Biopolítica do Coronavírus (Parte X) – O Geronticídio Silencioso nos Asilos

Quantas pessoas estão morrendo nos asilos durante essa pandemia? Ninguém fala. Fechados como em tumbas, praticamente enterrados vivos. Isolados de seus entes queridos, bombardeados pelo terror midiático, medidas irresponsáveis de burocratas públicos e privados estão levando a um geronticídio mundial.

Este governo terá sido nojento até o final. Enquanto abria as prisões, estava trancando os asilos. Enquanto deixava 10 mil detentos à solta, aprisionava os idosos. Enquanto ele desconfinava as casas de detenção, confinava os lares dos idosos, todos eles colocados sob um regime de isolamento, ousaríamos dizer carcerário. Dois pesos, duas medidas. Uma escolha conveniente para Macron e seu governo. Nenhum risco de motim nos asilos, nenhuma chance de os velhos tomarem seus carcereiros como reféns. É uma pena. Eles deveriam ter feito isso, pelo menos teriam sido ouvidos, pelo menos teriam morrido com suas famílias. A revolta dos velhos, que sonhavam apenas com isso. Nós o chamaríamos de movimento dos Coletes Amarelados.

Você sabia que existe um precedente, embora romancesco? A enorme e hilariante fábula de Olivier Maulin em “Ressaca” [Gueule de Bois](2014). Martirizados pelos funcionários, os aposentados ateiam fogo às lixeiras, criam um comitê de libertação, cobrem as paredes com inscrições vingativas – e depois atacam. E uma mesa de cabeceira na boca dos auxiliares médicos, paf! E uma cadeira de rodas na cara do diretor, bang! E um tribunal revolucionário na área social, pow! Ah, felicidade! Ah, honra reconquistada! Os idoso devem dinamitar, dispersar, ventilar. Um pouco de Raoul Volfoni nunca fez nenhum mal, especialmente nestas idades canônicas, e no canônico há o canônico. Mas, novamente, teria sido melhor se não tivéssemos entupido vovôs e vovós com ansiolíticos, comprimidos, purê de batata e supositórios e desenhos infantis. A camisa de força química e as atividades esquisitas são os melhores guardas penitenciários. Com isso, não é surpreendente que, por falta de avós matadores, tenhamos tido avós arruinados. Aos milhares. Despertem, velhos, antes de morrer, senão acabaremos como Don Diego, enfurecidos, mas impotentes e desesperados. Mesmo que para partir, melhor partir fazendo fumaça.

Morte por Decreto Governamental

O que há de terrível nesta porta fechada dentro da porta fechada de confinamento é que nossos idosos sentiam que estavam morrendo abandonados em asilos com falta de pessoal, e as famílias sentiam que os tinham abandonado de vez, no momento fatal. É só um adeus, jurou Olivier Véran. Pode apostar que sim! Não demorou um mês para que os asilos se transformassem em tumbas de residentes desconhecidos e cuidadores não reconhecidos.

O governo, sempre adiantado para meter os pés pelas mãos, correndo atrás de seu mês de atraso – atrasado, sempre atrasado, como diz o Coelho Branco – acrescentou solidão à solidão, abandono ao isolamento, confinamento ao confinamento, silêncio ao apagamento de vestígios e de responsabilidades. Esta é a função dos acrônimos, apagar tudo, a fim de manter apenas a dimensão neutra e administrativa da morte. EHPAD, quem sabe o que isso significa?[1] A acronimização do mundo é ainda pior do que sua anonimização.

Carlos V dormia todas as noites em um caixão: definição de asilo. Asilo é um quarto de hotel medicalizado, e em um hotel que não se chama Terminus. Preferimos os nomes floridos, as residências, os recintos, as margens, os jardins, as clareiras. Em nossa preocupação com a sanitização da realidade, o eufemismo, o doce merchandising, não há dúvida de que em breve serão renomeados Lar do Rubi ou Repouso do Karma. Teremos a impressão de ir ver o Dalai Lama e encontraremos Matthieu Ricard. Essa é uma boa piada. Um ideal de planta verde, uma filosofia de camomila e trânsito intestinal. Se você não estiver em coma, é impossível engolir estas infusões espirituais.

Por aqui o ouro branco

Aqui tudo é tabu. É luto antes do luto, um pé na cova, para os residentes, para as famílias. Quem quer ir para o asilo? Três quartos dos residentes não escolheram morar lá. É de partir o coração colocar os próprios pais lá. Nenhum de nós consentiria sem um sentimento de vergonha generalizado. Esta vergonha que não diz seu nome, os mercadores do sono eterno nos fazem pagar caro por ele. É deles a cupidez, é nossa a culpa. Para eles, o ouro branco, para os velhos, o grisalho dos dias que se embaralham e se confundem. Toda a sordidez do capitalismo salta aos olhos quando você se aproxima deste arquipélago cinzento. Como maximizar os moribundos? Ordenhando suas economias até o fim, cortando em tudo, os alimentos, os curativos, para construir margens de rentabilidade, até o momento em que manter os corpos seus corpos frágeis vivos custará mais do que deixá-los morrer. Capitalismo e pulsão de morte, como o falecido Bernard Maris costumava dizer.

Como fazer de outra maneira? Eu sei como. Há tantas doenças incuráveis, tantas Alzheimer avançadas, tantas co-morbidades, tanta distância, social, geográfica, que separam o ativo do inativo, o inativo do improdutivo, o improdutivo do indigente. Quem se ocupa destes últimos? A sociedade de serviços, é claro. Tudo foi terceirizado, tudo foi externalizado – tanto o privado como o público – até mesmo a morte. Asilo: aqui estão as solidariedades perdidas, primárias, orgânicas, familiares.

A Morte “Feia, Suja e Escondida”

Como se morre? Pergunta antiga. A mais bela das mortes, fora a morte de heróis no campo da honra, é a de Fontenelle, que partiu já quase centenário, em 1757, “de uma dificuldade de ser”, docemente, sem sofrimento, em uma nuvem de algodão e suavidade, num estado de ausência de peso do qual desapareceu toda a dor, rodeado pelos seus, em paz. O sonho. É como dizer adeus em um filme, com uma pequena pressão da mão, os olhos meio fechados já aspirados pelo nada. Tudo menos a morte solitária, a pior das mortes, como em “A Morte de Ivan Ilyich”, o conto atroz de Tolstói, Ivan Ilyich trancado no campo fechado de sua dor, isolado do mundo que só o alcança através da frivolidade dos seus. Sozinho em seu canto, já muito distante. A sobremedicalização nos condenaria todos à morte de Ivan Ilyich? Três em cada quatro mortes no hospital (metade de todas as mortes ocorrem lá) ocorrem sem a presença de um próximo.

Era isso que deveria acontecer, manter a morte muito longe, mantê-la à distância porque mantém a maior parte de nossas vidas à distância, enviar os indigentes de volta ao mundo dos mortos, empurrar os cemitérios para o mais longe possível das cidades. O que Philippe Ariès diz sobre a morte – “feia e escondida, e escondida porque é feia e suja” – vale muito bem para a velhice. Ela encontrou refúgio nestes estabelecimentos especializados.

O Mito da “Idade de Ouro” da Velhice

Não se trata de perseguir uma “idade de ouro” da velhice. Ela nunca existiu, é uma lenda rústica. Os idosos não eram mais reverenciados no passado do que são hoje, ou ainda menos. Molière os cobriu com todos os ridículos, do careta até o mesquinho. A Renascença os desprezava ostensivamente. Antes, não era melhor nem pior. Nesse ponto, Simone de Beauvoir está certa. Os velhos têm sido tratados de todas as maneiras possíveis, em todas as idades: mortos, abandonados, honrados. Somos menos cruéis e mais hipócritas.

Foi somente no século XVIII que o status da velhice ganhou prestígio. Para se ter uma idéia disto, Philippe Ariès nos convida a comparar o tratamento da velhice nos quadros de Rembrandt (século XVII) e os de Greuze (século XVIII). A diferença é marcante: lá ele está sozinho, aqui está cercado, como um nobre patriarca e chefe de família à sua cabeceira. Vamos deixar o marechal em paz por uma vez, é a Revolução, não a nacional, que instituiu festivais para quase tudo, e que dedicou uma aos Velhos.

Os historiadores das mentalidades têm sido capazes de falar sobre o nascimento da infância, talvez devêssemos falar sobre o nascimento da velhice. Ser-nos-á dito: Cícero e Sêneca não esperaram por nós para celebrar a velhice. É claro. Mas a velhice é um fenômeno relativamente novo, pelo menos a sua democratização, uma conseqüência do aumento da expectativa de vida. Novo e breve. Ela será finalmente acarinhada por apenas dois séculos, não muito mais. As novas tecnologias a desvalorizaram repentinamente. Conectada a uma rede de baixa tensão, a velhice se tornou novamente uma antiguidade.

Nem crescer nem envelhecer

A velhice em nome próprio, aquela que está inscrita em nossas artérias, só nos recordam quando os dois grandes mitos da sociedade comercial deixaram de atuar sobre nós, os dois mais propensos a despertar um intenso desejo de consumo: Peter Pan, aquele que não quer crescer, e Dorian Gray, aquele que não quer envelhecer (incluídos os adultos). Como em “Admirável Mundo Novo”. No romance de Huxley, não há mais pessoas idosas. A velhice se foi. Em todos os lugares, a adolescência (não confundir com os adolescentes) tomou conta. Aqui somos um pouco como os homossexuais no sentido de que Paul Morand, um homofóbico desgrenhado, compreendeu a homossexualidade, passando sem transição da juventude para a velhice. Em nosso mundo, a fruta nunca atinge a maturidade, ela é por muito tempo verde demais e em um último suspiro mole demais (que os amantes de Morand fiquem tranquilos, ele não o diz em termos tão monótonos).

Paul Yonnet, que será discutido mais tarde, aponta que se a estética do rock é tão predominante em nossas vidas, é precisamente porque ela é uma “cultura da introdução”. Esta incapacidade de terminar é uma característica da adolescência, prolongada ou não. O epílogo, o ponto de não retorno, a oração é devolvida à velhice.

O Recuo da Morte

Sobre a morte, sobre o individualismo, Paul Yonnet escreveu um livro enorme e brilhante que, ironicamente, sua morte brutal deixou inacabado, “Família. Tomo I. O Recuo da Morte: O Advento do Indivíduo Contemporâneo” (2006). Sua tese é uma das mais originais e convincentes, em uma palavra: “o recuo da morte”. É um fenômeno sem precedentes, que ocorre com baixo ruído na longa história da humanidade, diz ele, como a descoberta do fogo. Há um antes predefinido e um depois indefinido, que se espalham um pouco como um terremoto surdo, mas com réplicas em série. Duas cifras, não mais, para ilustrar esta revolução antropológica: de meados do século XVIII até os dias de hoje, a mortalidade materna foi dividida por 131, e a mortalidade infantil por 69. O resultado é que a morte tem se retirado gradualmente do teatro da vida cotidiana. As conseqüências deste desaparecimento, todas elas muito significativas, são inumeráveis. A primeira deles, que condiciona as outros, é o nascimento de um novo sentimento, porque, salvo acidentes, todas as crianças serão chamadas a viver e todas as mães serão chamadas a não morrer: a criança do desejo de uma criança, a criança amada, mimada, em breve a ser divinizada, já individualizada. In-di-vi-du-a-li-za-da: a palavra é central porque o indivíduo se torna o centro do mundo, a montante da lei que só dará a ele uma tradução jurídica.

Se o homem contemporâneo experimenta tal sentimento de invulnerabilidade, é precisamente por causa desse mesmo recuo em relação à morte, uma morte que a maioria de nós quase nunca encontrará na maior parte de nossa existência. É este esquecimento da morte que está na base de nossas vidas, sua “excepcionalidade”. Fora dos tempos de guerra, somos saudáveis durante a maior parte de nossas vidas. Vamos morrer de velhice, outra conseqüência. No início do século XIX, as mortes com mais de sessenta anos de idade representavam apenas uma em cada três mortes. Hoje, 80% das mortes ocorrem após os 70 anos de idade. Mas nós morremos sozinhos, fatalidade do individualismo.

Alta do Desespero de Vida

Apesar disso, a vida será sempre resumida no título do livro de Gabriel García Márquez, “Crônica de uma Morte Anunciada”. Mas quanto mais se adia o prazo, mais tempo é adiado, mais tempo é esticado infinitamente. Prolongá-la é a palavra de ordem. Ela deve ser prolongada. O verbo, em sua forma intransitiva, diz a crueza da coisa. Eles nos prolongam, nos fazem durar, quantas vezes já ouvimos este lamento de velhice. Mas o que somos nós prolongados? Um estado depressivo (40% dos idosos em instituições sofrem de depressão), uma sonolência do ser, curvas de desespero?

Logo talvez a morte se apresente como em “Ubik”, o romance de Philip K. Dick. Seremos mantidos em estados de semi-mortalidade cerebral, vegetativos, congelados criogenicamente, mumificados, com para cada um de nós um remanescente de consciência colocado em espera, um punhado de horas, não mais, carregado no saldo de um cartão de crédito que permitirá que nossas famílias venham conversar conosco por alguns minutos no Dia de Todos os Santos até que as fichas se esgotem. Depois disso, as luzes se apagarão de vez.

Notas da Tradução

[1] – EHPAD é acrônimo para Établissement d’hébergement pour personnes âgées dépendantes, ou “Estabelecimento de abrigo para pessoas idosas dependentes”, um eufemismo para asilo.

Fonte: Revue Éléments

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François Bousquet

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