Nicarágua: De Taiwan à China

Por mais de 100 anos, quem quisesse passar do Atlântico ao Pacífico, ou vice-versa, sem circunavegar as Américas ou a África, teve que recorrer ao Canal do Panamá, construído pelos EUA e administrado conforme os interesses estadunidenses. Agora, a Nicarágua de Daniel Ortega está entrando no projeto da Nova Rota da Seda para que seja construído em seu país um novo canal Pacífico-Atlântico, talvez contando inclusive com segurança russa. O Brasil deveria tentar participar do projeto.

Na quinta-feira 10 de Dezembro, a Nicarágua rompeu oficialmente as relações diplomáticas com Taiwan e estabeleceu relações com a China. A declaração oficial dizia que “o governo da República Popular da China é o único representante legal de toda a China, e Taiwan é parte integrante do território da Chia”. A partir de hoje, o governo da República da Nicarágua rompe as relações diplomáticas com Taiwan e corta todos os contatos e laços oficiais”.

Esta é a segunda vez que as preferências da política externa da Nicarágua mudam. Durante o primeiro mandato da presidência do sandinista Daniel Ortega (1985-1990), foram estabelecidas relações oficiais com a China. Mas sob a presidência seguinte, Violeta Barrios de Chamorro, que era uma agente dos EUA, o país cortou estas relações e restabeleceu laços com Taiwan. Embora Ortega não tivesse pressa em restabelecer os laços com Pequim antes das eleições gerais de Novembro de 2021, parece que as sanções dos EUA e as constantes ameaças de Washington o convenceram finalmente a pôr fim a esta questão.

Uma política externa bem definida permitirá agora um eixo adicional de multipolaridade. Na região, a China é há muito parceira de Cuba, Venezuela e Bolívia, que, tal como a Nicarágua, são membros da ALBA. É significativo que a Nicarágua tenha muito boas relações com o Paquistão, que é um cliente da China e se tornou um local chave para a Iniciativa Cinturão & Rota (o Corredor Econômico China-Paquistão, incluindo o Porto de Gwadar).

O Departamento de Estado norte-americano condenou a decisão da Nicarágua, e pode presumir-se que não vai ficar por aí. No entanto, Washington tem cada vez menos ferramentas. Poucos dias antes, a Nicarágua retirou-se oficialmente da Organização dos Estados Americanos, que é um fantoche dos Estados Unidos, demonstrando assim uma política de soberania.

Embora a administração Biden esteja tentando igualar a China com a sua própria iniciativa Construir de Novo Melhor (B3W), inclusive nos países da América Latina, o projeto ainda não é claro.

Existem também tensões entre os membros do G7, com alguns países não demonstrando intenção de cortar ou reduzir os laços comerciais e econômicos com a China.

O restabelecimento dos laços oficiais entre a Nicarágua e a China sugere também que os trabalhos de construção do canal da Nicarágua possam ser retomados num futuro não muito distante. E isto significará uma mudança nas regras do jogo na região.

Em 2013, foi assinado um contrato para a construção de um canal de navegação na Nicarágua, tendo o investidor chinês Wang Jing recebido uma concessão. Na altura, ele foi visto como uma alternativa possível ao Canal do Panamá que teria o potencial de mudar a geopolítica regional. O projeto chamava-se o Grande Canal Interoceânico da Nicarágua. Contudo, o HK Nicaragua Canal Development (Grupo HKND) faliu, pelo que o projeto está em suspenso desde 2018. Agora, parece que Pequim vai agarrar esta janela de oportunidade.

O próprio Wang Jing escreveu uma carta a Daniel Ortega, declarando que a sua empresa, HKND Group, e ele pessoalmente ainda acreditava no projeto do Grande Canal. A China precisa prosseguir com a iniciativa da Nova Rota da Sed, onde um novo centro de trânsito ajudará a otimizar a logística e a criar pontos de ancoragem adicionais, uma vez que a infraestrutura envolve a construção de dois portos, um aeroporto, uma central elétrica, e várias estradas.

Em comparação com o Canal do Panamá, o canal da Nicarágua será consideravelmente mais atrativo: será mais largo e profundo, permitindo a passagem de mais mercadorias através dele. Espera-se que navios porta-contentores de até 400.000 toneladas possam passar através do canal. (O Canal do Panamá só pode movimentar navios de até 150.000 toneladas).

Desde o início, assumiu-se que a Rússia asseguraria a segurança da construção e a manutenção do canal. Dada a estreita ligação entre os serviços militares e especiais russos e nicaraguenses, a inclusão de Moscou no projeto é inteiramente viável. De fato, uma maior presença militar russa na região será agora justificada (afinal de contas, terroristas poderiam pôr em perigo o tráfego marítimo, o que deve ser evitado). Apenas a um passo dos EUA.

A ironia é que, nos finais do século XIX, eram os EUA que estavam interessados em construir um canal na Nicarágua. A North-American Company, mais tarde sucedida por outras, foi criada para este fim em 1880. No entanto, foi dada preferência ao Canal do Panamá, porque tinha recebido grandes investimentos. No entanto, o contrato com a Nicarágua durou até 1970. Agora é a vez de a China assumir o potencial inexplorado.

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Leonid Savin

Leonid Savin é escritor e analista geopolítico, sendo editor-chefe do Geopolitica.ru, editor-chefe do Journal of Eurasian Affairs, diretor administrativo do Movimento Eurasiano e membro da sociedade científico-militar do Ministério da Defesa da Rússia.

Artigos: 596

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