Por José Alsina Calvés
Neste artigo introdutório à Geopolítica queremos discutir algumas questões relativas a essa disciplina.
Antes de mais nada, combater os equívocos e as mentiras que certa propaganda de guerra divulgou em determinado momento sobre essa ciência. A geopolítica não forma parte da doutrina “nazi”. Em primeiro lugar, porque suas origens são muito anteriores. Em segundo lugar, porque um de seus criadores, Halford Mackinder, foi um inglês muito comprometido com a política exterior do Império Britânico até o ponto de ser um dos ideólogos do tratado de Versalhes. Em terceiro lugar, porque outro de seus criadores, Karl Haushofer (ao contrário do que foi divulgado à época pela imprensa britânica) não foi o cérebro de Hitler, senão que foi perseguido pelos nazistas, internado em Dachau e seu filho mais velho, assassinado.
Porém, em quarto lugar, e sobretudo, porque a essência da doutrina nazista não foi a geopolítica, mas a raciologia. As grandes decisões estratégicas que tomaram Hitler e seus colaboradores basearam-se em sua teoria da “raça ariana”, segundo a qual a expansão da Alemanha seria realizada às custas dos povos eslavos, supostamente “raças inferiores”, e a aliança deveria ser feita com ingleses e franceses, que eram também de “raça ariana”. Haushofer, baseado em pressupostos geopolíticos, defendeu a aliança Alemanha – Rússia, seguindo a ideia de Mackinder de unir a Europa com “o coração da terra”; defendeu também o apoio alemão aos povos subjugados pelo Império Britânico para que se rebelassem contra ele. Nenhuma dessas propostas agradou a Hitler, que desprezava os eslavos, e que havia escrito no Mein Kampf que o Império Britânico e a Igreja Católica eram os principais baluartes da civilização ocidental. O autêntico ideólogo do nazismo não foi Haushofer, mas Rosenberg, o autor de O Mito do Século XX.
Outra questão interessante é o estatuto epistemológico e gnosiológico da geopolítica: É uma ciência? É uma tecnologia? É um campo interdisciplinar? Quais são suas relações com outras disciplinas? À luz das possíveis respostas a essas perguntas, iremos esboçar uma pequena história da geopolítica. Por fim, analisaremos o possível papel da geopolítica na elaboração de um discurso novo na Teoria das Relações Internacionais e nos fundamentos teóricos de um mundo multipolar, tal como foi defendido por Alexandr Dugin.
Reivindicação da Geopolítica
Ao final da Segunda Guerra Mundial, com a vitória dos Aliados sobre a Alemanha, Itália e Japão, produziu-se uma formidável ofensiva ideológica e propagandística com o intuito de mostrar que nas nações derrotadas imperavam regimes políticos que representavam a encarnação do “Mal Absoluto”. O regime nacional-socialista foi o alvo preferido destas campanhas, especialmente quando foi descoberta a existência de campos de concentração aonde foram exterminados membros de determinadas minorias raciais ou religiosas (ciganos, judeus). Os propagandistas aumentaram os crimes dos vencidos, ao passo que ocultavam os próprios (bombardeio atômico sobre duas cidades japonesas sem nenhum interesse estratégico, Hiroshima e Nagasaki, bombardeio com Napalm sobre a cidade de Dresden, assassinatos e violações da população civil, especialmente por parte das tropas russas).
Mas o ódio dos propagandistas não parou por aí. Personagens da vida intelectual alemã que haviam sido silenciados, prejudicados e inclusive perseguidos pelo nazismo, foram acusados de colaboradores, unicamente pelo fato de terem simpatizado com ele em suas origens (Que alemão não iria simpatizar, num primeiro momento, com um movimento que pretendia revisar o tratado de Versalhes?). Esse foi o caso de Ernst Jünger, Martin Heidegger ou Karl Haushofer.
Karl Haushofer, um dos criadores da geopolítica, nasceu em 27 de agosto de 1869 em Munique. Em 1887 escolheu a carreira militar, e em 1890 torna-se oficial de artilharia da marinha bávara. Em 1896 contrai matrimônio com Martha Mayer-Doos, mulher de origem judia (escolha curiosa para um suposto “nazi”). Deste casamento nasceram dois filhos, Albrecht e Heinz [1].
Professor da Academia de Guerra em 1904, é enviado ao Japão em 1908 para organizar a armada imperial. Em 1913, de volta à Alemanha, apresenta sua primeira obra destinada ao grande público, Dai Nihon (O grande Japão). No mesmo ano começa a estudar geografia na Universidade de Munique. É convocado em 1914, e, depois do armistício, é nomeado comandante da 1ª Brigada de artilharia bávara. Retorna à Universidade, conclui o doutorado em 1919 e deixa a carreira militar para dedicar-se à docência.
Em 1919 conhece Rudolf Hess, com quem estabelece grande amizade, e através do qual entra em contato com os círculos nacional-socialistas. Hess protegerá a esposa de Haushofer, de origem judia, e aos filhos de ambos, considerados semi-judeus depois da promulgação das leis de Nuremberg. Mal começo para a suposta “eminência parda de Hitler”, segundo os propagandistas ingleses.
Em 1923 fundou a prestigiada Revista de Geopolítica, junto com seu colega Ernst Obst, reunindo ao redor dela uma equipe de ilustres colaboradores [2]. Inicialmente, as ideias desenvolvidas por Haushofer foram bem recebidas por Hitler e os círculos nacional-socialistas. O conceito geopolítico de Lebesraum (espaço vital) foi de fato incorporado à terminologia nazista, mas sempre subordinado à ideia de “raça ariana”. Em 1936 o NSDAP definia a geopolítica como “A ciência dos fundamentos territoriais e raciais que determinam o desenvolvimento dos povos e dos estados” [3].
A situação mudou rapidamente. A defesa da aliança germano-russa proposta por Haushofer, baseada no critério geopolítico do “coração da terra” e não em critérios raciais, não agradou a Hitler e a cúpula nazista. A ideia de apoiar os povos submetidos ao Império Britânico (supostas “raças inferiores”) para que se rebelassem também não agradaram a hierarquia. De fato, desde 1933 [4] Haushofer foi vigiado por agentes do regime, ainda que à época não tenha sido perturbado graças a proteção de seu amigo Rudolf Hess.
A partir de 1941, com o voo de Hess à Inglaterra e seu desaparecimento da cena política, a situação de Haushofer e seus filhos se complica. Seu filho Albrecht é preso e o próprio Haushofer é interrogado pela GESTAPO. Depois do atentado fracassado contra Hitler, em 20 de julho de 1944, Haushofer é internado em Dachau, e seu filho Heinz encarcerado na prisão de Moabit em Berlim. Posteriormente será liberado, mas seu outro filho, Albrecht, será assassinado em abril de 1945.
Apesar de tudo, com a vitória aliada a perseguição à Haushofer aumenta, pois segundo a imprensa britânica ele era a “eminência parda de Hitler”. Julgado em Nuremberg, é absolvido, mas lhe retiram seu título de professor honorário e seu direito a uma pensão. Em março de 1946, Haushofer e sua esposa Martha se suicidam. Um pouco antes, publicou seu último trabalho, Apologia da Geopolítica Alemã, em que claramente desvincula sua obra do nazismo.
Estatuto gnosiológico da Geopolítica
A gnosiologia, epistemologia ou teoria do conhecimento é a parte do discurso filosófico que se ocupa do problema do conhecimento, do método científico, da demarcação do conhecimento científico e da classificação das ideias. É neste marco conceitual que podemos formular as perguntas: O que é a geopolítica? É uma ciência? É um campo interdisciplinar? É uma tecnologia?
Alguns autores tentaram solucionar o problema, argumentando que em realidade a geopolítica pode ser incluída na geografia. Em parte, eles estão certos, porque nas origens da geopolítica encontramos os geógrafos como principais protagonistas. A obra pioneira de Friedrich Ratzel, publicada em 1896, levava o título de Politische Geographie (Geografia Política), e de formação na área da geografia eram também Mackinder (autor de O Pivô Geográfico da História) e o próprio Haushofer.
No entanto, incluir a geopolítica na geografia não soluciona o problema de seu estatuto gnosiológico, pois tal como apontou Lacoste [5], é surpreendente a ausência absoluta de qualquer reflexão teórica entre os geógrafos. O debate epistemológico, a crise de fundamentos ou os problemas metodológicos que foram propostos em muitas disciplinas, provocaram a aparição das chamadas “filosofias particulares” (filosofia da história, da física, da biologia, etc.). Nada disso foi produzido na geografia, quando paradoxalmente, a situação desta disciplina enquanto “liga” entre as ciências naturais (geomorfologia, botânica) e as sociais (história, economia) parecia convertê-la em um campo ideal para esse tipo de debate.
Para definir o estatuto gnosiológico da geopolítica levaremos em consideração as seguintes variáveis:
- A existência de um objeto de estudo e de um método
- A relação com outras ciências ou disciplinas
- A existência de uma comunidade científica ou “colégio invisível”
- A existência ou não de uma teoria unificadora (paradigma) e de programas ou tradições de investigação
Existem diversas definições de geopolítica, mas todas fazem referência à influência (determinante ou condicionante) dos fatores geográficos na política dos estados. Isso coloca a geopolítica na situação de “liga” entre as ciências naturais (geomorfologia, climatologia) e as sociais (política). Portanto, o objeto da geopolítica será dual (ou trino): os fatores geográficos, a política dos estados e a influência dos primeiros nos segundos.
Sua metodologia também apresentará uma dualidade: em suas análises dos fatores geográficos utilizará os métodos próprios das ciências naturais, enquanto que em sua análise dos fatores políticos utilizará métodos próprios das ciências sociais.
Quanto à sua relação com outras ciências ou disciplinas é preciso destacar que a geopolítica nasce dentro do marco da geografia (pode ser considerada como um campo ou especialidade da mesma), mas que acaba tendo uma identidade própria.
Outro aspecto interessante a destacar é que a geopolítica nunca se configurou como um “saber pelo saber”, senão que a teoria sempre esteve profundamente ligada à práxis. Além disso, podemos afirmar que, antes que a geopolítica se constitua como disciplina, antes mesmo do próprio nome existir, já havia uma práxis geopolítica. Na dialética dos Estados e dos Impérios, no desenvolvimento de estratégias diplomáticas e militares, sempre se teve em conta o fator geográfico, o domínio e a apropriação do espaço.
É no final do século XIX e início do XX que é criado o nome geopolítica, e as comunidades científicas começam a ser constituídas basicamente em torno do ensino universitário (em faculdades de geografia) ou em escolas militares. O surgimento de revistas especializadas é outras característica ligada ao nascimento de comunidades científicas, sendo a Revista de Geopolítica, fundada em 1923 por Haushofer e Obst, a primeira de seu gênero.
Finalmente, diremos que não existe uma teoria unificada ou um paradigma compartilhado por todas as escolas e autores da geopolítica. Por ser uma “ciência do espaço”, o lugar que ocupa uma escola ou um autor é fundamental para a geopolítica. Assim, pode-se falar de uma “geopolítica do mar”, de uma “geopolítica da terra” e, mais recentemente, de uma “geopolítica do ar”. No entanto, existe um conjunto de conceitos básicos, elaborados por Mackinder, como o Heartland (coração da terra), que são compartilhados pela maioria das escolas.
Breve história da Geopolítica
Ao tentar descrever o desenvolvimento histórico da geopolítica é preciso distinguir o que seria a práxis geopolítica do nascimento da geopolítica como disciplina. A práxis geopolítica é inseparável da dialética dos estados e dos impérios. Como apontou muito bem Gustavo Bueno, em toda sociedade política é preciso distinguir uma Capa Basal (o controle ou soberania sobre um território, que será a Terra dos Pais ou Pátria), a Capa Conjuntiva (as instituições de governo) e a Capa Cortical (as relações com outras sociedades políticas, ou seja, a diplomacia e a guerra). Tanto a Capa Basal quando a Capa Cortical implicam uma práxis política.
Devemos situar o termo “geopolítica” e as origens da disciplina em 1896, quando Friedrich Ratzel publicou Geografia Política. As ideias de Ratzel foram posteriormente desenvolvidas por Rudolf Kjellén, em seu livro O Estado como forma de vida, publicado em 1916. Definiu a geopolítica como “a influência dos fatores geográficos, na mais ampla acepção da palavra, no desenvolvimento dos povos e dos estados”. Para Kjellén, a Geopolítica é uma das cinco áreas que compõem o estado, sendo as outras a Cratopolítica, a Demopolítica, a Sociopolítica e a Ecopolítica [6].
Na primeira metade do século XX, as duas grandes figuras a destacar são Karl Haushofer, do qual nos ocupamos no parágrafo anterior, e o inglês Halford Mackinder.
O conceito geopolítico de Heartland foi introduzido por Mackinder [7] e associado à existência de bacias endorreicas, isso é, grandes bacias fluviais que desembocam em mares fechados (Mar Cáspio, Mar Negro). Heartland vem do inglês heart (coração) e land (terra), sendo talvez “tierra nuclear” e “región cardial” as traduções mais próximas para o castelhano. O Heartland é a soma de uma série de bacias fluviais contíguas cujas águas desembocam em corpos de água inacessíveis para a navegação oceânica. Tratam-se das bacias endorreicas da Eurásia Central, mais parte da bacia do Oceano Ártico congelada na Rota do Norte com uma capa de gelo possuindo entre 1,2 e 2 metros, e portanto intransitável boa parte do ano – salvo por quebra-gelos de propulsão atômica (que só a Federação Russa possui) e embarcações similares [8].
A regra de ouro de Mackinder poderia ser traduzida como “Quem unir a Europa com o coração da terra dominará o coração da terra e portanto, a Terra”. O Heartland carece de um centro nevrálgico claro e pode ser definido como um corpo gigantesco e robusto em busca de um cérebro. Dado que entre o Heartland e a Europa não existem barreiras geográficas naturais (cadeias montanhosas, desertos, mares, etc.), a cabeça mais viável para o Heartland é claramente a Europa, seguida de longe pela China, Irã e Índia.
A marcha da humanidade europeia em direção ao coração da Ásia culminou com a introdução da cultura grega na própria Mongólia: hoje, o idioma mongol é escrito com caracteres cirílicos, de herança greco-bizantina, demonstrando que a queda de Constantinopla em realidade projetou a influência bizantina muito mais para leste do que os imperadores ortodoxos jamais poderiam imaginar. No entanto, a tarefa da Europa não termina aqui, pois só a Europa pode realizar o feito de converter o Heartland no poderoso espaço fechado profetizado por Mackinder.
Para explicar melhor o tema, é necessário familiarizar-nos com a cosmogonia mackinderiana, que dividia o planeta em vários domínios geopolíticos claramente definidos.
- A Ilha Mundial é a união da Europa, Ásia e África, e o que é mais próximo das terras emergidas do Panthalassa ou Oceano Universal. Dentro da Ilha Mundial está localizada a Eurásia, a soma de Europa e Ásia, que é uma realidade muito mais separada da África desde a abertura do Canal de Suez em 1869, que permitiu ao poder marítimo envolver a ambos continentes.
- O Heartland não precisa mais ser apresentado. A Teoria mackinderiana parte da premissa de que o Heartland é uma realidade geográfica no seio da Ilha Mundial, do mesmo modo que a Ilha Mundial é uma realidade geográfica no seio do Oceano Mundial.
- O Rimland, também chamado de Crescente Interior ou Marginal, é uma enorme franja terrestre que rodeia o Heartland constituído também pelas bacias oceânicas anexas ao mesmo.
- A Crescente Exterior ou Insular é um conjunto de domínios ultramarinos periféricos, separados da Crescente Interior por desertos, mares e espaços gelados. África subsaariana, as Ilhas Britânicas, as Américas, Japão, Taiwan, Indonésia e Austrália se encontram na Crescente Exterior.
- O Oceano Mediterrâneo (Midland Ocean) é o Heartland do poder marítimo. Mackinder definia o Oceano Mediterrâneo como a metade norte do Atlântico mais todos os espaços marítimos tributários (Báltico, Baía de Hudson, Mediterrâneo, Caribe e o Golfo do México). Lembremos que as maiores bacias fluviais são as que desembocam no Atlântico – depois seguem as bacias do Ártico e em terceiro lugar as bacias do Pacífico.
É perceptível que essas ideias serviram como guia para a estratégia e política exterior inglesa. Tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra Mundial a diplomacia britânica conseguiu impedir uma aliança Alemanha-Rússia que teria unificado a Europa com o Heartland. Mackinder, de fato, longe de ser um simples intelectual, foi uma pessoa muito comprometida com a diplomacia e a política exterior inglesa. Foi um dos ideólogos do tratado de Versalhes, cuja finalidade era a neutralização política e militar da Alemanha. Também foi um dos ideólogos do apoio inglês aos russos brancos, em sua luta contra os bolcheviques. A finalidade era fragmentar a Rússia em uma série de pequenos estados feudatários do Império Britânico, ainda que a vitória bolchevique tenha frustrado esse plano.
Como comentamos anteriormente, depois da Segunda Guerra Mundial o termo “Geopolítica” foi estigmatizado e relacionado com o regime nazista. Essa campanha de propaganda, dirigida sobretudo contra Haushofer, não impediu que os conceitos geopolíticos continuassem sendo utilizados na dialética dos estados e impérios, especialmente no enfrentamento USA-URSS, que deu origem à Guerra Fria.
O primeiro europeu a publicar uma versão não alemã da geopolítica foi o francês Jacques Ancel, com sua obra Geopolitique, em 1936 [9]. Ainda que muito crítico com os alemães, a quem acusa de “pedantes com aparência científica”, Ancel faz uma revisão do conceito de “fronteira” e de “nação” na linha iniciada por Ratzel.
Nos Estados Unidos, graças aos trabalhos de geógrafos alemães lá refugiados, a partir de 1941 começam a ser publicados trabalhos relacionados a questões geopolíticas. O exemplo mais significativo é o de Hans W. Weigert, refugiado nos Estados Unidos desde 1938 e docente da Trinity College de Chicago. Em 1942, publicou Generals and Geographers: The Twilight of Geopolitics, em que descreve os conceitos e as ideias centrais dos autores clássicos e reivindica a obra de Haushofer, isentando-o de qualquer relação com o regime nazista [10]. Outros autores norte-americanos, como Mahan, Dorpalan ou Spikman, não foram tão complacentes com Haushofer e se dedicaram a desvirtuar a geopolítica alemã, e inclusive rejeitaram o termo, em favor de Geografia Política [11].
É necessário mencionar também o geopolitólogo de origem austríaca Robert Strausz-Hupé, que publicou Geopolitics: The Struggle for Space and Power em 1942, no qual insiste nos fatores geográficos na política e nas relações de poder.
Na política exterior dos Estados Unidos, a utilização de Conceitos e estratégias baseadas na geopolítica tornou-se uma constante desde que James Monroe, em 1823, havia anunciado sua doutrina “América para os americanos”, algo, por sua vez, coerente, pois a práxis geopolítica havia sido uma constante na história da dialética dos estados e dos impérios. Na mesma linha poderíamos citar o Destino Manifesto (1840), o Corolário Roosevelt (1905) ou os 14 pontos de Wilson (1918).
Obviamente, o início da Guerra Fria significou a reutilização desses conceitos e estratégias, por mais que o termo “Geopolítica” fosse rejeitado e associado ao nazismo. Nessa linha, devemos mencionar Nicholas Spykman, que em sua obra America’s Strategy in World Politics, publicada em 1942, tenta equilibrar o termo “Geopolítica”, que por um lado associa ao regime nazista, mas por outro lado, considera um sinônimo de “geografia política”, finalmente reconhecendo sua importante utilidade numa política de segurança.
Para Spykman, os Estados Unidos devem ser a potência hegemônica mundial, com poder suficiente para impor sua lei tanto no interior quanto no exterior. Em realidade, foi o ideólogo da política de controle sobre as nações hispano-americanas, com a imposição de ditaduras militares títeres. Muitos de seus postulados foram adotados na Doutrina de Segurança Nacional (março de 1947) dos Estados Unidos.
Inspirado em Spykman (e também em Mackinder), o artigo de Georges Kennan, “As fontes do comportamento soviético”, foi publicado em 1947 na revista Foreign Affairs, com o pseudônimo de “X”. A conclusão prática dessas políticas foi uma política exterior expansiva, voltada para a criação de “clones da doutrina estadunidense” na América Hispânica, Caribe e no Sudoeste Asiático, para conter a “expansão comunista”. É perceptível que a atual globalização não é mais que uma extensão destas políticas ao mundo inteiro.
Por último, devemos mencionar diversas escolas geopolíticas surgidas em nações hispano-americanas. No México, é preciso mencionar Jorge A. Vivó Escoto e Alberto Escalona Ramos. O primeiro, publicou em 1943 La Geopolítica. Sobre la necesidad de dar una nueva organización a la geografía política del Caribe, livro em que segue associando o pensamento de Haushofer ao nazismo, ainda que reconheça que Geopolítica e nazismo não são equivalentes. Leonardo Martin Echevarria, professor da UNAM, é muito mais duro em seu livro Geografía humana (1948), no qual define a Geopolítica como uma “contemplação parcial e viciosa da geografia humana, tergiversada pelos geógrafos alemães”.
No México, a Geopolítica recebeu um novo impulso em 1959, com a publicação de Geopolítica mundial y geoeconomia por Alberto Escalona Ramos, na qual desenvolve amplamente os argumentos históricos, geográficos e políticos de caráter mundial que dão suporte às suas propostas.
No Brasil, é preciso mencionar Milton Santos como máximo representante da escola brasileira, surgida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, e a fundação da revista Geógrafos Brasileiros em 1934.
No Peru, é necessário mencionar Israel Lira e o Centro de Estudos Crisolistas, que, ainda que não se dedique de forma específica à geopolítica, mas à difusão e adaptação da Quarta Teoria Política de Dugin, costuma utilizar conceitos geopolíticos.
Finalmente, é preciso citar o interesse despertado pela Geopolítica na Escola Superior de Guerra da Argentina e em círculos de intelectuais vinculados ao peronismo radical.
Geopolítica e Multipolaridade
A geopolítica é um instrumento fundamental na elaboração da teoria da multipolaridade de Aleksandr Dugin [12]. Dugin utiliza, basicamente, dois conceitos extraídos da geopolítica: o de Heartland ou coração da terra, do qual já tratamos, e a distinção entre civilizações da terra e mar, desenvolvida por Carl Schmitt.
As civilizações telúricas ou da terra são caracterizadas por uma série de itens ideológicos e sociológicos. Conservadorismo, holismo, antropologia coletiva, e culto aos valores do ascetismo, a honra e a lealdade. São civilizações enraizadas na Terra, nos valores da tradição e da continuidade. Em contraste, nas civilizações talassocráticas ou do Mar predominam os valores individualistas, universalistas e comerciais. O oceano carece de fronteiras e o navegante perde facilmente suas raízes. Na antiguidade, a oposição entre Roma (terra) e Cartago (mar) é um bom exemplo dessa dualidade. Na modernidade, a Inglaterra é um exemplo prístino de civilização talassocrática, assim como os EUA a partir de certo momento de sua história.
Carl Schmitt, para explicar as diferenças entre esses dois tipos de civilização, cita o mito das doutrinas cabalistas, que representavam a história universal como a luta entre a poderosa baleia, o Leviathan, contra um monstro não menos poderoso, o Behemoth, representado como um touro ou elefante. Os dois nomes procedem do livro de Jó. Na luta, o Behemoth tenta destruir o Leviathan com seus chifres e presas, enquanto o Leviathan, com suas nadadeiras, fecha as fauces e o focinho da fera para impedir que coma e respire. Para Schmitt, esta imagem mítica significa o bloqueio de uma potência terrestre por uma marítima, que corta seus meios de abastecimento para vencê-la pela fome. Schmitt acrescenta que, para os judeus cabalistas, tudo termina com a morte dos monstros (isso é, dos poderes beligerantes), enquanto eles, que se mantiveram à margem, comem a carne das feras mortas e constroem tendas com sua pele.
Para Dugin, a Rússia sempre foi uma civilização telúrica. Desde a Rússia de Kiev, o Czarado da Rússia, a URSS ou a atual Federação Russa, acima (ou abaixo) das diferenças políticas ou ideológicas, há um conjunto de traços comuns no curso da história russa: o enfrentamento contínuo, tanto ideológico quanto geopolítico com as civilizações “do Mar”. A Guerra Fria e o atual enfrentamento da Rússia de Putin com os EUA e seu aliados são um bom exemplo deste enfrentamento, ainda que com motivações políticas e ideológicas distintas.
À política da globalização, que é um intento de estender, de forma totalitária, os pressupostos da civilização ocidental (e especialmente dos EUA) à toda terra, impondo seus valores (mercado, individualismo, democracia formal) ainda que seja pela força, Dugin opõem uma concepção multipolar, com a ideia de Grandes Espaços que coincidam com as grandes civilizações.
Nesse sentido, o bloco formado pela Rússia e seu aliados coincide com a Eurásia e o domínio do Heartland, e deve desempenhar um papel fundamental na geopolítica do futuro, em aliança com a China e outros países emergentes (Índia, Brasil) para se opor à globalização.
Daqui em diante, o conceito de eurasianismo assume dois significados distintos. Em seu sentido mais estrito e original, se refere à afirmação e defesa do Bloco Eurasiático e dos valores próprios da civilização cristã-ortodoxa, capaz de opor-se à política unipolar dos EUA. Contudo, em sentido geral, onde há defesa de uma identidade nacional ou cultural contra a homogeneização globalizadora, o eurasianismo pode ser tomado num sentido mais genérico.
Assim, quando os polacos afirmam sua identidade nacional e católica, quando os franceses ou os gregos se opõem às políticas neoliberais da UE ou quando nós, espanhóis, defendemos nossa identidade hispânica frente aos separatismos ou frente às modas made in USA, mesmo sem sabê-lo, estamos sendo eurasianos.
Dessa maneira, o eurasianismo se torna uma bandeira ideológica de todos aqueles que lutam por um mundo multipolar, que respeite não somente as diferenças das grandes civilizações (europeia, asiática, árabe, etc.), mas também as diferenças étnicas e as particularidades culturais dos distintos povos que integram cada uma destas grandes civilizações.
Em nossa perspectiva, essa utilização genérica do termo “eurasianismo” pode ser confusa, ou pode ser interpretada como uma espécie de “imperialismo ideológico” russo. Consideramos que a aplicação das ideias de Dugin à realidade espanhola deve ser denominada Hispanismo (assim como no Peru nosso amigo e colega Israel Lira utiliza Crisolismo para denominar a aplicação da Quarta Teoria Política à sua realidade nacional).
Dugin aponta, nesse sentido, que o Estado Nacional, a pesar de suas origens liberais e de sua contribuição para a homogeneização dos povos, enquanto primeiro advento na homogeneização total da globalização, pode desempenhar um papel na resistência à esta. Embora seja verdade que nenhum Estado Nacional, por si só, possa resistir à globalização, é possível, através da resistência, retardar a sua perda de poder. Temos um bom exemplo na França, aonde a defesa do Estado Nacional Francês feita pela Frente Nacional de Marine Le Pen se transformou em um obstáculo para os processos migratórios e as políticas neoliberais promovidas pela UE.
Notas:
[1] Steuckers, R. (2012) “Karl Haushoffer (1869-1946)” Nihil Obstat, revista de historia, metapolítica y filosofía, nº 18-19, pp. 83-90.
[2] Cuellar Laureano, R. (2012) “Geopolítica. Origen del concepto y su evolución” Revista de Relaciones Internacionales de la UNAM, nº 113, pp.59-80.
[3] Cuellar, obra citada.
[4] Borrel, J.J. (2017) “Karl Haushoffer frente a sus críticos. Apresentação de Apología de la Geopolítica alemana” Revista de la ESG, nº 595, pp. 61-68.
[5] Lacoste, Y. (1977) La Geografía: un arma para la guerra. Barcelona, Editorial Anagrama.
[6] Cuellar, obra citada.
[7] Em sua obra The Geographical Pivot of History publicada em 1904.
[8] Alsina Calvés, J. (2015) Aportaciones a la Cuarta Teoría Política. Tarragona, Ediciones Fides, pp. 110-112.
[9] Cuellar Laureano obra citada.
[10] Idem.
[11] Cadena Montenegro, obra citada.
[12] Dugin, A. (2017) Geopolítica del mundo multipolar. Tarragona, Ediciones Fides; (2017) Teoría del mundo multipolar. Tarragona, Ediciones Fides. (2018) Geopolítica existencial. Conferencias en Argentina. Tarragona, Ediciones Fides.