Um dos mais interessantes pensadores do século XXI é o italiano Diego Fusaro, que nessa entrevista expõe a traição da esquerda contra os trabalhadores, e a obsolescência da distinção política direita/esquerda. Ele convida à construção de amplas alianças dos defensores dos trabalhadores, da classe média, da nação e dos costumes populares contra elite cosmopolita desenraizada.
Diego Fusaro é um rara avis: um filósofo marxista e Hegeliano que se manteve em sintonia com a Lega de Matteo Salvini e é acusado de ser um “fascista” por um setor da esquerda europeia. Agora ele está de volta às mãos da Alianza com as seiscentas páginas de História e Consciência do Precariado. Servos e Senhores da Globalização, onde aborda as consequências da fragilização dos vínculos laborais e também os principais conflitos políticos da pós-pandemia. “O problema é que a liberdade de mercado sem uma política que a discipline e governe, ou seja, sem um Estado soberano, democrático e social, causa ‘tragédias no ético’ (Hegel): crescente miséria, dissolução da comunidade, perda de direitos…”, explica à Vozpópuli no decorrer de uma longa entrevista. Além de ser um respeitado ensaísta, Diego Fusaro é professor no Instituto de Altos Estudos Estratégicos e Políticos de Milão.
Pergunta: Sua tese é que estamos regressando para uma economia típica da Idade Média, com a sociedade dividida em servos e senhores. Passamos da globalização para a ‘glebalização’, para sermos ‘servos da gleba’ dos oligopólios financeiros e tecnológicos.
Resposta: É isso mesmo. Em História e Consciência do Precariado, eu defendo que estamos testemunhando um novo feudalismo: os novos laboratores são precarizados e marginalizados, são uma classe média empobrecida e uma classe trabalhadora massacrada; os novos bellatores são os capitalistas multinacionais, o comércio eletrônico e a big pharma; e os novos oratores são o clero intelectual que reza dia e noite ao deus do mercado e defende as relações de força, exortando os laboratores a aceitarem com desencantada renúncia ou com euforia tola a ordem da “glebalização” capitalista. Isto é algo que eu expliquei em meu livro Glebalização. A luta de classes em tempos de populismo (2019).
A que distância estamos dessa nova Idade das Trevas?
Para todos os efeitos, já estamos nessa situação, e o surgimento da Covid-19 reforçou esses processos: ela ‘replebeizou’ a sociedade, tomando tudo de assalto, confinando as classes médias e os trabalhadores e aumentando a riqueza dos capitalistas antifronteiras. A situação deu origem a um novo capitalismo autoritário-repressivo que proíbe reuniões e coloca em quarentena o povo, impedindo qualquer movimento revolucionário e de protesto.
Ultimamente, abundam notícias e pesquisas que indicam um rejuvenescimento do apoio à direita (por exemplo, na França com a Marine Le Pen e em Madri com relação a Ayuso). Qual é a explicação para esta tendência?
Atribuo isso principalmente à traição da esquerda. Ela traiu Gramsci, Marx e a classe trabalhadora para se tornarem os guardiões arco-íris do grande capital: o que a esquerda dos costumes defende é o mesmo que quer a direita do dinheiro. É por isso que as classes trabalhadoras e os jovens se viram sem representação e, muitas vezes por causa de uma reação rancorosa, votaram a favor da direita reacionária. O sucesso de Salvini, Le Pen, etc., pode ser explicado sobretudo desta forma: programas políticos economicamente liberais e inimigos das classes trabalhadoras, que se sobrepõem perfeitamente aos programas das esquerdas cor-de-rosa. É a alternância sem alternativas característica da época neoliberal: se ganha a direita azul turquesa ou a esquerda fúcsia, em qualquer caso o vencedor é o capital, que justamente tem uma ala direita e uma esquerda. A parábola de Podemos na Espanha também demonstra isso. Hoje nos falta uma verdadeira esquerda da foice e do martelo e vermelha, não arco-íris e fúcsia: ou seja, uma esquerda anticapitalista e comunista, a favor da soberania do Estado nacional e da solidariedade internacional entre os países socialistas.
A corrente cultural de maio de 68 foi revertida.
Desde essa revolta, a esquerda foi reduzida ao papel de cão de guarda do capital. E é por isso que ela perdeu a simpatia dos jovens e dos trabalhadores. Quanto ao resto, se a esquerda deixar de se interessar por Marx e Gramsci, o que é necessário é deixar de se interessar pela esquerda e continuar com as lutas que pertenciam a Marx e Gramsci.
Você é um dos intelectuais italianos que mais frequentemente cita Pasolini, por exemplo, suas posições contra o antifascismo, que ele via como um simulacro de oposição ao sistema. A esquerda atual também parece ser alérgica a outros intelectuais comunitaristas como Christopher Lasch, que é citado pelo guru trumpista Steve Bannon.
Adoro Pasolini, que considero, junto com Antonio Gramsci e Costanzo Preve, o mais importante marxista do século XX. Pasolini tinha compreendido que o antifascismo das esquerdas cor-de-rosa, na ausência do fascismo, deveria tornar-se o instrumento de deslegitimação de qualquer projeto de oposição ao capitalismo neo-hedonista. Hoje, o próprio anticapitalismo marxista é difamado como fascismo pelos sedutores antifascistas liberais (isto acontece, por exemplo, com Marco Rizzo, um dos poucos comunistas remanescentes). A esquerda não pode aceitar nem Pasolini nem Lasch, porque aderiu ao culto regressivo do progresso e da modernização capitalista integral da sociedade: para a esquerda, presa do “complexo de Orfeu” (Jean-Claude Michéa), olhar para trás é sempre um pecado, o que é necessário é seguir o desenvolvimento capitalista. A esquerda esqueceu a lição de Pasolini, que fez uma distinção entre desenvolvimento como emancipação e progresso como o avanço do tecnocapital, que é precisamente o que o marxismo deve combater em nome da emancipação.
Sua análise sugere que o eixo esquerda/direita não é mais tão útil e foi substituído por nacional versus global.
A direita e a esquerda são duas asas políticas e culturais que defendem os que estão no topo, ou seja, a classe dominante. Os que estão na base, ou seja, a classe precária das classes média e trabalhadora, carecem de representação. Portanto, a geografia política mudou: não há mais direita e esquerda, mas topo e base: o “topo” da elite turbofinanceira exige abertura em suas atividades, desregulamentação econômica e antropológica, globalismo e flexibilidade em todas as áreas, do trabalho ao gênero; por outro lado, a “base” deve lutar por um Estado soberano nacional democrático e pela eticidade no sentido hegeliano, ou seja, as “raízes éticas” da comunidade, da educação aos sindicatos. Em resumo, há uma falta de intelectuais e forças políticas representando os que estão na base. Por enquanto, o discurso tem dificuldades para se consolidar, porque, eu diria com Gramsci, o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu.
Suponho que você tem acompanhado a crise no Marrocos e na Espanha. Qual é a sua visão deste conflito?
Hoje a classe dominante utiliza armas de imigração em massa. Como explico na História e Consciência do Precariado, o capital chama de recepção e integração de migrantes a deportação de braços de baixo custo para explorar impiedosamente, com o que é possível reduzir os custos de mão-de-obra em geral, e tentar criar conflitos horizontais de classe dentro da mesma classe (migrantes contra nativos). O inimigo não é o imigrante, mas aquele que o deporta, ou seja, o chefe capitalista. O inimigo não é aquele que foge, mas aquele que obriga as pessoas a fugir. O que aconteceu entre a Espanha e Marrocos é um exemplo clássico do uso de armas de imigração em massa para exercer pressão sobre um governo.
Que solução resta?
A direita, não apenas na Itália, luta contra a imigração sem lutar contra o capitalismo. E derramam sobre os migrantes o ódio de classe que, pelo contrário, deveria ser derramado sobre os capitalistas. Como eu disse, os inimigos não são os migrantes, mas aqueles que os deportam, ou seja, a classe empresarial cosmopolita. A Igreja deveria, em nome de Cristo, opor-se a este tráfico obsceno de vidas humanas. Em vez disso, ela defende “portos abertos”, que é a expressão preferida da classe patronal cosmopolita. Ratzinger estava certo quando disse que hoje em dia só falamos do direito de migrar, e ninguém fala do direito de permanecer em sua própria terra e comunidade.
Já que você cita a religião, uma das coisas mais surpreendentes sobre o salvinismo é sua rejeição aos valores cristãos de acolhida e ajuda quando se trata de migrantes.
A ala direita usa a cristandade como um apelo eleitoral, para se referir aos valores que ela trai todos os dias com suas ações. A verdade é que hoje precisamos de um marxismo inspirado na corrente quente do cristianismo, como dizia Bloch: um marxismo que seja mesmo teológico, se me permitem, na luta contra o ateísmo da civilização dos mercados, contra seu niilismo e seu relativismo. Há mais necessidade do que nunca de redescobrir o sagrado e o transcendente, também entendido num sentido filosófico: o sagrado e o transcendente são o que não está disponível, o que não pode ser objeto de intercâmbio econômico ou da vontade do poder tecnocapitalista. O ser humano é uma figura do sagrado e do transcendente, e é por isso que é necessário derrubar qualquer relação na qual o homem seja rebaixado e explorado, humilhado e pisoteado.
Você tem sido alvo de várias campanhas de difamação na Espanha, desde notícias insinuando que você é um fascista em La Vanguardia até apelos para um boicote de cientistas políticos como Steven Forti, próximo ao espaço político de Ada Colau.
“Que ladrem, Sancho, logo cavalgamos!” Não me surpreende estas reações histéricas e rancorosas, resultado da raiva e do desejo de linchamento midiático. Se eles entrassem num sério diálogo socrático, as esquerdas cor-de-rosa se encontrariam como o Coiote do “Papaléguias”, que caminha através do vazio, e quando ele pára para pensar sobre isso, ele cai! É por isso que hoje à esquerda não há um verdadeiro debate sobre o status do marxismo e a teoria político-filosófica: há apenas uma patética luta identitária, com a qual eles defendem sua suposta pureza e brincam de fascistas todos que não se conformam com a ortodoxia e ousam pensar criticamente. A esquerda, assim como a direita, não pode ser a solução hoje, pois ela é o problema. Precisamos de novas sínteses políticas, novas visões, uma nova filosofia política que coloque Marx e Gramsci de volta ao centro no novo contexto.
Você sofreu essas tentativas de linchamento intelectual em outros países?
Naturalmente passei por isso também na Itália, porque mesmo em meu país a esquerda não se preocupa com nada além dos “direitos civis”, que é como eles chamam os caprichos consumistas das classes abastadas, como as barrigas de aluguel. Para a esquerda, falar hoje da luta de classes, dos direitos sociais, da luta contra a União Europeia e contra o atlantismo, de um Estado soberano democrático e do marxismo é o mesmo que ser fascista.
Seu livro termina com uma chamada a recuperar o confronto político. Quem você considera ser o principal inimigo?
Penso que hoje, na Europa, a primeira luta a ser travada é contra a União Europeia, que representa a “restauração” capitalista depois de 1989: hoje, lutar contra o capitalismo e contra a classe dominante significa lutar contra a UE, lutar por uma plena recuperação da soberania nacional como base para redemocratizar o espaço nacional e favorecer uma redistribuição keynesiana, reivindicando a autonomia nacional contra a globalização dos vértices, e a defesa do mundo do trabalho e das classes médias.
Fonte: Voxpópuli