Em seu livro Contra o Mundo Moderno: Tradicionalismo e a História Intelectual Secreta do Século XX [1], o estudioso contemporâneo e historiador do Tradicionalismo, Mark Sedgwick, baseado em pesquisa sobre as fontes filosóficas da visão de mundo correspondente do fundador do Tradicionalismo, René Guénon, avança na hipótese de que o movimento Tradicionalista, em sua asserção da Sophia Perennis (Perenialismo) e a “Tradição Primordial” como teoria fundadora, não se baseia em fontes “míticas”, exóticas e “Orientais”, mas sim na tradição filosófica Ocidental, cujas raízes podem ser rastreadas no Platonismo Renascentista de Gemisto Pletão, Marsilio Ficino, Pico della Mirandola, Agostino Steuco, etc. A corrente que tomou forma neste círculo elevou a figura de Sophia e a noção correspondente sore uma “Teologia Primordial” (como na Prisca theologia de Steuco), e o conteúdo desta teologia é resumida pelo Platonismo, neoplatonismo e Hermetismo, que foram redescobertos na Europa Ocidental, graças às traduções de um amplo espectro dessas correntes, cujos textos foram trazidos por Pléton desde Bizâncio no período final antes de sua queda. Embora a tese de Sedgwick pareça para muitos tradicionalistas como um “desnudar”, de modo geral essa análise sobre os círculos intelectuais de neoplatônicos renascentistas e suas ideias demonstra uma convergência considerável com as visões de Guénon e seus seguidores.
Por sua vez, os trabalhos da dama inglesa Frances Yates, dedicados a essas mesmas correntes intelectuais da Renascença e Modernidade europeias [2], demonstram a imensa influência que o Platonismo exerceu sobre a formação filosófica, científica e política desse período transicional. Tanto Sedgwick quanto Yates mostram como um significativo número dos fundadores da visão científica moderna eram, de fato, amplamente inspirados pelas ideias místico-religiosas neoplatônicas, ainda que apenas um lado de seus trabalhos – ligado ao empiricismo, racionalismo, mecanicismo, etc – adentraria o cânone científico da Modernidade, enquanto o misticismo e “Perenialismo” da Renascença seriam deixados “atrás da cortina”, ou alternativamente interpretados em direções naturalistas, panteístas ou deístas. Um exemplo proeminente disso é Isaac Newton, que foi tão alquimista e cabalista por um lado, quanto mecanicista e racionalista por outro. Mircea Eliade, historiador das religiões, que em sua juventude participou do movimento Tradicionalista, desenvolveu sua perspectiva propondo que observemos a topografia progressista e racional-científica da filosofia Moderna como um produto da secularização do Hermetismo europeu.
Essas considerações levaram Sedgwick a reconsiderar a influência do Tradicionalismo na filosofia, ciência, e até certa medida, na política do séc. XX. Esse movimento, no coração da Modernidade e aparecendo em nova forma como filosofia desenvolvida por René Guénon, Julius Evola e um largo círculo de pensadores sobre os quais os dois tiveram grande impacto, foi muito mais significante e importante do que pode ser julgado por mera familiaridade. Ao mesmo tempo, eles parecem ser de algum modo mais modestos e até um certo ponto, marginais. Na nascente da Modernidade está o universalismo Platônico, que tornou-se a base ideológica para a proclamação de um universalismo da filosofia racional na Europa pós-medieval. Gradualmente, a maior atenção foi atraída para o lado tecnológico desse movimento, na direção de empiricismo e racionalismo puros, enquanto a dimensão metafísica foi negligenciada e descartada como custo e resquício da “irracionalidade Medieval”. No entanto, seguindo este esquema, parece que com a exaustação da filosofia racionalista tecnocrata, do cientificismo de Bacon e o dualismo Cartesiano da era Moderna, esse segundo lado, que estava há muito recuado para a periferia, passou a reconquistar notoriedade. O Tradicionalismo de Guénon tornou-se um manifesto desenvolvido. Daí o crescimento de significado do Tradicionalismo em correlação com uma consciência mais abrangente e profunda sobre a “crise do mundo moderno”. Assim, na transição para a pós-modernidade, a modernidade lembra mais uma vez de suas “raízes ocultas”. O Iluminismo, agora questionado, volta-se para seu princípio Rosacruciano.
Esta hipótese de Sedgwick e Yates é compartilhada por vários outros autores, e é produtiva. No mínimo, ela eleva o status do Tradicionalismo ao de uma das mais importantes correntes filosóficas a emergir no momento crítico de exaustão da agenda científica e racional clássica da Modernidade, e com a formação das primeiras teorias pós-modernas sujeitando a modernidade à sua desconstrução. Se reconhecermos que no coração da Modernidade, que alega serem o racionalismo e progressismo as fundações de seu universalismo, perduram visões irracionais que apelam à antiguidade profunda por substância, isto é, o universalismo Platônico-Hermético-místico das tonalidades perenialistas e sofiológicas, então a própria Modernidade aparece sob uma luz completamente diferente, e as críticas pós-modernas consequentemente adquirem outro argumento, nomeadamente, que a Modernidade não era o que dizia ser, mas apenas uma versão mal disfarçada e mascarada da sociedade tradicional que ela visava sobrepor, anular e desmantelar.
Por outro lado, o próprio Tradicionalismo aparece então como um fenômeno que enquanto crítico da Modernidade, pertence a ela. Não se trata de uma simples “continuação da Tradição” por inércia, mas uma filosofia simultaneamente específica e critica que refuta a Modernidade e sujeita-a a impiedosas críticas sob a base de um conjunto especial e complexo de ideias e teorias que, somados, constituem um “Perenialismo” ou “esoterismo universal” que, deve ser notado, não coincide com qualquer tradição singular realmente existente. Assim, estamos a apenas um passo de reconhecer o Tradicionalismo como “construção”. O potencial revolucionário, crítico e moderno da filosofia Guénoniana foi acertadamente notado pelo tradicionalista René Alleau, que propôs considerar Guénon ao lado de Marx na constelação de revolucionários radicais e críticos da civilização moderna. [3]
Da Prisca theologia a René Guénon
Uma série de conclusões interessantes podem ser extraídas da análise que Sedgwick faz. [4] Aqui nos fixaremos meramente em um ponto, a unidade conceitual do Tradicionalismo no séc. XX (Guénon, Evola, etc.) e do Platonismo Renascentista (Pléton, Ficino, Steuco, etc.). Essas duas correntes podem ser generalizadas sob a noção do “Perenialismo”.
Se podemos historicamente traçar as inspirações filosóficas de Guénon à Renascença, que o próprio Guénon critica duramente por não compreender a sacralidade medieval, e se lá podemos encontrar as primeiras formulações da Sophia Perennis ou Prisca theologia que compõe as fundações da filosofia Tradicionalista, então torna-se completamente óbvio que essas correntes provém da Europa Ocidental e na Renascença de um passado ainda mais distante, e até certo ponto, de diferentes contextos culturais (mais especificamente, o greco-bizantino). É claro, o Platonismo já era bem conhecido pela escolástica medieval, mas há muito havia cedido ao Averroísmo e Aristotelismo consagrados dogmaticamente no realismo de Tomás de Aquino. O Hermetismo havia existido na forma de correntes alquímicas e fraternidades esotéricas, mas na Renascença essas tendências emergiram de forma vívida e magistral, como no Neoplatonismo e Hermetismo filosófico (com elementos politeístas diretos e indiretos, diversos), que clamavam ser mais que mera tradição secreta e paralela ao escolasticismo dominante, mas uma visão de mundo fundacional e universal. O Platonismo Renascentista e o Hermetismo se opunham diretamente ao Tomismo católico e formularam a agenda da Renascença humanista. Esse humanismo era mágico e sagrado: o homem era compreendido como “homem perfeito”, o filósofo Platônico, o Santo Anjo Guardião.
Os Platônicos Renascentistas apelavam diretamente aos trabalhos de Platão, Plotino, Hermes Trismegistus, e o corpo amplo de teorias neoplatônicas e herméticas, muitas das quais eram recentemente traduzidas do grego. O humanismo platônico foi reformado em um bloco conceitual e teorético, tomando a ofensiva contra construções filosóficas e teológicas prévias. Os neoplatônicos justificavam suas reivindicações ao enfatizar a antiguidade de suas fontes e ao julgarem propor um paradigma filosófico que poderia generalizar as confissões religiosas, e como tal, era mais universal e profunda que o Catolicismo europeu. Essa síntese veio a incluir, ao menos, a Ortodoxia Bizantina, mas o programa reformista de Gemisto Pletão era ainda mais amplo, propondo a restauração de uma “teologia Platônica” como um todo, e um retorno a certos aspectos politeístas. O Platonismo, como o Hermetismo, não era simplesmente visto como uma de muitas tendências filosóficas ou religiosas, mas como uma “sabedoria universal” capaz de servir como chave às mais diversas filosofias e religiões, como um denominador comum. Essa ideia de uma meta-religião geral tornou-se a mais importante noção do movimento Rosa-cruz, e mais tarde, da Maçonaria europeia (como demonstra Yates).
Esse universalismo era substancializado por referência a um “Perenialismo”, à existência de algum modo de instância exclusiva em que todo a sabedoria do mundo, independente de sua peripeteia histórica, está presente e preservada nesse estado primordial “paradisíaco”. Essa “sabedoria perene”, Sophia, era o ponto de partida que permitia a alguém examinar religiões e filosofias específicas como construções individuais e historicamente condicionadas, assim, alegando uma universalidade transcendendo toda e qualquer individualidade. Essa Sophia era cognoscível e, como se segue, aquele que participa nela, ama-a e se identifica com ela recebe acesso à “sabedoria absoluta”. O Humanismo Renascentista era então, sofiológico. Sophia era tratada como o Anjo da humanidade, o arquétipo ou eidos eternamente vívido, presente e jovial.
É, de todos os modos, possível que as alegações da Modernidade europeia sobre o universalismo de seus valores sejam traçados a essa fonte. Abandonado o ecumenismo católico, o messianismo cultural Ocidental demandava uma nova substância, e ela foi encontrada no “Perenialismo”: a nova Europa, pós-medieval, concebia a si mesma como privilegiada pela eterna e revelada Sophia, e sobre estes moldes os europeus modernos assumem o mandado como novos mestres e conquistadores do mundo, vendo a si mesmos não como meros colonizadores raptoriais, mas como portadores de um conhecimento superior e universal. Isso explica a incandescência especial durante a era das descobertas geográficas e o chamado (de Francis Bacon) para a descoberta de Atlântida não somente nas novas colônias, mas no Velho Mundo em si. Desta forma, o Platonismo Renascentista e seu Perenialismo correspondente devem ser considerados um importante fator na formação estrutural da Modernidade como um todo. O universalismo profano da Europa progressista e racionalista está enraizada no supra-racionalismo sagrado dos platônicos renascentistas orientada para a eternidade e antiguidade profundas.
A Construção de Sophia
O caráter “construtivista” do Neoplatonismo renascentista nos é óbvio. Podemos facilmente traçar como e sobre quais fontes ele foi construído. O Poimandres e Asclepius herméticos atribuídos à Hermes Trismegistus, assim como os diálogos cosmológicos e antropológicos de Platão (Timeu, República, Leis, Simpósio, etc.) foram entendidos por sua universalidade e interpretados pelo espírito das sistematizações neoplatônicas de Plotino e seus seguidores. O Neoplatonismo situa Sophia como seu principal conteúdo, seu holograma filosófico sistematizado. E é através desse prisma que outras religiões e sistemas filosóficos eram interpretados como casos individuais de um paradigma perene geral. René Guénon agiu de forma aproximada, conforme empregou um sistema de visões metafísicas, cosmológicas e antropológicas para examinar as várias tradições, religiões e o próprio mundo moderno como uma negação dos anteriores, e, em sua fase final (a abertura do ovo por baixo), uma paródia deles. Nenhuma religião, teologia ou sistema filosófico contém matriz paradigmática com a qual Guénon operou. Mas é com a ajuda desta matriz, tirada de outro lugar, que religiões históricas, teologias e filósofos eram tratadas e interpretadas por ele com sucesso. Guénon se baseou na “tradição primordial”, sanatana dharma, ou Sophia Perennis, e ele extraiu seu conhecimento diretamente dali. Os platônicos da Renascença agiram do mesmo modo.
Com Sophia, tanto os platônicos renascentistas quanto Guénon no séc. XX desconstruíram o resto. O próprio algoritmo de suas desconstruções era, por outro lado, representado por uma construção: Sophia.
O “Logos Sombrio” do Neoplatonismo
O caráter artificial do Perenialismo Renascentista é bastante transparente. Mas aqui a questão deve ser levantada: como se relaciona esse Platonismo da Renascença, que está nas origens do Tradicionalismo no séc. XX, com o Platonismo sobre o qual foi construído? Em outras palavras, seria essa natureza construtivista uma qualidade da Renascença antecipante à Modernidade, ou o próprio material sobre o qual a Sofiologia Renascentista foi construída empresta as bases para essa abordagem e apresenta qualidades convergentes?
Em relação ao Neoplatonismo (de Plotino até Porfírio, através de Jâmblico a Proclo e Damáscio), isso é quase óbvio: o Neoplatonismo apresentava um constructo desenvolvido sob as bases das principais ideias de Platão, mas em síntese com outros sistemas filosóficos, religiosos e místicos he-lênicos e do Oriente Médio. O Neoplatonismo era distinto por seu extraordinário inclusivismo: ele seletivamente incorporou reinterpretações platônicas de Aristóteles (e de acordo, uma reformulação de Stoa), Orfismo, Pitagorismo, Hermetismo egípcio, cultos sírios e da Ásia Menor (teurgia, oráculos caldeus), doutrinas iranianas e astrologia da Caldeia. Sobre as bases do Parmênides platônico e suas principais hipóteses, Proclo construiu uma elaborada “teologia Platônica” que foi continuada e substancialmente reinterpretada por Damáscio. Os comentários deste sobre Timeu descrevem profunda e detalhadamente uma cosmologia sintética construída sobre o princípio noocêntrico.
O sistema que os neoplatônicos tardios do período helênico construíram com sua metafísica aberta e um Logos dialético e apofático pode ser considerado, sem dúvida, uma versão inicial do “Perenialismo” que encontramos no Renascentismo. Nos trabalhos de Proclo, particularmente sua exegese, percebemos o esqueleto das variações tardias do Neoplatonismo, tanto religiosas quanto filosóficas. Suas teorias e métodos são sentidas inconfundivelmente no Areopagita, e além, em toda a tradição da “teologia mística” que tanto se espalhou pelo Ocidente (de Escoto Erigena até Meister Eckhart, Henry Suso e Jakob Böhme) assim como no Oriente. Podemos encontrar a dialética do Um incriado desenvolvida por Proclo nos trabalhos de pensadores islâmicos de Al-Falasifa, Ibn Arabi e a escola de Ishraq, onde definiu o drama da teologia e escatologia Ismaelita. Ademais, o clássico método de interpretações cabalísticas do Zohar e Kabbalah precoce reproduziam integralmente a fixação de Proclo em certas palavras e frases (e seus equivalentes numerológicos) dos diálogos Platônicos que em outros momentos pareciam apenas secundários. Henry Corbin acertadamente notou que Parmênides fora a Teogonia para Proclo, sobre a base na qual ele desenvolveria sua Teologia Platônica. O Parmênides platônico era uma espécie de Bíblia ou Escritura Sagrada para a Teologia platônica apofática e negativa.[5] Cada palavra de Platão estava sujeita a uma hermenêutica detalhada e compreensível. A ideia de que Platão era uma “vela” do Divino tornou-se um dogma neoplatônico ao seu modo.
O neoplatonismo concebia a si como uma tradição universal pela qual alguém poderia interpretar todas as religiões e sistemas filosóficos existentes. Era a religião do Logos, uma cosmologia noocêntrica e metafísica apofática alegando ser capaz de interpretar toda e qualquer forma de politeísmo, simbolismo e rito teúrgico. Seguindo os neoplatônicos gregos, esta ideia penetrou outros ambientes religiosos, como nos trabalhos de al-Farabi e Ibn Sina, os sufis, os filósofos de Ishraq, os versos iniciáticos de Rumi e os diários de Ruzbehan Baqli, até as doutrinas sintéticas de Haydar Amoli ou Mulla Sandra. Algo análogo também pode ser encontrado na Kabbalah, assim como no misticismo Cristão (com alguma reserva). Onde procurarmos, encontraremos a ideia de Sopia Perennis e universalismo espiritual, reproduzindo de uma forma ou outra, o “Logos Sombrio” noocêntrico e por vezes paradoxal e dialético dos neoplatônicos. Este Logos é “sombrio” porque postula a natureza preexistencial do Princípio (o Uno), a verticalidade do Logos está aberta para cima, e porque ele constante e repetidamente retoma as estritas leis da razão Aristotélica com seus princípios fundacionais do triunfo, negação, excluindo o terceiro. Em vez de clareza lógica, estamos lidando com um paradoxo, uma aporia ou ambiguidade suprarracional (anfíbola) evasiva, que exige uma alta arte dialética e leva o “filósofo (seja ele Sufi, adepto, iniciado) pela corrente vertiginosa de percepções e iniciações, so-bre cada novo elo do qual a consciência colapsa e é recriada de novo.
Tendo estabelecido esse estado das coisas, podemos facilmente estender a história do Platonismo Renascentista e seu construto perenialista de Sophia ainda mais de um milênio para trás. Gemisto Pletão e sua reforma neoplatônica em Mistra às vésperas da queda do Império Bizantino podem ser percebidos como uma ligação na transmissão direta dessa tradição dos últimos Diádocos da Acade-mia Ateniense expulsos por Justiniano, até Michael Psellos, ao fracassado neoplatônico dito herético John Italus, e o círculo florentino estabelecido por Marsilio Ficino ao redor do príncipe Cosimo Me-dici. Em adição ao ramo grego, também podemos considerar um “traço islâmico”, onde o Logos Sombrio da “teologia platônica” apofática tornou-se denominador comum de uma ampla gama de diferentes correntes representando o alcance da filosofia, teologia e cultura muçulmana. Outra rota atravessou a Kabbalah judaica, que era estruturada de acordo com o mesmo algoritmo. Finalmente, no mundo latino, vemos as numerosas correntes do Hermetismo, alquimia, misticismo, assim como todos os sectos gnósticos e correntes milenares (no espírito da doutrina dos Três Reinos de Joachim de Flore) que fluíram no oceano revolucionário renascentista. Ainda além da Renascença, seguindo Sedgwick, Yates e outros muitos autores estudiosos das ordens, lojas e seitas místicas e ocultas mo-dernas, podemos traçar a linha do Logos Sombrio através de materiais ainda mais seguros e bem estudados, de Giordano Bruno à Rosa-cruz, maçons, místicos e representantes do “ocultismo” entre os quais Guénon o descobriu e o colocou no coração de sua filosofia Tradicionalista completamente original e extremamente influente.
Assim, traçar a gênese desse construto de Sophia nos leva à história do Logos, conforme ela se desenrola na periferia da cultura ocidental europeia e, como nos mostra Corbin, no centro da tradição espiritual islâmica (onde o “Logos Sombrio” não era exclusivo e único, mas adjacente e por vezes rival do Calâm racionalista, atomismo Asharita, Fiqr e purismo Salafita). A difícil recepção da Kabbalah no mundo judaico e sua aceitação quase completa e final como ortodoxia impecável cobre ainda outra página da história. A Kabbalah judaica recai na esfera dos interesses neoplatônicos renascentistas, e nos trabalhos de Pico della Mirandola e Reuchlin (mais tarde de Knorr von Rosenroth) podemos detectar esboços de um projeto para estabelecer uma “Kabbalah Cristã”. Para além, mais uma vez através da maçonaria e hermetismo, a Kabbalah alcançaria Fabre d’Olivet, Eliphas Lévi, Papus, Saint-Yves d’Alveydre e o próprio Guénon. Em Guénon e seu “Perenialismo” revolucionário, todas essas numerosas correntes se unem para compor a visão de mundo mais moderna, ampla e sistemática.
Teoria como Pátria
Agora nos resta colocar uma questão final, nomeadamente: Até que ponto os neoplatônicos dos primeiros séculos criaram algo completamente único e original dos textos, ideias e tradições associadas a Platão, e até que ponto podemos encontrar algo similar nos próprios trabalhos do próprio Platão? Aqui os trabalhos do grande estudioso de Platão, Neoplatonismo e Hermetismo, o francês André-Jean Festugière, vem nos auxiliar. [6] Festugière chama nossa atenção para o significado imbuído na noção de “teoria” (θεορία) na era e na filosofia de Platão. Originalmente, essa noção queria dizer “inspeção”, “pesquisa”, “contemplação”, “meditação” ou “observação”. Na Grécia Antiga, em ambientes filosóficos, ela carrega duas sutilezas terminológicas:
Uma “teoria” era uma pesquisa sobre culturas e sociedades de povos diferentes, entre os quais o filósofo deveria viajar e habitar como parte de sua preparação para uma nova vida (por isso lemos constantemente sobre as viagens de filósofos a outros países: “viajar” é uma ocupação puramente filosófica). Por analogia com a pesquisa de diferentes povos, sociedades, suas religiões e sistemas de rito, uma “teoria” era a pesquisa de diferentes sistemas e conexões ideológicas levando a um princípio superior.
Essa conexão entre a viagem e contemplação teórica é extremamente importante. Teoria é a contemplação daquilo que é diferente, levadas a culminar em um modelo comum, universal. A doutrina de Platão das ideias em si é diretamente associada com a contemplação. A contemplação de ideias é “teorização” ativa, ou a distinção entre paradigmas comuns e imutáveis assim como fenômenos em constante mutação. Assim como o viajante filosófico helênico estuda as religiões e costumes de diferentes sociedade mediterrâneas, busca correspondência com a religião e tradição gregas, estabelece analogias e, quando necessário, revigora suas próprias visões religiosas e linguagem, também o filósofo helênico contempla ideias, a universalidade da ordem infinita das coisas e dos fenômenos. Existem muitas sociedades, religiões e cultos, e o viajante contemplativo se esforça para deduzir dessa pesquisa aquilo que é comum, aquilo que ele já identifica nos lugares onde passou e no que é novo, terras e países desconhecidos onde ele se encontrará. O caso é estritamente o mesmo com o mundo das ideias e no processo comparativo delas com o mundo fenomênico. Contemplação e teoria são construções do comum, a culminação de um modelo.
Em Platão, isso adquire um caráter distinto e saliente. Teoria como construção é simultaneamente iluminação, esclarecimento e absorção daquilo que é Bom. Ideias são indiferentes às coisas, mas não indiferentes aos que se esforçam por teorizar, quem elas apaixonadamente correm para encontrar, no alto. O campo teórico então transforma-se no espaço da epifania, onde ideias não são meramente refletidas, mas adquirem uma existência específica e são incorporadas na existência teórica do filósofo. Ao viajar até templos e santuários dedicados a vários deuses e ao presenciar diferentes rituais, o teórico (o que contempla) prepara-se para encontrar o verdadeiro Deus pelo qual todos os diferentes deuses de diferentes cultos servem como máscaras, nomes e mensageiros (anjos). Em diferentes ritos e cerimônias sagradas, o filósofo corre para o rito filosófico principal, o rito dos ritos, onde a principal realização a ser alcançada é a distinta fusão do cosmos noético com o cosmos estético, “realização das realizações”, o encontro mágico com Deus no mar revolto da multiplicidade. Mais tarde, este ritual dos rituais seria conceitualizado pelos neoplatônicos como teurgia.
Portanto, a Teoria de Platão não é meramente a preparação para algo – ativismo político ou ritos sagrados – mas uma forma superior de realidade, a expressão máxima da práxis concentrada. A contemplação é então obra dos deuses, e é seu descanso iluminado e fonte do prazer superior. Teoria é o lugar onde o ser, disperso na multitude e elusivo na diferença, é amarrado pelo nó da concentração intensa, se encontrado em união elástica e clareza brilhante. O filósofo contemplativo se coloca acima do sacerdote e do rei, pois ele ascende à zona da pura divindade, não diluído por fardos funcionais adicionais, e inteiramente livre da multiplicidade, tanto temporal (a mudança dos momentos) quando espacial (a mudança dos lugares). O cume dessa jornada, é o retorno à Pátria filosófica, onde não há mais tempo ou formas relativas. Teoria é a Pátria. Nada além da nostalgia impulsiona o filósofo a viajar por países e redes de ideias luminosas à procura de Sophia, a quem o filósofo ama com todo seu ser.
Este entendimento de Teoria ilustra como a filosofia platônica era o próprio universalismo sintético que generaliza diferentes sistemas filosóficos e conhecimento assim como o viajante generaliza a experiência das sociedades que testemunha. Portanto, Platão apresenta não um ponto de vista sobre uma ou outra questão, mas sempre múltiplos; eles tornam-se material para contemplação e, como degraus, levam à síntese superior. No pico desta síntese, ideias passam a viver além do texto platônico discursivo e revelam-se diretamente àqueles que seguiram Platão e os personagens de seus diálogos até o fim, onde os degraus rumo aos céus terminam. Ali se encerra o diálogo, mas não a teoria. Agora o filósofo deve dar mais um passo, desta vez sem Platão ou textos – o passo do pensamento, da iluminação, contemplação. O passo em direção aos céus. Somente lá o verdadeiro Platonismo – a “doutrina secreta” – começa. Não transmitida; só pode ser desvelada de forma independente, através da sagrada experiência da teoria.
Filosofia Aberta
Como formulador da teoria, como guia geográfico das ideias, Platão criou uma filosofia conscientemente aberta, na qual o ponto principal não é pronunciado, mas deve ser buscado e experimentado independentemente. Daí o termo “philosoph”, ou “amante de Sophia”, da Sabedoria. Se a questão fosse simplesmente quem carrega a Sabedoria, estaríamos lidando com um sistema fechado, isto é, algo individual. Não se pode aprender a Sabedoria, nem é possível dá-la. Só podemos alcançá-la através de imenso trabalho e ao custo de esforços incríveis. Filosofia é o reino onde mentes e corações se reúnem em sede apaixonada por Sabedoria, onde se apaixonam por Sophia e competem entusiasmados por sua mão. Ninguém recebe garantias. Só há amor. Liderados por Ela, eles embarcam em sua jornada, até a contemplação, a teoria. Eles se estabelecem nas proximidades de Sophia e se aproximam Dela cada vez mais. Eles buscam o universal, e assim eles mesmos tornam-se cada vez mais gerais, eidéticos, menos e menos individuais. Filósofos constroem a si mesmos na presença da Sabedoria. Purificando-se em Seus raios, eles revelam contornos cada vez mais distintos.
No caso de Platão, isso quer dizer que estamos lidando com o Logos como tal, em sua forma quase original, indefinida, ainda sob a possibilidade e abertura ou fechamento, entendido de um modo ou outro, ou concebido e delineado em um ou outro vetor. Em Platão, a filosofia é o impulso afiado de aproximação à Sophia Perennis, o salto no oceano da luz eterna, é práxis divina e contemplativa. Nesse sentido, a filosofia está acima da religião e do mito, enquanto religiões e mitos sejam apenas testemunhas do ator principal – Santa Sophia. Portanto, o próprio Platão pode ser chamado de “Perenialista” e, correspondentemente, Tradicionalista. Não importa se Platão aderiu à piedade civil grega e ofereceu sacrifícios aos deuses e heróis da polis. Tais aspectos eram parte de um culto filosófico muito mais importante e significativo: O culto de Sophia, o culto do Logos puro.
Platão enquanto Evento
Façamos a pergunta final. Teria o “Perenialismo”, Tradicionalismo, universalismo e o culto filosófico à Sophia começado com a Teoria de Platão? Sua doutrina e cosmologia Timeana?
Para Guénon e Tradicionalistas, tal personificação seria um escândalo. Mas ao perceber a conexão direta entre Platão e a “Tradição Primordial”, Tradicionalistas indubitavelmente passaria a ver Platão como o elo na áurea corrente de iniciados que se estende até a aurora da criação, o paraíso terreno, cujo acesso em nosso tempo tornou-se continuamente mais difícil, fechado e exclusivo, Kali Yuga, o “fim dos tempos”, a era da “grande paródia”. Tradicionalistas entendem o “Perenialismo” literalmente e de algum modo, ingenuamente. Isso pode ser percebido como uma resposta simétrica ao historicismo tão literal e ingênuo que predomina na Modernidade. Ainda sim, na proximidade do eterno, “antes e depois”, “agora e então” não são tão importantes. De fato, eles não querem dizer nada. O que importa é o que. Platão, como Zaratustra no Irã, pode muito bem ter sido tanto uma figura histórica quanto uma figura sagrada, como al-Khidr ou o Santo Anjo Guardião. Talvez existam múltiplos Platões. Isso quer dizer que o espírito platônico pode ser evocado (como Plotino fez no templo de Ísis); podemos suplicar a ele. Seu retorno pode ser aguardado, pois nada é irreversível na eternidade. Na eternidade, tudo é reversível – tudo inclusive já foi revertido. Na forma mais racionalizada, podemos aceitar que Platão meramente transmitiu conhecimento adquirido ao longo da cadeia iniciática, e nesse sentido foi um tradutor convencional que adquiriu fama apenas por virtude de importância das verdades que proferiu, como espécie de profeta filosófico.
Porém, Platão pode ser abordado de outras formas, por exemplo, como Evento no espírito do Ereignis de Heidegger. Isso nos distanciaria tanto dos perenialistas quanto historicistas. Platão e a filosofia “ocorreram”. Sophia foi designada e a geografia filosófica marcada. Se isso devia acontecer, aconteceria de uma forma ou outra – através de Platão ou outro, caso sejamos censurados sobre este assunto. Mas talvez seja melhor pensar diferentemente: Se Platão não tivesse existido, não haveria mais nada. Em particular, não haveriam qualquer nota nas margens de seus textos. Não haveria filosofia. Se Platão foi de fato divino, ele não pode ser subordinado a uma necessidade mecânica. Nada pode forçá-lo a isso. Além, se ele não tivesse arriscado tudo para tornar-se Platão, sua filosofia seria negligenciável. Portanto, Sophia pode não ter sido. Em outras palavras: Em vez de Sophia, da noiva oculta da ordem dos amantes, outra coisa poderia ser revelada a Platão.
A excepcionalidade de Platão (embora isso possa também ser errado e não corresponder à verdade) é mais existencialmente atrativa e produtiva que sua ligação com a corrente, mesmo a dourada. Sua divindade reside na sua humanidade.
O Tradicionalismo moderno é, claro, mais adequado que a profana filosofia acadêmica e mais próspera que a Pós-modernidade. Mas todos os sinais de transformação do Tradicionalismo em uma convenção, rotina, “escolasticismo”, de seu arrefecimento consciente de qualquer movimento vivo da alma ou do coração, são gritantes. Aqui descobrimos que o Perenialismo é um construto e sempre foi. O apelo de um Tradicionalista na direção de uma Tradição existente nada decide, assim como a reverência de Platão aos deuses paternos não exauriram sua filosofia.
Tradicionalismo é algo além da tradição. É um avanço para aquilo que é a tradição das tradições, o grão secreto, a teoria. Mas sendo teoria, um construto, precisa ser continuamente recriado. Um construto não é tão ruim se a questão é enraizada sob a luz da própria natureza humana. Ao criar, o homem cria a si. Portanto, o Tradicionalismo deve acontecer ou desaparecer. Suas reivindicações são grandes demais e a barra estabelecida por Guénon e os Sofiologistas que fundamentaram sua dou-trina é muito alta. Perenialismo significa que Sophia é Perennis: está aqui e agora. Mas como relacionamos Kali Yuga, nosso “agora” abandonado por Deus e a lixeira do mundo global e Ocidental moderno, nosso “agora” vil e desolado, com o Santo Anjo Guardião, a luz do Grande Amor, e a natureza do homem como ser alado e divino? Os gnósticos ofereceram uma resposta dualista que em muitos momentos parece ser a única aceitável e aplicável a nós. Mas isso não é simplesmente um reconhecimento de nossa fraqueza, nossa inabilidade pessoal em transformar a “Capa” no “Espelho”, Ausência em Presença, apofania em epifania, oculto em revelado? Não seria como assinar o atestado de óbito do Logos, a insuperabilidade do niilismo Ocidental, ou reconhecimento do mundo fechado e autorreferencial como único possível e real?
Tradicionalistas frequentemente abordam a “grande paródia do mundo moderno. Isso é verdade, mas não serão eles também uma paródia? Afinal, não só Guénon, mas Neoplatônicos e o próprio Platão podem todos ser parodiados.
As discrepâncias entre Tradicionalismo e Heidegger não impediram Henry Corbin de abordar o Neoplatonismo no Islã com amor e refinamento delicado durante o curso de sua vida. Tal é o comportamento de um homem vivo que responde ao sussurro de Sophia não importando onde ele ecoa.
Hoje, esse sussurro está mais silencioso que nunca. Mas jamais pode ser tão silencioso ao ponto de tornar-se indistinguível. Devemos aprender a ouvir o silêncio, pois o silêncio por vezes transmite coisas extremamente significativas.
Notas
[1] Mark Sedgwick, Against the Modern World: Traditionalism and the Secret Intellectual History of the Twentieth Century (Oxford: Oxford University Press, 2004).
[2] Frances Yates, The Art of Memory (São Petersburgo: 1997); Ibidem., The Rosicrucian Enlightenment (Moscou: Aleteia, Enigma, 1999); Ibidem., Giordano Bruno and the Hermetic Tradition (Moscou: Novoe literaturnoe obozrenie, 2000).
[3] Réné Alleau, De Marx à Guénon: d’une critique ‘radicale’ à une critique ‘principielle’ des societés modernes (Paris, Les dossiers H., 1984).
[4] Aspectos dessa questão já foram abordadas em: Alexander Dugin, Postfilosofiia (Moscou: Eurasian Movement, 2009).
[5] Henry Corbin, Le paradoxe du monothéisme (Paris, 1981).
Fonte: Eurasianist Archive
Tradução: Augusto Fleck