Por Gyrus
Quando abordamos o tema da tradição, a confusão mais comumente feita é a de que “idealizamos um retorno ao passado glorioso”, quando na realidade, falamos de um renascimento do que é eterno e sagrado em outro meio e tempo. Ao analisar o contexto da revolta Zapatista no México e as características da cosmologia política maia, este texto nos apresenta justamente uma visão realizada dessa relação entre a tradição e o contemporâneo. A tradição manifesta através da vontade coletiva de um povo.
No fim de 1993, uma agora clássica reinterpretação da natureza e destino na religião e cosmologia maia foi publicada: Linda Schele, David Freidel e Joy Parker publicaram Maya Cosmos: Three Thousand Years on the Shaman’s Path. A ideia central de seu argumento é a ideia que a antiga sociedade maia era uma rede complexa de unidade hierárquica e social, e que as linhas místicas que teciam a sociedade – a um ponto até então despercebido – sobreviveram, espalhadas entre os descendentes da antiga e grande civilização.
Meses depois, irrompeu uma expressão corajosa e seminal da herança maia e autoafirmação indígena, nas ruas das cidades de Chiapas, no sudeste mexicano, lar de um grande percentual dos maias remanescentes no país. Cronometrada perfeitamente com a efetivação do Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (NAFTA) em 1º de Janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN, ou Zapatistas), usando suas máscaras de ski negras, tomaram muitas cidades da região, libertaram prisioneiros em San Cristóbal de las Casas, e resistiram às tentativas do exército de suprimí-los por quase duas semanas. Eles falharam em iniciar a revolução que planejavam, mas diálogos subsequentes com o governo asseguraram alguns avanços para a autonomia dos maias e outras comunidades indígenas no México.
Naturalmente, sua luta é contínua. Acordos com o governo em 1996 foram seguidos em 1997 por um massacre de 45 zapatistas maias e pacifistas em oração (incluindo crianças e mulheres grávidas), por paramilitares de extrema-direita.1 Mas sua adoção precoce da internet como plataforma para comunicação e atenção midiática, assim como sua sofisticada agenda utópica, capturaram o imaginário de ativistas ao redor do mundo, e colocaram os direitos indígenas do México em primeiro plano.
Assim como com o altamente contestado Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento, o NAFTA garantiu às corporações o direito de processar governos de estados participantes se eles julgassem que seus regulamentos os prejudicavam. A ‘liberdade’ da qual o acordo trata é a liberdade corporativa de passar por cima dos interesses do povo – especialmente aqueles como fazendeiros indígenas, com quase nenhuma voz em políticas globais. Conforme a destrutividade social e ambiental dessas políticas torna-se mais evidente, e conforme a ganância mentirosa das corporações no contexto de regulamentações é progressivamente exposta, a mensagem dos zapatistas só pode ressoar em ainda mais pessoas.
Eu apresentei os zapatistas mencionando a coincidência temporal na publicação de “Maya Cosmos” porque esse livro é sustentado por uma percepção aguda e simpática da situação dos maias contemporâneos. O principal argumentos dos autores é que, em seus costumes e rituais, os maias atuais retêm uma brasa significativa da tradição que ainda brilha com orgulho séculos após a última queima da grande fornalha da civilização maia. Ademais, eles acreditam que, uma vez que esses pobres fazendeiros mantêm práticas e crenças que se relacionam com os grandes resquícios arqueológicos de seus antepassados, havia uma cosmologia e visão de mundo compartilhada pela sociedade de cima a baixo.2 O livro é temperado com relatos particulares de cerimônias contemporâneas, com sinais claros da mitologia maia clássica. Os autores também detalham seus esforços em compartilhar o que descobriram com os maias em workshops – aprendendo com eles, em troca, mais sobre a sobrevivência da linguagem e de ideais que ecoam o passado pré-colombiano. Embora o texto não contenha claras declarações políticas, Freidel conclui afirmando que “todos os nossos amigos maias que compartilharam seu mundo conosco estão preparados para desafiar o destino que tentou reduzi-los à obscuridade, e nós estaremos com eles.”3 Mesmo que essa declaração não fosse imediatamente seguida pela explosiva insurreição zapatista, essas são palavras fortemente políticas – derivadas de uma paixão e comprometimento com as realidades humanas de sua disciplina que são um complemento admirável de suas realizações.
No entanto, existem dissonâncias interessantes e harmonias ambíguas no espaço entre a ânsia de Schele, Freidel e Parker em enraizar a dignidade dos maias atuais com sua civilização ancestral, e o tom ideológico dos zapatistas. Os zapatistas são radicalmente democráticos e igualitaristas; e enquanto estão firmados sobre a identidade maia, o contraste entre seu igualitarismo inclusivo e a teocracia duramente estratificada da sociedade maia clássica naturalmente significa que essas raízes são complexas.
Parece haver pouco ou quase nenhum debate sobre a antiga estrutura social maia no contexto da rebelião zapatista. Um antropólogo que explorou essa ideia, Gary Gossen, ressalta uma passagem fascinante de um comunicado do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (CCRI). Esse grupo é composto por 23 comandantes maias e seu porta-voz, Subcomandante Marcos, mascarado mas conhecido por ser um representante das classes médias da Cidade do México que não é maia. Um parágrafo inicial do comunicado afirma:
Nosso caminho sempre foi que a vontade da maioria esteja no coração de homens e mulheres que comandam. A vontade da maioria era o caminho em que aquele que comanda deveria andar. Se ele separa seu caminhar do caminho determinado pelo povo, o coração que comanda deve ser alterado por um que obedece. Assim nasceu nossa força na selva, aquele que lidera obedece se é verdadeiro, e aquele que segue lidera através do coração comum de homens e mulheres verdadeiros. Outra palavra surgiu de longe e nomeou nosso governo, e essa palavra deu o nome de ‘democracia’ ao nosso modo, que já o era antes das palavras viajarem.4
É claro que os zapatistas de décadas recentes remetem ao grupo armado liderado por Emiliano Zapata, que lutou pela reforma agrária mexicana e teve papel fundamental na revolução da década de 10. Mas essas palavras parecem vir de mais longe, tomando a forma da liderança estratificada do México pré-colombiano. Estariam eles tentando ir para além da evidente hierarquia piramidal maia clássica (e, grosso modo, outras civilizações indígenas), tentando alcançar algo do espírito em que Schele, Freidel e Parker acreditam que a cultura maia uniu os estratos superior e inferior da sociedade? Tentam eles capturar a essência xamânica do rei maia – o pico do poder social que, acima de tudo, devia servir a comunidade em seu papel de condutor cósmico e artista espiritual?
Gossen também faz referência a uma parte do mito cosmogônico do épico K’iche, Popol Vuh, que ele acredita ser “central, talvez o núcleo, na epistemologia Maia.”5 Na narrativa, os deuses, após numerosos fracassos, finalmente conseguem criar o homem – um ser capaz de elogiar e adorá-los. No entanto, esses homens podiam ver e saber tudo, assim como os deuses, o que os intimidou. Assim, eles alteraram sua criação.
E quando eles alteraram a natureza de seu trabalho, seus desígnios, foi o bastante para que seus olhos fossem marcados pelo Coração do Céu. Cegados como a face de um espelho que é soprado. Seus olhos se enfraqueceram. Agora apenas as coisas mais próximas eram claras.6
Aqui, o Coração do Céu – isto é, o polo celestial do norte – possui uma associação com o olho de outras culturas.7 Mas (talvez porque durante o período primitivo dos maias não havia uma estrela lá, apenas uma escuridão vacante?) a conexão aqui é maligna, e a visão humana é danificada e restrita. Gossen comenta: “a realidade é opaca; o que pode ser experimentado pela percepção humana raramente representa o todo; assim, intérpretes confiáveis e líderes são indispensáveis.”8 Em tempos antigos, o rei era tanto intérprete como líder, dotado da capacidade de capturar parte de nossa visão original e imaculada, para navegar as reviravoltas do tempo e do destino. Gossen considera provável que “tal clarividência é atribuída aos, se não reivindicada, líderes clandestinos indígenas da EZLN.”9
Outro aspecto da metafísica maia, o mais discutido em relação à influência sobre as crenças tradicionais dos zapatistas, é o princípio da coessência. Glifos clássicos traduzidos como a palavra maia “way” (pronuciada ‘uai’, plural wayob) parecem indicar “reis, ritualistas e deuses em formas mágicas alternativas, como animais, estrelas, e bestas fantásticas.”10 Essas coessências, ou familiares, são concedidos no nascimento, e seguidamente são revelados em sonhos (way também significa ‘dormir’ e ‘sonhar’). Eles acompanham o indivíduo por toda a vida, e simbolizam seu destino e poder.11 Vasos decorativos que se pensava serem descrições de deidades bizarras são vistos agora, após recentes avanços na tradução de glifos, como uma demonstração da coessência de senhores dos maias, dançando com máscaras e fantasias que expressam sua transformação ritual em wayob, as bestas mágicas que espelham suas almas.12 13 Tal iconografia é data até as relíquias de Olmec, de aproximadamente 1000 a. C. Pensa-se que para os antigos maias, a habilidade de manifestar o poder de seu way era “uma importante marca da elite.”14 “Esse conceito parece residir […] no centro de suas teorias de estado e legitimidade política através do poder xamânico.”15
Agora começamos a perceber a complexa serie de transformações que caracterizam o relacionamento dos zapatistas com a tradição maia de liderança, poder e identidade. As icônicas máscaras de ski que os líderes da EZLN usavam em público talvez tenham também a ver com a força simbólica de um representante da comunidade tornar-se algo diferente de um ser mundano, conforme lidem com discrição pragmática. O rei maia era o Wakah-Chan, o eixo cósmico encarnado para agir como meio entre os vivos e os poderes ancestrais. Sua dança mascarada e metamórfica também manifestava a penetração da membrana entre este mundo e o dos mortos. Subcomandante Marcos – um “outro” (não maia) a serviço da menos vísivel CCRI – age como condutor entre os insurgentes maias de Chiapas e o mundo, um representante singular mas impessoal canalizando o poder da mídia global para a sua causa. A máscara de ski que ele utiliza naturalmente simboliza a guerrilha. Mas dentro da esfera cosmológica maia, ela também fala da transcendência do ego mundano, das forças do destino, e do temível poder despertado quando a separação egoísta da comunidade é abandonada.
Apesar (ou graças a) da máscara, Marcos foi criticado por autoengrandecimento. A liderança, ainda que (ou especialmente) moldada por sofisticadas táticas revolucionárias pós-modernas, sempre será ambivalente. Mas ao mobilizarem-se contra as múltiplas cabeças do poder corporativista moderno, os zapatistas demonstraram possuir uma habilidade memorável dos maias contemporâneos em adaptar sua herança à luta pela autodeterminação. O reinado teatral e xamânico foi o caminho que seus ancestrais usaram para lidar com o desafio de manter uma vasta quantidade de pessoas unidas em uma sociedade de alguma forma coesa. Insurreições de guerrilhas mascaradas são o caminho recentemente utilizado numa tentativa desesperada de consciência contemporânea.
Sobre a falta de foco perceptível no movimento de solidariedade pan-indiana na América Central, Gossen – como que ecoando a antiga percepção maia do Coração do Céu ao Norte como vazio negro – pergunta: “Qual a natureza deste centro vazio? Quem ou o que é o comandante do Subcomandante Marcos?”16 17 Esse comandante velado, ele conclui, é “a emergente alma coletiva do maia moderno.”18
No entanto, devemos nos lembrar da crítica que o antropólogo anarquista David Graeber fez, sobre a ideia de que as demandas zapatatistas só são relevantes num conflito insular pela autonomia indígena.19 Vital que isto é, Graeber aponta o fato de que, para os próprios zapatistas, sua luta é parte de um dilema global no qual estamos inescapavelmente engajados. Devemos negar sua visão limitando-a a ser um autocomentário?
Os zapatistas representam um esforço heroico para inverter a pirâmide, colocando a comunidade no centro. Eles percebem que a antiga prerrogativa dos reis de recapturar algo da clareza primordial, antes que o Coração do Céu enevoasse seu olhar, é algo a que devem aspirar na neblina política da modernidade globalizada. Mas precisamente por causa dessa globalização, essa proposta de democracia radical e busca por uma clareza deve também dialogar com o resto do mundo que está misturado. Nossas intuições devem todas atingir para além do próximo, percebendo e lutando contra as complexas maquinações globais que tentariam nos explorar.
Notas:
1. HENCK, Nick. Subcommander Marcos: The Man and the Mask. Durham, DC: Duke University Press, 2007. p. 319.
2. FREIDEL, David; PARKER, Joy; SCHELE, Linda. Maya Cosmos: Three Thousand Years on the Shaman’s Path. New York, NY: Harper, 2001, p. 50.
3. Ibid., p. 391.
4. GOSSEN, Gary. “Who is the Comandante of Subcomandante Marcos?” in GOSNER; KEVIN; OUWNEEL (Eds.). Indigenous Revolts in Chiapas and the Andean Highlands. Amsterdam: CEDLA. 1996. p. 112
5. Ibid., p. 109
6. FREIDEL; PARKER; SCHELE. Op. Cit., p. 112.
7. O povo Dogon de Mali, por exemplo, famosos pela controvérsia de terem identificado a pequena companheira de Sirius sem ajuda astronômica moderna, possuem um mito de criação complexo no qual a semente do mundo, tendo gasto sua força criativa, “enrolou-se em si no Norte, […] os Dogon fazem referência a Estrela do Norte, ou Polar, como “olho do mundo”, acima do axis mundi”, in LEVENDA, Peter. Stairway to Heaven: Chinese Alchemists, Jewish Kabbalists, and the Art of Spiritual Transformation. New York, NY: Continuum. 2008. p. 107.
8. GOSSEN, Op. Cit., p. 116.
9. Ibid., p. 110.
10. FREIDEL; PARKER; SCHELE. Op. Cit., p. 52.
11. GOSSEN, Op. Cit., p. 112.
12. Ibid., p. 113.
13. FREIDEL; PARKER; SCHELE. Op. Cit., p. 265-267.
14. HUSTON; STUART. In GOSSEN. Op. Cit., p. 113.
15. Ibid., p. 113.
16. Ibid., p. 109.
17. Sobre o “vazio central” de poder em política radical, também podemos refletir sobre a figura de Héstia, deusa grega do lar, família e estado. Jean-Joseph Goux, em sua análise de Héstia e sua contraparte romana Vesta, percebendo a total falta de representatividade dessa deusa, nota que juízes recorriam a Héstia para “encontrar a honestidade e pureza interna (integridade espiritual) necessária para administrar a justiça” na República de Platão. Essa ‘alma’ e ‘consciência’, continua Goux, “não são o ego, com sua vontade heroica, nem aquelas que perpetuam os mandamentos internalizados do pater/legislador; elas se referem ao vazio interno e central do ‘self’ que só pode ser apreendido como chama pura, dialética e ainda sim sempre idêntica a si no tempo. É por isso que, mais uma vez, a invocação de Héstia no início e fim de cada ritual garante uma mentalidade indispensável para uma relação apropriada com os deuses. Héstia deve ser a primeira invocada em cada cerimônia e sacrifício como se necessária, antes de invocar as imagens ou evocar a presença de outros deuses, para primeiro confrontar esse vazio, que permite às imagens divinas se mostrarem em sua santidade e autenticidade. O que é esse centro que é, para enumerar diversos aspectos, doméstico (centro da família), cívico (centro da cidade) e também, sem dúvida, subjetivo (centro da alma), e que é significado por uma deusa irrepresentável? Essa pergunta é tão psicológica quanto política. Que tipo de coletividade mantém em seu centro um ‘eu cívico’ – um templo do feminino sem imagens – que não é idêntico ao poder executivo paternalista e fálico? Que lugar é esse, esse foco vazio – sem simulacro ou éfigie – que ainda sim e em si, assegura por sua continuidade a vida do estado, do lar e da alma? É significativo que essa chama de Héstia fosse dotada com os atributos da centralidade (espaço) e perpetuidade (tempo) e que fosse essa chama capaz de tornar pensável a unidade de um sujeito coletivo e sua permanência. Héstia nos permite pensar a centralidade em termos que diferem do ‘falo’. Assim parece que o centro, num universo que conhece e invoca Héstia, não é falocêntrico.” GOUX, Jean-Joseph. ‘Vesta, or the Place of Being’, in Representations. Vol. 1. Nº 1. 1983. p. 91-107.
18. GOSSEN, Op. Cit., p. 119.
19. GRAEBER, David. Fragments of an Anarchist Anthropology. Chicago, IL: Prickly Paradigm Press. 2004. p. 103-105. Disponível em Acesso em: 22 ago. 2017.
Fonte: Dreamflesh
Tradução: Augusto Fleck