A direita antiliberal é marcada historicamente pela profunda recusa aos modelos liberais e comunistas do século XX, ao passo que sua revolta estava enraizada em algo mais que o racismo, chauvinismo, niilismo e destruição pela qual seus precursores e seguidores estariam continuamente marcados, mesmo quando incorretamente. Michael Millerman nos auxilia dialogicamente numa reflexão sobre as origens e possibilidades dessa corrente de pensamento. De Platão a Carl Schmitt e Leo Strauss.
Por Michael Millerman
A direita antiliberal é marcada historicamente pela profunda recusa aos modelos liberais e comunistas do século XX, ao passo que sua revolta estava enraizada em algo mais que o racismo, chauvinismo, niilismo e destruição pela qual seus precursores e seguidores estariam continuamente ligados. Michael Millerman nos auxilia dialogicamente numa reflexão sobre as origens e possibilidades dessa corrente de pensamento. De Platão a Carl Schmitt e Leo Strauss.
Quando pensamos no horizonte intelectual contemporâneo sobre o problema do liberalismo e suas alternativas, é importante não ignorar o fenômeno do antiliberalismo de direita. Não obstante, o fenômeno não é tão bem compreendido quanto deveria. As razões históricas para isso não são de difícil compreensão e não requerem elaboração. Mas a questão permanece se algo importante foi perdido quando o descrédito da história política atingiu as alternativas à direita do liberalismo. A falha em compreender as variedades e métodos teóricos da direita antiliberal dificulta uma abordagem correta de seu retorno, se há um. As críticas historicamente justificadas sobre os vícios desta direita podem ter nos cegado para suas virtudes. Mas não conseguiremos nada ao cegamente andar sobre uma matéria desta consequência.
Não é possível estabelecer uma lista dos cinco ou três maiores antiliberais de direita, com muita segurança, sem citar Carl Schmitt. Em nome da distinção amigo-inimigo e a possibilidade real de morte física do inimigo na guerra, o conceito schmittiano de Política polemiza contra o liberalismo com clareza conceitual inigualável e reserva letal. Schmitt, o jurista nazista, nos lembra como ninguém, em tão pouco espaço e tanta efetividade, que a despolitização, neutralização e evasão das responsabilidades soberanas não representam um caminho seguro e sério para o povo.
Apesar disso e até surpreendentemente, em suas notas sobre o livro de Schmitt, Leo Strauss, mais moderado, afirma que Schmitt jamais encontrou um horizonte para além do liberalismo. Para Strauss, a posição de Schmitt é de um liberalismo com polaridade invertida. Enquanto o liberalismo tolera toda forma de vida desde que seja pacífica, Schmitt tolera toda forma de vida desde que seja perigosa. Ambos são neutros ao conteúdo e refletem um ao outro num formalismo vazio. Ademais, Schmitt retorna ao estado humano de selvageria, ponto inicial de pacificação para Hobbes. Assim, Schmitt não ultrapassa Hobbes, o fundador do liberalismo.
Schmitt afirma que Strauss o viu através de um raio-x. Assim, temos a autoridade do próprio Schmitt para afirmar que a interpretação de Strauss possui mérito e merece atenção. Para Strauss, a primeira causa para desentendimento entre os homens diz respeito à disputa sobre o modo correto de viver. Um homem que não faz mais perguntas sobre o que é certo não é mais um homem. “Mas se nos perguntarmos seriamente o que é certo, a disputa é iniciada… a disputa de vida e morte: a política — a agrupamento de amigos e inimigos — deve sua legitimidade à seriedade da questão sobre o que é certo.” Não se trata de um formalismo vazio, mas uma questão substantiva da maior relevância é o que define o reino político. Não podemos nos perguntar o que é certo ou bom, no entanto, sem compreender como a tradição da filosofia política influenciou o modo como formulamos esta questão e a respondemos. A vida necessita de uma história da filosofia política. Para reiterar este ponto surpreendente, partindo do princípio de ouro da direita antiliberal — o conceito schmittiano do político — rapidamente nos encontramos numa estrada que não se inicia com inimizade e risco, mas com a pergunta sobre o bem, sua origem e tradição, em Platão e Aristóteles (e na Bíblia).
Mas estamos indo rápido demais. Vamos mais devagar. É possível dizer que, para Schmitt, ou mais globalmente para um certo tipo de direita antiliberal, o que importa é a disposição de arriscar a vida na batalha contra o inimigo. O que importa é a coragem. Por que seria a coragem a primeira virtude? Strauss argumenta da seguinte forma. O ideal burguês é uma vida sem riscos: somos motivados a evitar a morte violenta e buscar uma autopreservação cada vez mais confortável. A maneira mais direta de rejeitar o ideal burguês é abraçar uma vida arriscada, estar aberto para a morte e expor-se ao sacrifício não utilitário. Isto está claro. Qual é o problema?
O problema de abordar o lugar da coragem como virtude na ordem das questões humanas não se inicia com Schmitt e seus seguidores. É um problema antigo. Você o encontra em Platão. De fato, o início das Leis de Platão é a melhor forma de abordar a marcialidade como uma virtude primária ao homem.
As Leis contam a história de um velho homem de Atenas que visita Creta para conversar com um velho cretense e um velho espartano sobre a lei. A primeira questão do diálogo é sobre quem concedeu as leis, um deus ou um homem? Por acaso, essa pergunta já torna o diálogo indispensável para um problema teológico-político e não só para o status da coragem. Eles respondem dizendo que, para responder com justiça, suas leis eram divinas. O estranho ateniense então pergunta: Com qual fim seu legislador legisla? No nosso caso, estaríamos familiarizados com uma lei visando a vida, liberdade e felicidade, ordem e um bom governo, algo do tipo. Os interlocutores do diálogo respondem que seus legisladores legislam pela vitória na guerra; todas as cidades estão em guerra umas com as outras. O estrangeiro ateniense, questionando tal como Sócrates, pergunta se também os indivíduos estão em permanente guerra uns com os outros, e se estão em guerra contra si mesmos. Sim, eles dizem. Quando celebramos a vitória na guerra, ele pergunta, não celebramos a vitória do certo contra o errado? Afinal, não celebraríamos a vitória do erro contra o acerto, correto? Correto. Então, o objetivo da vitória na guerra possui alguma orientação sobre a questão do certo e do errado, e não é possível que o deus, que é sábio, poderia querer que pensássemos apenas sobre a vitória e não sobre a outra questão. Eles concordam.
Sem demora, se prestarmos atenção, o estrangeiro ateniense está prudentemente lecionando sobre uma reforma no código das leis. Mas para nosso propósito, devemos enfatizar que Platão mostra que compreende apropriadamente, independente de referências aos deuses, que a coragem não é a excelência humana, tampouco é verdade que seja a maior virtude política. É fácil perceber a rejeição do ideal burguês como inicialmente nos apontando nesse sentido. No entanto, sob o amplo espectro das virtudes da direita antiliberal, devemos reconhecer que o argumento platônico, que também rejeita o ideal burguês em seu lugar na hierarquia da excelência humana.
De novo, estamos indo rápido demais. É relativamente fácil passar da direita antiliberal para Platão. Se fosse um passo tão óbvio, veríamos mais platonistas entre os deploráveis mais antigos ou subgrupos mais radicais. Mas é mais fácil ver Nietzsche, Schmitt e outros proeminentes pensadores tradicionalistas e da revolução conservadora. Existem obstáculos entre estes pensadores que previnem um retorno simples até Platão. Vamos ao exemplo mais óbvio. Nietzsche critica com alguma habilidade o Platonismo, até certo ponto. Heidegger, também. O platonismo parece com algo pitoresco e refutado. Sócrates era velho e feio. A nova direita antiliberal é jovem e quente. O que o Sócrates de Platão fez? Falou, falou e falou. Mas já cansamos de falar, queremos ação!
É natural que a geração mais jovem queira ação. Seria uma incúria de dever e sinal de incompetência dos seus anciãos não compreender isto e oferecer brometos patéticos que reforçam entre os jovens a impressão de que os velhos e feios nada compreendem. Isso é o que Strauss argumentou em 1941 quando disse que a coisa mais perigosa para os jovens alemães niilistas, os que rejeitavam a civilização e odiavam a versão esquerdista do futuro, eram professores progressistas que não compreendiam o significado positivo de seu juvenil “não” desacompanhado de um “sim” coerente. Velhos professores sem dogma suficiente para compreender o anseio juvenil e que poderiam ajudá-los a enxergar uma alternativa outra que a destruição para o fim da vida burguesa e da visão comunista. Mas não haviam tais professores, e os estudantes foram radicalizados por progressistas cegos.
Strauss finalmente reconheceu a decência da paixão moral representada pela antipatia da direita antiliberal contra os ideais burgueses e comunistas, uma paixão que ele diz ser compartilhada por Platão, Rousseau e Nietzsche. Sua análise do niilismo alemão mostra que embora as circunstâncias dessa paixão moral tenha sido parcial e vulgarmente expressada na forma do hitlerismo, possuía antecedentes profundos e justificáveis em um grau elevado. Strauss combina sua justificação da crítica filosoficamente necessária da civilização moderna com uma responsável correção do que ele considerava como consequências politicamente desastrosas. Ele o fez em parte e com referência à situação então prevalecente, argumentando que o ideal pré-moderno, mais desejável do que o moderno, foi melhor preservado nos países desenvolvidos do Ocidente do que na jovem Alemanha, que em sua rejeição zelosamente militarista da civilização moderna, esqueceu a preocupação clássica com a boa vida.
Mais importante, a recuperação feita por Strauss da tradição clássica de filosofia política mostra que o caráter desnecessariamente imoderado da busca filosófica pela sabedoria não é necessariamente incompatível com a virtude da moderação. Parafraseando uma das muitas formulações brilhantemente astutas de Strauss, a moderação é uma virtude não do pensamento filosófico, que é privado, mas do discurso, público ou político. É uma questão aberta até que ponto a direita antiliberal contemporânea compartilha destas virtudes de pensamento e discurso. Eles não são particularmente platônicos. Para Strauss, eles encarnam a tradição da filosofia política, onde a moderação discursiva é refletida na prática da escrita exotérica e a imoderação do pensamento, na prática de escrever entre as linhas. Isso sugere que uma alternativa para a direita antiliberal que advogue a virtude da coragem não precisa retornar a Platão: ela pode se desenhar a partir da tradição mais abrangente que Strauss reconhece como “Filosofia Política Platônica”, que ele denomina essa específica combinação de moderação e imoderação citada acima.
O fato de existirem variedades na direita antiliberal levanta a questão de sua veracidade. Não estamos adequadamente equipados para entender sequer a intenção dessa questão, pois quem ainda acredita ou crê poder provar existir uma simples verdade na vida política?
O problema é que estamos nos atrasando sobre velhos debates que rapidamente se tornam assuntos da maior importância e não podemos mais adiar. Oitenta anos atrás, Strauss abordou a afirmação de Spengler que o conhecimento científico e outros domínios da vida humana são relativos ao tempo e espaço, e portanto, não podem ser simples verdades, nem na matemática e lógica, nem na política. Strauss argumenta que entre os fatais problemas na abordagem de Spengler é que o autor presumia demais. Ao afirmar que a verdade varia de acordo com a cultura, ele assumiu que poderia descrever algo como uma cultura que não se descrevia dessa forma ou que poderia interpretar a vida cultural em termos de preocupações centrais e periféricas, independentemente da questão se as pessoas de que falava dividiam suas preocupações em centrais e periféricas, e se é assim, se as áreas específicas eram as mesmas que Spengler tomava como certas. Strauss mostra que uma abordagem hermeneuticamente adequada sobre a variação cultural da verdade exigiria um estudo dos textos culturais para compreender como esta se compreende, sem impor esquemas conceitualmente modernos sobre esta desde o início (por exemplo, não entendemos a polis como uma “cidade-estado”, porque “estado” é uma interpretação desenhada a partir de um conceito estranho ao entendimento do pensamento político da Grécia antiga). Se começarmos com a tese de que toda a verdade é culturalmente relativa, somos levados até o esforço interpretativo de entender culturas em seus próprios termos através do estudo de sua história. Este estudo, Strauss pensava, leva não ao relativismo histórico e cultural, mas a uma série de problemas básicos e preocupações que permanecem constantes no tempo e no espaço, que então revelam algo permanente na natureza humana. Se isso é correto, seria possível abordar se um ensinamento é uma simples verdade sobre a natureza humana. O relativismo não se sustenta. A questão sobre a veracidade da direita antiliberal é significativa.
Strauss também percebia que a tese do relativismo histórico e cultural possui uma dimensão filosófica mais séria do que Spengler proveu, nominalmente, a filosofia de Heideger. O historicismo de Heidegger nos força a pensar diferentemente sobre a verdade e virtudes da direita antiliberal. Mas onde este projeto de pesquisa é competentemente desenvolvido? Temos um entendimento suficiente sobre Heidegger para considerá-lo em relação a Schmitt e outros críticos dos ideais burgueses e comunistas? A filosofia de Heidegger nos preocupa intimamente no momento da crise do liberalismo.
E se a questão da verdade sobre um ensinamento não importa, não porque a verdade é relativa ao espaço e tempo, mas porque verdades da razão são subordinadas à uma autoridade superior? Entre as variedades da direita antiliberal existe, afinal, não só a descrença de Nietzsche, mas também posições baseadas em obediência ao comando divino, teologias políticas. Você já pode imaginar algumas pessoas no horizonte intelectual que representam essa alternativa.
Isso, porém, não é novidade. Strauss estava escrevendo sobre uma dinâmica semelhante em 1940 quando recontava a atmosfera intelectual da Alemanha do pós-guerra. Quando somos confrontados com a mesma situação, com descrença radical de um lado e obediência à autoridade divina do outro, e então? Strauss disse que seus contemporâneos não tinham condições conceituais para pensar claramente sobre tal situação. Será que somos melhores que eles?
Alguns entre os contemporâneos de Strauss que pretendiam voltar da autoridade à razão voltaram-se para as teorias do direito natural dos séculos XVII e XVIII. Pelo menos dessa forma, poderia haver um padrão moral racionalmente defensável para dar coesão a uma comunidade política. No entanto, Strauss mostrou que estes ensinamentos não forneceram uma base sólida para um retorno à razão. Eles dependiam excessivamente na crença tradicional de que a filosofia moderna refutara a filosofia clássica e progredira para além, sobre esta refutação. Heidegger, no entanto, destruiu essa crença. Ele mostrou que os clássicos não foram refutados porque foram incompreendidos. Um retorno à razão não comprometido por uma falaciosa tradição precisaria retornar a uma razão pré-moderna. Este retorno não se contenta ao escolasticismo, pois estava claro que este dependia de Aristóteles; possuía sua natureza derivativa. Um retorno genuíno à razão é um retorno até Platão e Aristóteles. Toda filosofia posterior, argumenta Strauss, foi baseada em conceitos herdados deles, sem levar em consideração o genuíno encontro com a vida ordinária que engendrava estes conceitos. Estudar Platão e Aristóteles significava encontrar o mundo natural da vida do homem, vendo com ingenuidade no melhor sentido possível e da única maneira que ainda podemos. As filosofias posteriores são construções artificialmente arrancadas desse estado natural, elas mesmas gradualmente esquecidas. Interpretando-nos pela sua luz, nós também estamos desenraizados.
Da tese de relatividade de Spengler, através da autoridade irracional da teologia política à invocação inadequada da lei natural e do escolasticismo, Strauss nos devolve, então, a Platão. Seria esta a maior virtude da direita antiliberal: que, ao contrário do liberalismo e do antiliberalismo de esquerda, nos leva de volta à origem de nossa história, e à origem de nosso futuro? Pois não podemos vencer Platão sem tê-lo compreendido.
Fonte: IM-1776
Tradução: Augusto Fleck