Chove na tarde fria de Porto Alegre
Trago sozinho o verde do chimarrão
Olho o cotidiano, sei que vou embora
Nunca mais, nunca maisChega em ondas a música da cidade
Também eu me transformo numa canção
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aíRAMIL, Vitor. “Ramilonga”
Na pluralidade austral de nosso belo continente, a região que compreende o Rio Grande do Sul, a Argentina, e o Uruguai, também reconhecida como “Região do Prata”, possui características muito especiais em relação aos seus vizinhos e irmãos latino-americanos; de clima subtropical temperado, com relações históricas e sociais muito próximas, intercâmbios culturais e econômicos constantes, esses povos – comumente relacionados a um sentimento de periferia da região, isolados e isolacionistas – emergem como uma possibilidade de conexão de toda a nossa Grande Pátria Íbero-americana.
Em sua conferência “A Estética do Frio”, Vitor Ramil propõe, a partir de uma reflexão tida no Rio de Janeiro, no calor tropical da terra de São Sebastião, que a diferença climática entre o Sul do Brasil – para além das questões culturais, do histórico de guerras, da influência espanhola e das colonizações alemã e italiana – e o resto do país é fator determinante para a identificação do sulista (tratarei aqui o Sul, como a região do Prata, citada anteriormente) com suas raízes e com o que ele chama de lar. Isto não se resume, tampouco, a uma questão externa. O interior do homem, sua alma, é moldado diretamente pela forma como ele interage com seu ambiente: nossos hábitos, movimentar, economia, nossas “íntimas estações”. Nisto, o clima temperado nos abre um leque de possibilidades muito curioso, já que nossas estações são bem definidas e possuem os mais diversos traços, quando em outros locais a essência de uma estação particular costuma estar manifesta ao longo do ano inteiro, com variações menos preponderantes.
Aí, o estereótipo que a mídia brasileira cria sobre o gaúcho e o Rio Grande do Sul encontra uma dificuldade imensa, e também a gera, ao manifestar e difundir ainda mais esse sentimento de diferenciação e distância. O clima gélido do inverno sulista é dado como um representante quase onipresente da nossa cultura e tradição, seguidamente denominando o Sul como de “clima europeu”, distanciando nossa presença do calor tropical e humano do resto do Brasil; também contribui para a animosidade entre brasileiros e rio-grandenses a disputa cultural entre brasileiros e argentinos, quando estamos, geográfica e culturalmente, próximos de ambos. É claro que, enquanto esse frio é uma característica muito querida e particular da nossa região, é inevitável considerar que o calor e o tropicalismo, mesmo que “sub”, também estão presentes em nosso dia a dia, nosso ano, nossos corações. Se o gaúcho, ou rio-grandense, é um sujeito de certa forma à parte, ele também é integrador; se o frio nos forma de um modo mais agudo, através dele lemos as outras estações e as reinterpretamos, dialogando com todas as suas nuances.
No entanto, encontrar a forma apropriada de transcender as fronteiras geográficas e os embates políticos, econômicos e sociais requer ferramentas certas e culturalmente amplas para unir os povos ao redor daquilo que lhes é comum. O idioma, apesar de semelhante, possui diferenciações significativas que demarcam ainda a sensação de pertencimento a um círculo menor, dificultando as trocas; a arte, particularmente a música, se faz muito útil neste diálogo.
———————
Fiz a milonga em sete cidades
Rigor, Profundidade, Clareza
Em Concisão, Pureza, Leveza
E MelancoliaMilonga é feita solta no tempo
Jamais milonga solta no espaço
Sete cidades frias são sua moradaRAMIL, Vitor. “Milonga de Sete Cidades”
Embora movimentos estéticos como o que Ramil apresenta, o templadismo dos irmãos Drexler e o subtropicalismo de Kevin Johansen não almejem ser mais do que uma interpretação intimista e sem fins sociológicos ou políticos, eles propiciam uma reflexão didática e contemplação perene de nossa região, transpondo a visão de uma “periferia da América do Sul” para o conceito de “Centro de uma outra história”, justamente o ponto onde gostaria de tocar com maior interesse:
Ramil define a estética do frio e da alma sulista através do ritmo da milonga e na representação de sete cidades, como sete moradas do espírito, estados anímicos necessários para que, rio-grandense, argentino e uruguaio sintam-se em casa, sete cidades pampeanas e profundas: Rigor, Profundidade, Clareza, Concisão, Pureza, Leveza e Melancolia; a escolha rítmica da milonga tampouco é uma escolha qualquer:
“Assim como o gaúcho e o pampa, a milonga é comum a Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, inexistindo no resto do Brasil. A discussão em torno de sua origem expressa bastante bem sua relevância no encontro dessas três culturas: há teses para sua origem rio-grandense, sua origem argentina e sua origem uruguaia; sua ascendência ora é portuguesa, ora espanhola, ora latino-americana mesmo, mais especificamente cubana. Para o compositor uruguaio Alfredo Zitarrosa, que chamava a milonga de blues de Montevideo, a capacidade de fundir-se a outros gêneros sem dificuldade era uma de suas características; o argentino Atahualpa Yupanqui afirmava que as formas possíveis da milonga seriam tantas quantas fossem as possíveis formas de tocá-la. Do lado de cá das fronteiras, modestamente, eu a associava à imagem altamente definida do gaúcho e do pampa. A milonga me soava uma poderosa sugestão de unidade, a expressão musical e poética do frio por excelência.” [1]
A “elasticidade” artística da milonga nos permite o trânsito das ideias e dos sentimentos entre as diferentes regiões, uma compreensão poética da realidade de cada um, sem horizontalizá-las, deificando-as na sua própria alquimia e transmissão do ritmo. Dessa forma, podemos compreender o Sul profundo da América Latina não como um alienígena, sim como uma trilha, um ponto de conexão entre as culturas latinas. Se é verdade que nossa região é interpretada por conflitos, isolacionismo e frieza, tudo isso não passa de uma má compreensão e interpretação do valor metafísico de conectividade que nosso povo possui, em sua miscigenação, seu calor humano, sua receptividade, e como centro de uma transmissão de valores. O que o gaúcho recebe do brasileiro é expandido até os povos vizinhos, e o que recebe dos seus “hermanos”, também deve ser levado até os mais distantes cantos do Brasil. O gaúcho é o bardo latino.
“Ao me reconhecer no frio e reconhecê-lo em mim, eu percebera que nos simbolizávamos mutuamente; eu encontrara nele uma sugestão de unidade, dele extraíra valores estéticos. Eu vira uma paisagem fria, concebera uma milonga fria. Se o frio era a minha formação, fria seria a minha leitura do mundo. Eu apreenderia a pluralidade e diversidade desse mundo com a identidade fria do meu olhar. A expressão desse olhar seria uma estética do frio.” [2]
Insisto: nossa fria leitura do mundo não representa um sentimento de distanciamento do calor tropical e suas vertentes; antes, uma conjunção, uma lembrança cantada pelo triste ritmo da milonga gaúcha de que o frio está presente e conecta nossas almas, completa o círculo místico e civilizatório da América e a torna uma Grande Pátria; a região Sul cumpre um importante papel de ligar todas as pátrias sul-americanas, na milonga, através do frio e a travessia do pampa.
Se o Brasil canta de forma sublime e calorosa as belezas de sua terra na viola caipira, no samba, forró e carimbó, na fria melancolia da milonga o gaúcho também canta essas belezas, ecoando por toda a plaga sulista, até as altitudes moldadas pelo Pacífico, as longas florestas tropicais amazônicas e o sertão nordestino.
★ ★ ★
[1] RAMIL, Vitor. A Estética do Frio. 1ª Reimpressão. Pelotas: Satolep Livros, 2009. p. 21-22.
[2] Ibidem, p. 24
Que coisa boa encontrar seus escritos, que ajudam a desmistificar ideias errôneas sobre o nosso Rio Grande, tanto aproximando da alma Brasileira, quanto reafirmando nossas singularidades. Citando aquele velho aforismo, somos brasileiros por opção….e embora exista uma mitificação carrega consigo também uma boa dose de verdade