Escrito por Giuseppe Gagliano
O mundo inteiro vive hoje sob o capitalismo. Mas o capitalismo de hoje não é idêntico ao capitalismo do século XIX e do início do século XX. O mundo vive hoje sob o capitalismo financeiro, desenvolvimento e radicalização das tendências inatas do capitalismo, afastando-se da criação de valor do capitalismo produtivo industrial para a virtualização e extração pura de valor. Iniciamos aqui a primeira parte de uma série que pretende analisar de maneira detalhada o capitalismo financeiro hegemônico hoje.
Ao longo da história humana sempre existiram grandes organizações hierárquicas que utilizam massas de seres humanos como componentes ou unidades servis; o sociólogo americano L. Mumford lhes deu o nome de “mega-máquinas sociais”. Exemplos clássicos de tais grandes organizações são o aparato administrativo-militar do Império Romano ou, no século XX, o aparato militar e burocrático da União Soviética. Também pertence à espécie das mega-máquinas o capitalismo financeiro, um sistema desenvolvido durante as últimas décadas com o objetivo de maximizar e acumular, na forma de capital e poder, o valor extraível tanto do maior número possível de seres humanos quanto dos ecossistemas, penetrando em todos os estratos da sociedade, da pessoa e da natureza.
E é justamente ao tema do desenvolvimento descontrolado do capitalismo financeiro que se dedica uma das principais obras do grande sociólogo de Turim, Luciano Gallino (1927-2015), intitulada “Finanzcapitalismo – La civiltà del denaro in crisi” (Einaudi, 2011) [Capitalismo Financeiro – A Civilização do Dinheiro em Crise].
Por sua abrangência, Gallino aponta que o capitalismo financeiro ultrapassou cada uma das formas anteriores de mega-máquinas, incluindo o capitalismo industrial, baseado na produção de valor. A extração de valor é um processo diferente da produção de valor, que se concretiza no trazer à luz um bem que não existia antes: uma escola é construída, árvores são plantadas, um novo medicamento é lançado no mercado. A extração é, ao contrário, um processo que visa aumentar o valor de uma mercadoria, mesmo artificialmente: você aumenta o preço das casas, manipulando taxas de juros ou condições hipotecárias, aumenta o ritmo de trabalho pelo mesmo salário ou impede que um sistema operacional concorrente se estabeleça, vinculando a venda de um PC à compra concomitante desse sistema. Capital e poder são as duas formas de acumulação de valor do capitalismo financeiro, são na verdade dois termos de significado idêntico, na medida em que capital é poder.
A presente discussão visa, de forma sintética, resumir e analisar alguns elementos que ajudam a compreender plenamente um fenômeno muito complexo como o capitalismo financeiro, a partir de suas raízes históricas e de sua matriz ideológica e teórica, analisando cuidadosamente sua fenomenologia evolutiva até os dias de hoje. Partindo das reflexões fundamentais de Gallino, vamos rever as causas profundas e imediatas que levaram à afirmação do capitalismo financeiro e os mecanismos, mais ou menos visíveis, através dos quais este último mudou radicalmente o paradigma cultural e a sociedade em que vivemos, até determinar uma nova civilização com características substancialmente homogêneas e unitárias: a civilização-mundo, na qual não há cidadania ativa e democracia. Finalmente, analisaremos os possíveis cenários futuros, as conseqüências devastadoras que a maximização do lucro teve no mundo do trabalho e na humanidade em geral, bem como as possíveis reformas, impossíveis mas necessárias, que poderiam pôr fim definitivamente a um processo sem limites e sem regras que poderiam levar definitivamente ao colapso de todo o sistema.
Na Raiz do Capitalismo Financeiro
A financeirização das empresas industriais recebeu um forte impulso a partir dos anos 80: os investidores institucionais, muitos dos quais fazem parte dos bancos, possuem agora 55% do capital de todas as empresas listadas nas bolsas de valores, de modo que, como resultado deste papel de proprietários universais, seu poder direto e indireto na governança das empresas tem se tornado cada vez mais decisivo.
Estes investidores impuseram aos gestores da empresa o paradigma que a governança corporativa deve ter como objetivo dominante a maximização do valor para os acionistas: o capital deve ser criado principalmente através do aumento do preço das ações na bolsa de valores, de fato o preço diário das ações, do qual depende o valor de mercado da empresa, é um dos fatores aos quais os investidores dão maior importância junto com os fluxos de caixa declarados por uma empresa.
O cumprimento forçado do paradigma de maximizar o valor para os acionistas levou à adoção de um novo conceito de empresa. Ela não é mais concebida como uma organização fortemente ligada aos interesses da comunidade local e do território onde opera, mas como um conglomerado de meios de produção e escritórios dos quais cada peça deve ser continuamente monitorada a fim de determinar se seu desempenho financeiro, seu fluxo de caixa, é igual ou superior ao das melhores peças da concorrência.
Se este retorno é elevado em si mesmo, mas ainda assim é apenas ligeiramente inferior ao da concorrência, essa parte da empresa deve ser reestruturada, vendida ou definitivamente encerrada. Cada uma dessas medidas leva obviamente à demissão da maioria, e às vezes de todos, seus funcionários. O único objetivo que a empresa deve perseguir é a criação de valor para os acionistas. A forma como ela cria é um elemento secundário, o principal objetivo é aumentar o valor de mercado da empresa, e em comparação com este objetivo o faturamento, o tamanho da produção, o emprego são elementos completamente secundários. De fato, as avaliações financeiras formam a base das estratégias de reestruturação empresarial. Estas estratégias visam reduzir o emprego e aumentar o trabalho precário ou informal através da terceirização da produção.
Três Casos de Estudo: Kraft, Nestlé, Unilever
Um exemplo para entender o impacto econômico e social de tais estratégias é a indústria alimentícia, começando com as três maiores empresas que operam no setor, Kraft, Nestlé, Unilever. A Unilever, a terceira maior indústria alimentícia do mundo, reduziu drasticamente o número de funcionários entre 2000 e 2009 graças à sua estratégia chamada “The Way to Growth” [O Caminho do Crescimento]. Os funcionários que desapareceram da folha de pagamento da Unilever como funcionários permanentes foram acompanhados por um aumento dos trabalhadores informais. Os processos de reestruturação e suas conseqüências são bem ilustrados por esse tipo de plano.
Outro caso emblemático de terceirização da produção é representado pela Mirafiori, de Turim: nesta fábrica se produziam 4/5 dos componentes dos carros da FIAT. Hoje, mais de 75% de um carro Fiat é fabricado por centenas de fornecedores externos.
Na Itália se conservou, fundamentalmente, a função de coordenar a produção de milhares de fornecedores, pequenos, médios e grandes, localizados em quatro continentes diferentes, canalizando o fluxo para um número reduzido de montadoras finais. A terceirização global tende a gerar efeitos negativos sobre o emprego, as relações industriais e as relações entre grandes empresas, das quais se originam os pedidos, e os diferentes níveis que utilizam. Em geral, a terceirização tem levado a conflitos entre fornecedores, trabalhadores, regiões, tanto dentro de um mesmo país como entre países diferentes. É uma receita tão eficaz para melhorar o balanço financeiro, quanto homicida para o emprego, tanto em termos de quantidade como de qualidade, níveis salariais e proteção social.
Este processo de concentração vem de longe e remonta ao final do século XIX e início do século XX, atingindo dimensões perturbadoras hoje: as maiores fusões e aquisições durante os anos 90 e início dos anos 2000 nos EUA e na UE mudaram radicalmente a face da indústria mundial. Mas com que capital essas fusões acontecem? Como nem mesmo os grandes grupos econômicos estão em condições de colocar em cima da mesa dezenas de bilhões de seu próprio dinheiro, tais operações são financiadas por um amplo recurso à dívida e a grandes empréstimos junto aos bancos. De forma especulativa, empresas que querem se proteger contra fusões incorrem em dívidas para comprar grandes volumes de suas próprias ações, a fim de aumentar seu preço de mercado e desencorajar potenciais compradores.
A Alma Especulativa do Capitalismo Financeiro
Todo o sistema é baseado em uma psicologia especulativa que torna muito frágil o sistema inteiro, que não se funda na suposição do velho capitalismo, baseado em uma forma de competição respeitosa e de criação de valor, em sua maioria extraída do trabalho humano, mas em uma forma de competição coercitiva ou destrutiva que força investimentos maciços mesmo quando é claro, a priori, que seu retorno será pobre. Portanto, um efeito colateral das fusões e aquisições realizadas para eliminar a concorrência indesejada tem sido a formação de um forte excesso de capacidade de produção na presença de mercados estacionários, já que agora eles se tornaram meros mercados de substituição. A financeirização de grandes empresas industriais teve, entre suas etapas mais importantes, a formação de monopólios e oligopólios através de extensas campanhas de fusões e aquisições.
Este fenômeno tomou o nome de fusionite. Entre os fatores que favoreceram este fenômeno está o fato de que o neocapitalismo não se baseia mais na livre concorrência. Com demasiada freqüência isso leva a sérios problemas. Para enfrentá-lo, precisamos investir em pesquisa e desenvolvimento, novas fábricas, novos produtos, a invenção de novas estratégias industriais e de marketing. Parece mais promissor, quando uma empresa é identificada como um concorrente sério, procurar comprá-la. De fato, foi demonstrado que, em geral, a compra acaba custando muito menos do que a criação de uma nova empresa. De longe a maior vantagem esperada de uma fusão ou aquisição é que ela aumenta significativamente os títulos das empresas envolvidas. No que diz respeito à concorrência e ao livre comércio, baseado na oferta e na demanda, o neocapitalismo ou capitalismo financeiro difere significativamente do capitalismo industrial: primeiro porque o volume de negócios, o tamanho da produção e o emprego acabam se tornando fatores secundários, em comparação com o valor de mercado de uma empresa.
O Novo Capitalismo e o Direito do Trabalho
Esta mudança do capitalismo industrial para o capitalismo financeiro teve entre suas repercussões uma profunda deterioração das condições de trabalho em todos os países da OCDE. Este processo tem sido habilmente acompanhado por políticas fiscais favoráveis às rendas elevadas, pelo enfraquecimento dos sindicatos e pelo conflito sistemático entre, como já foi dito, os trabalhadores dos países desenvolvidos e dos países emergentes.
Outro caso representativo, entre os muitos observáveis, foi o da fábrica da Fiat em Pomigliano d’Arco, na Campânia, Itália. Em 2010, a caixa de Turim apresentou um plano de reorganização da produção que impôs a seus 5.000 trabalhadores condições de trabalho muito duras em termos de número de turnos, aumento das restrições de trabalho, ritmos acelerados, redução das pausas, aumento das horas extras; condições de trabalho muito semelhantes às introduzidas alguns anos antes na fábrica polonesa em Tichy. Complementando esta comparação inicial entre o antigo sistema econômico, baseado na livre concorrência e no livre comércio, e o novo, baseado no monopólio ou oligopólio, e esta reflexão preliminar sobre os efeitos da financeirização das empresas, pode-se ver como isto influenciou até mesmo a escolha e o comportamento dos gerentes: os gerentes das empresas freqüentemente saltam de um setor para outro com facilidade. Tudo isso se torna possível pelo fato de que esses profissionais devem possuir habilidades ou experiência na movimentação através dos labirintos do sistema financeiro em suas muitas partes visíveis e sombrias. Também neste caso, as origens deste fenômeno não são novas, e se remontam ao final do século XIX e início do século XX, quando empresários que tinham criado grandes empresas pela capacidade de dominar os aspectos técnicos e organizacionais de um determinado setor produtivo tiveram que dar lugar a especialistas em operações financeiras.
Entretanto, deve-se reconhecer que durante algumas gerações permaneceram numerosas indústrias que essencialmente cuidavam das características da produção e não do preço diário das ações na bolsa de valores. Era a era do capitalismo gerencial baseado na produção. Desde os anos 80, ao contrário, este deu definitivamente lugar ao capitalismo gerencial acionário.
No contexto deste último, um gerente que se mostra hábil na aplicação das estratégias e táticas mais adequadas para aumentar o preço das ações, e com isso o valor de mercado da empresa, é decididamente preferido pelos acionistas a um gerente que, ao invés disso, se dedica às complicações do processo de produção relacionado. Deve-se notar também que as habilidades financeiras que vêm antes das habilidades de produção para selecionar gerentes através de verdadeiras caçadas de talentos não garantem de fato o sucesso contínuo da empresa: os enormes desastres financeiros das empresas industriais, que ocorreram na primeira década de 2000, tiveram como protagonistas, em vários casos, os melhores gerentes selecionados e estimados com base em suas habilidades na área financeira, não necessariamente técnicas. As próprias empresas exigem que os gerentes aumentem o curso de ação a qualquer custo, dando origem a um comportamento irresponsável que leve em conta os interesses da comunidade: não é coincidência que hoje falemos de responsabilidade social corporativa no chefe dos estudos econômicos. Quando o preço das ações se recusa a subir, ou quando os lucros não aumentam, ou, pior ainda, quando ocorrem perdas substanciais, o gerente é induzido a dar a entender que a empresa está operando de modo a garantir que as ações subirão a curto prazo. Razão pela qual os acionistas e as autoridades de supervisão se veem recebendo informações manipuladas.
Principalmente o capitalismo financeiro, baseado na extração de valor do investimento de dinheiro, explora a redistribuição da riqueza-lucro/receita, em detrimento de outras fontes de renda, obtida através da manipulação de preços para fins especulativos, queda de salários, privatização de serviços estatais ou exploração internacional, em suma, uma redistribuição de baixo para cima.
Fonte: Osservatorio Globalizzazione
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