Multipremiado no Oscar de 2019, longa dialoga sobre lealdade e camaradagem no seio da guerra.
Geralmente eu tenho uma certa repulsa por filmes que se tornam instrumentos de auto-glorificação de seus diretores. É aquele caso em que diversos elementos fundamentais giram em torno do umbigo do exibido que deseja mostrar o quanto ele domina a linguagem e a técnica cinematográfica. Daí saem filmes visualmente esplendorosos, repletos de referências a outros cineastas, mas um tanto pobres de conteúdo.
Muita gente vai discordar, mas eu coloco nesse rol de futilidades até obras premiadas, como O Regresso (2015), de Alejandro Iñarritú, e mais recentemente Dunkirk (2017), de Christopher Nolan. São bons filmes, mas esquecíveis e cujo significado verdadeiro são seus diretores gritando “Vejam como eu sou foda!”.
Toda essa volta é para tentar explicar porque não é esse o caso de 1917. O filme é tecnicamente esplendoroso. Ele é editado para dar a impressão de ser um plano-sequência sem cortes. Há cortes, claro, mas ainda assim temos tomadas de quinze, vinte minutos que eu simplesmente não imagino como foram realizadas, dada a complexidade dos ambientes e das situações mostradas na tela.
O resultado é que temos uma tremenda experiência imersiva.
É como se Mendes nos atirasse em uma versão superior de Medal of Honour, um jogo de guerra de tempos atrás que é vivido em primeira pessoa. Somos convidados a passear com os protagonistas pelas trincheiras, pela terra de ninguém e sua paisagem lunar, por cidades bombardeadas, lutas corpo a corpo, pontes caídas, o cenário rural do front ocidental francês – tudo reconstruído com um realismo estonteante.
Não é surpresa que a Academia tenha enchido o filme de prêmios. De certa maneira, ele prova a existência de uma linha que separa o streaming e a experiência cinematográfica tradicional. Em minha visão, o filme de Sam Mendes foi a melhor direção do ano, com um domínio técnico assombroso da linguagem hollywoodiana; mas não é uma masturbação do diretor e sim um convite para que se entenda o diferencial da tela grande. Existem algumas derrapadas? Sim, mas nada que incomode; não é esse o tom do filme.
Toda imersão leva a uma atmosfera de tensão que se sustenta do início ao fim. Algumas vezes ela cresce, noutras ela arrefece e permite ao público um certo alívio, mas na maior parte do tempo sentimos o peso da presença iminente da morte, que pode chegar do nada, por meio do tiro de um inimigo escondido em meio a paisagem, por alguma armadilha, etc. A morte é o terceiro protagonista de 1917: sua sombra pode ser vista durante todas as duas horas da película.
A história é simples que dói, sem qualquer busca por uma pseudo-metafísica, como n’O Regresso e em Dunkirk. Dois soldados britânicos recebem uma missão: a de avisar para uma outra divisão que seus 1600 homens vão cair numa armadilha. Os alemães fingiram retroceder para que fossem seguidos até uma linha mais fortificada quilômetros depois, onde aguardavam para destruir o Coronel que decidiu atacá-los e “mudar a maré” do conflito. Há um forte componente pessoal na missão. Um dos soldados é escolhido porque seu irmão mais velho é um tenente da Divisão que vai cair na armadilha.
Esse componente pessoal é o fio de Ariadne que conduz a narrativa. Não existem discussões políticas sobre a guerra e não se toma partido de qualquer dos lados do confronto. Os supostos “motivos maiores” da guerra não são o tema aqui, mal são pano de fundo. O ponto é retratar o porquê o homem comum luta. É um filme masculino, viril, sobre honra, amizade, parentesco, camaradagem, hombridade, coragem e, acima de tudo, lealdade e compromisso.
Não é o “horror da guerra” que nos chama continuamente a atenção em 1917, mas sim tudo que de mais belo e moral os homens encontram nela, sem idealizar ou demonizar o conflito pelo próprio conflito. É uma canção de soldados na noite que antecede a batalha em uma Gondor sitiada. Na versão cinematográfica da obra de Tolkien, é Aragorn dando o sinal de ataque contra as forças muito mais poderosas de Mordor com a frase: Por Frodo!
Sem sentimentalismo exagerado, sem caricaturas, sem apelação como na “semi-novela” de O Resgate do Soldado Ryan (1998). Argumento simples e de execução magistral, que torna desnecessário até longos desenvolvimentos dos personagens. Sabemos quem são pelas decisões que eles tomam nessa jornada específica.