O filósofo antiliberal e anticapitalista francês Jean-Claude Michéa é um pensador pouco conhecido que exerce grande influência sobre uma nova geração de radicais antiliberais de seu país. O pensamento de Michéa representa a possibilidade de construção de um novo populismo que esteja alinhado com os verdadeiros anseios populares no combate ao neoliberalismo e ao financismo capitalista. Mas a esquerda liberal é o principal obstáculo para o desenvolvimento desse novo populismo. Para ajudar a difundir as ideias de Michéa no Brasil, traduzimos uma entrevista da revista americana Dissent com o pensador francês.
Dissent: A xenofobia e a intolerância estão aumentando. O combate ao racismo, neste contexto, parece mais necessário do que nunca. Penso, por exemplo, na crítica ao “privilégio branco” que é difundido entre os progressistas americanos. Para você, pelo contrário, o antirracismo e as lutas sociais simbolizam tudo o que está errado com o liberalismo cultural. Esta visão não corre o risco de deslegitimar estas lutas em uma altura em que elas parecem particularmente necessárias?
Jean-Claude Michéa: É de fato sobre esta questão do racismo e da defesa das “minorias” (sexuais ou outras) que a nuvem de tinta que tem sido espalhada há décadas pela intelligentsia de esquerda se tornou a mais difícil de dissipar hoje em dia. Pois obviamente não se trata de “deslegitimar” a menor dessas lutas ditas “cidadãs” (nem que seja por lealdade a Marx que, no Capital, já nos lembrava que “o trabalho sob a pele branca não pode ser emancipado onde o trabalho sob a pele negra permanece estigmatizado e ressequido”). O que é problemático, por outro lado, é a forma incrível como a nova intelligentsia de esquerda – tendo como pano de fundo, ao longo dos anos 80, o neoliberalismo triunfante, a “guerra das estrelas” e o declínio irreversível do império soviético – se precipitou imediatamente para instrumentalizar estas lutas (recorde-se, por exemplo, o papel decisivo desempenhado a este respeito por Bernard-Henri Levy, Michel Foucault e os “novos filósofos”) com o objetivo então claramente afirmado de tornar definitivamente impossível o regresso à crítica socialista da nova ordem liberal, uma crítica agora equiparada a “gulag” e “totalitarismo” (e o fato de a atual geração de intelectuais de esquerda ter sido educada com a ideia de que Marx era um autor “ultrapassado” – quantos já leram realmente o Capital? – certamente não ajudou em nada). O caso da França, aliás, parece-me aqui, mais uma vez, emblemático.
De fato, ninguém ignora que foi o próprio François Mitterrand (com a cumplicidade, entre outros, do economista liberal Jacques Attali e do seu faz-tudo da época Jean-Louis Bianco) que, em 1984, organizou deliberadamente a partir do Palácio do Eliseu (apenas alguns meses após a famosa “viragem liberal” de 1983) o lançamento e o financiamento da SOS-Racisme, um movimento “cidadão” oficialmente “espontâneo” (e, aliás, imediatamente apresentado e elogiado como tal no mundo do showbiz e dos grandes meios de comunicação) mas cuja missão principal era, de fato, desviar as frações da juventude estudantil que essa manifestação pelo capitalismo teria podido perturbar em direção a um combate de substituição suficientemente plausível e honrado aos seus olhos. Combate de substituição “anti-racista”, “antifascista” e (o adjetivo se generalizou na época) “cidadão”, que além do mais teve a vantagem não desprezível, para Mitterrand e sua comitiva, de aclimatar gentilmente essa juventude ao novo imaginário No Border e No Limit do capitalismo neoliberal (e é, claramente, em referência a este tipo de movimento “cidadão” que Guy Debord ironicamente mencionou em uma das suas últimas cartas, sobre estas “ovelhas atuais da inteligência que agora só conhecem três crimes inadmissíveis, com exclusão de todos os outros: racismo, antimodernismo, homofobia”).
Agora esta cínica instrumentalização das várias lutas ditas “societárias” se provou, em uso, duplamente catastrófica para a esquerda. No plano intelectual, em primeiro lugar, porque é óbvio que a luta pela “igualdade de direitos e pelo fim de toda discriminação” acabará sempre por ser recuperada e desviada do seu significado pela classe dominante, na medida em que que tudo é feito, em paralelo (e como é precisamente o caso da maioria das associações “cidadãs”), a fim de dissociá-la radicalmente de qualquer forma de análise crítica da dinâmica do capital moderno (e em particular da análise de Marx – hoje mais esclarecedora do que nunca – dos efeitos psicológicos, políticos e culturais do reino da mercadoria, esse “grande equalizador cínico”). Um pouco, em suma, como se estivéssemos chamando para combater o atual desastre ecológico – como a jovem Greta Thunberg que, em poucos meses, se tornou o novo ídolo dos meios de comunicação liberais -, nos abstendo de dizer uma única palavra sobre esta dinâmica da ilimitação que define estruturalmente o modo de produção capitalista!
E a um nível prático, então, porque as classes trabalhadoras obviamente não demoraram muito a compreender – na medida em que podiam ver perfeitamente que era, na sua maioria, a burguesia de esquerda (e em particular os seus acadêmicos, jornalistas e artistas) que tinha tomado a dianteira desde o início, o controle da maioria dessas novas lutas “societárias” – que o progresso real que elas finalmente tornariam possível (desde que, mais uma vez, não se confunda a emancipação efetiva de uma “minoria” com a mera integração de seus membros mais ambiciosos na classe dominante!) seria quase sempre feito de costas para elas e às suas custas.
A este respeito, nada ilustra melhor esta dialética da emancipação regressiva do que a eleição da nova Assembleia Nacional francesa em Junho de 2017. Na época, a mídia como um todo acolheu entusiasticamente o fato de que nunca antes na história da República Francesa houve um parlamento eleito que incluísse tantas mulheres (quase 40%) ou membros de “minorias visíveis”. Que isto seja um progresso considerável a nível humano, é claro que não o nego por um momento. O problema é que também temos que voltar ao ano de 1871 (em outras palavras, àquela Assembléia de Versalhes que ordenou o massacre da Comuna de Paris – aquela “Saint-Barthélemy dos proletários” como Paul Lafargue a chamava – sob a liderança iluminada de Adolphe Thiers e Jules Favre, então os dois líderes indiscutíveis da esquerda liberal) para encontrar uma assembleia legislativa com tal grau de consanguinidade social (as classes trabalhadoras, embora a grande maioria do país, estão de fato “representadas” por menos de 3% dos eleitos; e, pela primeira vez desde 1848, não há nem um único trabalhador de verdade!).
Não tanto porque sejam “por natureza” sexistas, racistas e homofóbicos, mas porque “os de baixo” acolhem geralmente as chamadas lutas “societárias” com bastante reticência (um recente estudo sociológico sobre as classes sociais na Europa, publicado em 2017 por Agone, mostrou de fato que “ao contrário das classes altas, que são tão rápidas a propor a mobilidade transnacional e a tolerância para com os outros, as classes trabalhadoras são de fato muito mais mistas e misturadas do que todos os outros grupos sociais”). Pelo contrário, é porque todos os dias eles têm a triste e concreta experiência desta “unidade dialética” do liberalismo cultural e econômico, que a esquerda acadêmica ainda questiona de forma autoritária. É, aliás, uma das razões pelas quais vim a atribuir, nos meus últimos livros, uma grande importância pedagógica a “Pride”, esta pequena obra-prima do cinema político britânico dirigida, em 2014, por Matthew Warchus.
“Pride” é um modelo exemplar de como o apoio dado aos mineiros galeses na pequena aldeia de Onllwyn no verão de 1984 por jovens ativistas socialistas do grupo londrino Lesbians and Gays Support the Miners finalmente conseguiu mudar com a mesma eficácia a maneira como esses mineiros vêem a homossexualidade. Isto porque, ao contrário dos ativistas LGBT tradicionais (que são quase sempre da nova burguesia de esquerda das grandes metrópoles), eles nunca tiveram a ideia, por um instante, de considerar esses sindicalistas galeses como espíritos “atrasados” que deveriam ser evangelizados com sermões moralizadores. Viram-nos sobretudo, pelo contrário, como verdadeiros camaradas em combate, empenhados na linha da frente contra o sinistro governo de “Maggie, a Feiticeira” (um passo bastante semelhante, em suma, ao que levou Orwell em 1936 – perante a ameaça franquista – a tomar o seu lugar de forma bastante natural ao lado dos republicanos espanhóis).
Deste ponto de vista, a lição política de Pride vai além da luta contra a homofobia. E o princípio poderia ser resumido da seguinte forma. Você realmente quer reduzir o racismo, a homofobia, o sexismo e a intolerância? Depois, primeiro questione todos os preconceitos da sua classe em relação às classes trabalhadoras – começando por aqueles que espontaneamente o levam a vê-los como nada mais do que uma “cesta de deploráveis” (ou “caras que fumam cigarros e dirigem a diesel”, se preferir a versão mais suave de Benjamin Griveaux – porta-voz do governo de Emmanuel Macron e antigo braço direito do “socialista” Dominique Strauss-Kahn). Poderão então descobrir por si próprios até que ponto “os de baixo” – independentemente da sua orientação sexual ou cor de pele, aliás – podem provar muito rapidamente ser pelo menos tão capazes de humanidade, tolerância e inteligência crítica – assim que finalmente aceitarem tratá-los como iguais e não mais como crianças inquietas a quem se deve constantemente ensinar uma lição – como aqueles que constantemente se percebem como the best and the brightest. Resta, naturalmente, saber se a burguesia de esquerda ainda tem os meios morais e intelectuais, em 2019, de um tal desafio. Nada, infelizmente, é menos certo.
Dissent: Você critica – ou pelo menos aponta os limites – da ideia de “neutralidade axiológica” e do lugar que ela ocupa no pensamento político contemporâneo. Mas não será necessária alguma variação desta ideia para uma boa sociedade – e particularmente para uma sociedade tolerante e aberta à diferença?
Jean-Claude Michéa: O problema é que eu acho muito difícil mobilizar este conceito de “neutralidade axiológica” sem ter de reintroduzir imediatamente todos os pressupostos do liberalismo político, econômico e cultural! Por detrás de todas as construções da filosofia liberal, de fato, encontramos sempre a ideia (nascida da experiência traumática das terríveis guerras civis religiosas do século XVI) de que os homens são por natureza incapazes de concordar com a mais pequena definição comum da “boa vida” ou da “salvação da alma” (o relativismo moral e cultural é logicamente inerente a todo o liberalismo), só uma privatização total de todos aqueles valores morais, filosóficos e religiosos que supostamente nos dividem irremediavelmente – o que implica, entre outras coisas, a construção paralela de um novo tipo de Estado, mínimo e axiologicamente “neutro” – pode realmente garantir a todos o direito de escolher o modo de vida que melhor lhes convém, dentro de um quadro politicamente pacífico. No papel, tal programa é inegavelmente atraente (especialmente se aceitarmos, com Marx, que “o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos”). O problema é que é precisamente este imperativo de “neutralidade axiológica” (ou, se se preferir, esta ideologia do “fim das ideologias”) que força permanentemente o liberalismo político e cultural (os dois estão necessariamente ligados, pois se cada um tem o direito de viver como quiser, resulta daí que nenhum modo de vida pode ser considerado superior a outro) a depender depender, mais cedo ou mais tarde, da “mão invisível” do Mercado para assegurar este mínimo de linguagem comum e “vínculo social” sem o qual nenhuma sociedade seria viável e não se poderia reproduzir de forma duradoura.
Foi o que Voltaire, por sua vez, tinha compreendido perfeitamente quando escreveu em 1760 – como um bom liberal que se opõe tanto aos princípios desiguais do Antigo Regime como ao populismo republicano de Rousseau – que “quando se trata de dinheiro, todos são da mesma religião”. E de fato, se a única maneira de neutralizar a dinâmica das guerras religiosas e de pacificar a vida comum é rejeitar definitivamente fora da esfera pública e da vida comum todos os valores que poderiam nos dividir religiosa, moral ou filosoficamente, então não vemos como tal sociedade poderia encontrar seu ponto de equilíbrio quotidiano último em outro lugar que não seja nesta “religião da economia” e nesta mística do “interesse bem compreendido” que definiram, desde o início, o imaginário do modo de produção capitalista.
Portanto, é muito mais fácil entender porque os primeiros socialistas – aqui basta reler Pierre Leroux, Proudhon, Marx ou Bakunin – deram um lugar tão importante às críticas a esta “ideologia da pura liberdade que iguala tudo” (Guy Debord), que eles entenderam muito rapidamente – e Deus sabe se os fatos posteriores provaram que estavam certos! – que levaria inevitavelmente uma sociedade liberal a ter de afogar todos os valores humanos “nas águas geladas do cálculo egoísta” e a “desintegrar a humanidade em mônadas, tendo cada uma delas um princípio de vida particular e um fim particular” (Engels). É por isso que, na minha opinião, não faz absolutamente nenhum sentido continuar a reivindicar “socialismo” (ou “comunismo”) onde os conceitos fundamentais de “vida comum”, “comunidade” e “comum” não conservam um mínimo de significado e legitimidade filosófica. A única questão política importante é, portanto, concordar democraticamente sobre o que, em uma sociedade socialista decente, deve necessariamente se enquadrar no âmbito da vida comunitária (baseando assim o direito da comunidade de intervir como tal num certo número de questões específicas) e sobre o que, pelo contrário, só pode se enquadrar no âmbito da vida privada dos indivíduos, a menos que estes se afundem num regime totalitário. Além disso, é sobre esta questão crucial (mas que só faz sentido se rejeitarmos desde o início o postulado nominalista e “thatcheriano” segundo o qual “só há indivíduos” e consequentemente “a sociedade não existe”) que as duas principais correntes do socialismo moderno têm estado em constante choque desde o século XIX.
Por um lado, um socialismo autoritário e puritano (à imagem, por exemplo, de Lênin que disse em O Estado e a Revolução que, uma vez alcançado o socialismo, “a sociedade inteira será um escritório e uma oficina, com igualdade de trabalho e de salário”) e, por outro lado, um socialismo democrático e libertário (aquele que defendeu, por exemplo, Pierre Leroux quando advertiu, já em 1834, o proletariado francês contra a tendência de parte do nascente movimento socialista de “favorecer, consciente ou inconscientemente, o advento de um novo papado” no qual o indivíduo “tornado funcionário, e unicamente funcionário, seria arregimentado, teria uma doutrina oficial a crer e a Inquisição à sua porta”). Eu, por exemplo, tenho infinitamente mais simpatia pelo socialismo anarquista de Proudhon, Kropotkin ou Murray Bookchin do que pelo de Cabet, Stálin ou Mao, escusado será dizer que partilho plenamente da vossa preocupação por uma sociedade “tolerante” e tão aberta quanto possível a todas as “diferenças” (não foi Rosa Luxemburgo que nos lembrou na Revolução Russa – contra Lênin e Trótski – que “a liberdade é sempre a liberdade daqueles que pensam de forma diferente”?). Mas, por tudo isso, não vejo o que se poderia ganhar filosoficamente – além de mais algumas confusões políticas – reformulando nas velhas categorias da ideologia liberal tudo o que constituiu, desde o início do século XIX, a maravilhosa originalidade do socialismo populista, democrático e libertário. Pois se é indiscutível – como o militante revolucionário Charles Rappoport uma vez nos lembrou – que “socialismo sem liberdade não é socialismo”, é igualmente indiscutível – apressou-se a acrescentar – que “liberdade sem socialismo não é liberdade”. Imagino que Orwell teria aplaudido com ambas as mãos!
Dissent: Tenho a sensação de que muitos da esquerda (e estou pensando particularmente, novamente, nos Estados Unidos) desconfiam espontaneamente de idéias como a “decência comum” de George Orwell – que desempenha um papel importante em seu país – porque a vêem como uma forma rotunda de defender o preconceito e a intolerância. Como você reage a tais preocupações?
Jean-Claude Michéa: Infelizmente, vejo isso como um sinal da crescente influência das “ideias” (por assim dizer!) de Bernard-Henri Levy sobre a nova intelligentsia “progressista”! Aquele que, até há pouco tempo, não hesitava em definir as classes trabalhadoras pelo seu “desprezo pela inteligência e cultura” e pelas suas “explosões de xenofobia e antissemitismo” (é preciso dizer que a revolta do “povo de baixo” e os seus Coletes Amarelos o mergulharam imediatamente no mesmo estado de pânico odioso que a rica burguesia parisiense de 1871 contra os insurgentes da Comuna!) No entanto, a maioria das pesquisas empíricas disponíveis sobre este ponto confirmam, pelo contrário, esmagadoramente, que é de fato nos círculos populares que o sentido dos limites e as práticas concretas e quotidianas de ajuda mútua e de solidariedade permanecem, ainda hoje, os mais difundidos e mais vivazes. Isto é, afinal de contas, muito facilmente explicado.
Quando a sua renda é muito baixa – o que é o caso, por definição, da maioria das classes trabalhadoras – você só pode ter a menor chance de superar os muitos perigos da vida diária se você puder contar com a ajuda da família e a solidariedade da aldeia ou bairro. Tendo escolhido viver – em parte, aliás, por razões de coerência moral e filosófica – no coração desta França rural abandonada e “periférica” (onde a maioria das instalações coletivas desapareceram – o neoliberalismo obriga – e onde muitas vezes é necessário viajar quilômetros – dez no meu caso pessoal! – para encontrar o primeiro café, a primeira loja ou o primeiro médico), posso assim vos assegurar que a forma como a maioria das pessoas à minha volta se comportam (são essencialmente pequenos agricultores, viticultores e pequenos criadores de gado) corresponde muito mais, ainda hoje, às descrições de George Orwell em The Road to Wigan Pier ou Homage to Catalonia, bem como às de Hobbes, Mandeville ou Gary Becker (obviamente não diria tanto, porém, sobre aquelas grandes metrópoles – como Paris ou Montpellier – onde vivi por tanto tempo!).
Isto não surpreenderá os leitores de Marcel Mauss (como sabem, confiei muito no seu Ensaio sobre o Dom para explicar os fundamentos antropológicos do conceito de decência comum), E.P. Thompson (estou pensando, entre outros, nas suas análises decisivas sobre a “economia moral” das classes trabalhadoras e dos seus “costumes em comum”), Karl Polanyi, Marshall Sahlins ou James C. Scott. E menos ainda os de David Graeber que – em Debt: The First 5000 Years – não hesitou em forjar os conceitos de comunismo de base ou de comunismo quotidiano (uma versão particularmente radical, como vemos, da decência comum de George Orwell!) para descrever este “fundamento de toda a sociabilidade humana (…) que torna a sociedade possível”).
Portanto, não é tanto a hipótese da decência comum ou ordinária – quaisquer que sejam os indispensáveis desenvolvimentos filosóficos e antropológicos que ela exija por definição – que deve ser o problema hoje! É antes o retorno em força, dentro da moderna intelligentsia de esquerda, da velha arrogância classista e do preconceito elitista – incluindo, infelizmente, entre alguns defensores do decrescimento – segundo o qual “postular a decência comum faz parte de uma visão paternalista e fantasiosa de um povo que, de fato, nunca existiu” (peço emprestada esta fórmula desconcertante – mas diz muito sobre a relação com as classes trabalhadoras de uma grande parte da nova fauna universitária – ao honesto “republicano crítico”, é assim que ele se apresenta, Pierre-Louis Poyau). A tal ponto que até tenderei a ver neste estranho reavivamento as teses mais desbotadas de um Gustave Le Bon, um Taine ou um H. L. Mencken (pense, por exemplo, na medida em que o outrora glorioso termo “populismo” se tornou agora, para a maioria dos jornalistas e intelectuais de esquerda, um quase-sinônimo de “fascismo”; ou das ilusões demofóbicas e “transhumanistas” do ideólogo macroniano Laurent Alexandre) um dos sinais mais irrepreensíveis, e provavelmente os mais desesperados, do naufrágio moral e intelectual absoluto da esquerda “moderna” e “progressista”.
Em uma altura em que o sistema capitalista mundial está prestes a viver a década mais crítica e turbulenta da sua história – em um cenário de crescente desastre ecológico e de desigualdades sociais cada vez mais explosivas e indecentes – parece-me que é mais que tempo de fechar a porta, de uma vez por todas, do triste parêntese político da esquerda liberal (como outrora, o do stalinismo) e redescobrir o mais rapidamente possível, antes que seja tarde demais, esta crítica socialista da sociedade do espetáculo e do mundo das mercadorias que se tornou claramente mais atual hoje do que nunca.
Fonte: https://comptoir.org/2019/06/20/jean-claude-michea-il-est-grand-temps-de-refermer-la-triste-parenthese-politique-de-la-gauche-liberale/?fbclid=IwAR2VMiXhovxnYDnwEsH8NvTcBWiRGuAHWQRov3nMRbpC17M_FDm85tFBD-Q