, não só existem grupos radicais em suas fronteiras atacando russos étnicos, incluindo cidadãos russos, mas tais grupos também têm sido sabidamente financiados e treinados pelos Estados Unidos com a intenção de desestabilizar e minar a integridade territorial da própria Rússia.

            Como o Yahoo News explicou num artigo de janeiro de 2022:

“A CIA está supervisionando um programa de treinamento intensivo secreto nos EUA para a elite das forças de operações especiais ucranianas e outros setores de inteligência, de acordo com cinco ex-oficiais de segurança nacional e de inteligência, familiares com a iniciativa. O programa, que teve início em 2015, tem sua base numa repartição secreta no sul dos EUA, de acordo com alguns desses oficiais.

O programa envolvia ‘treinamento muito específico em habilidades que elevariam o poder dos ucranianos de reagir contra os russos.’ Disse o oficial de inteligência veterano.

O treinamento, que incluía ‘assuntos táticos’, irá ‘começar a tomar uma forma bem ofensiva se os russos invadirem a Ucrânia’ disse o ex oficial.

Uma pessoa próxima do programa colocou de uma forma mais grave: ‘Os Estados Unidos estão treinando uma insurgência,’ disse um ex oficial da CIA, acrescentando que o programa tem ensinado os ucranianos a como matar russos.

Para afastar qualquer dúvida de que a desestabilização da própria Rússia seja o objetivo dos EUA nessas empreitadas, deve-se examinar o elucidativo relatório de 2019 da Rand Corporation – um fornecedor militar de longa data chamado a aconselhar os EUA sobre como conduzir suas políticas. Nesse relatório, intitulado ‘Sobrecarregando e desequilibrando a Rússia, avaliando o impacto de opções custosas.’, uma das muitas táticas listadas é “Prover apoio letal para a Ucrânia” a fim de “explorar o maior ponto de vulnerabilidade externa da Rússia.”

Resumidamente, não há duvida de que a Rússia tenha sido ameaçada e de forma severa, com esforços concretos de desestabilização por parte dos EUA, OTAN e seus fantoches extremistas na Ucrânia. A Rússia foi muito ameaçada por oito anos e testemunhou o que tais esforços de desestabilização significaram para outros países, do Iraque ao Afeganistão e da Síria à Líbia – isto é, a quase total aniquilação do país como um Estado-nação funcional.

É difícil de conceber um caso mais carente da necessidade de agir em defesa da nação. Embora a carta da ONU proíba atos unilaterais de guerra, esta também prescreve, no artigo 51, que “nada na presente carta irá impedir o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva…” E esse direito de autodefesa tem sido interpretado como permissão dos países de responder, não apenas a ataques armados concretos, mas também à ameaça de ataque iminente.

Sob a luz do exposto acima, é minha avaliação de que esse direito foi acionado no presente caso e que a Rússia teve o direito de agir em sua autodefesa via intervenção na Ucrânia. Esta por sua vez acabou se tornando uma marionete dos EUA e da OTAN para um ataque – não apenas contra russos étnicos entre os ucranianos – mas também contra a própria Rússia. Uma conclusão contrária simplesmente ignoraria a realidade sombria que a Rússia enfrenta agora.

Fonte: RT

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Nova Resistência
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