Apesar das diferenças entre si, o liberalismo, o comunismo e o fascismo possuem raízes comuns em uma herança da Modernidade (em sentido sociológico) e em um legado iluminista. Todas essas ideologias se baseam no mito do progresso, por exemplo. Poucos pensadores são capazes de fazer a crítica ao próprio paradigma da Modernidade, no qual vivemos imersos (a crítica ao próprio mundo moderno). Pensadores e poetas “reacionários”, “tradicionalistas” e “conservadores” como G. K. Chesterton, T. S. Eliot, Martin Heidegger, Carl Schmitt, René Guénon, Frithjof Schuon, Christopher Lasch (em algum grau) e o próprio Ted Kaczynski tiveram o coragem e o engenho de criticar os próprios fundamentos de nossa sociedade moderna e os mitos que a sustentam. Geralmente associados à “esquerda”, também fizeram o mesmo Ariano Suassuna, o próprio Robert Kurz (em algum grau), José Carlos Mariátegui, Glauber Rocha e alguém tão inclassificável como Georges Sorel (na verdade, todo verdadeiro antimoderno já se coloca, de alguma forma, fora da dicotomia política moderna esquerda-direita).
Julius Evola é um desses pensadores. Se normalmente é associado a uma “extrema-direita” reacionária, sua obra, fundamentada também em uma noção de Tradição, influenciou também movimentos tão “inclassificáveis” quanto a Lotta di Popola e outros, às vezes chamados pejorativamente de “nazi-maoístas” – pessoas e movimentos que defendiam uma Europa soberana livre dos EUA e atacavam radicalmente o capitalismo e a “globalização”, se apropriavam do ícone Che Guevara como herói anti-imperialista e defendiam as revoluções líbia e iraniana.
A obra de Evola e outros tradicionalistas têm influenciado discretamente personagens tão díspares quanto Aldous Huxley, Mircea Eliade e Hermann Hesse e tantos outros (como aponta Mark Sedgwick, em seu livro Against the Modern World, aliás, antipático ao movimento) .
Goste-se ou não dos tradicionalistas como Evola e Guénon, o fato é que suas obras contêm insights fecundos sobre a natureza da sociedade moderna, fundada na técnica e na quantidade e apresentam uma crítica devastadora a seus fundamentos.
E a verdade é que os autores tradicionalistas frequentemente são apropriados por grupos que seriam rechaçados por eles próprios. Se Olavo de Carvalho e seus asseclas se apropriam do pensamento de Guénon e o falsificam, outros grupos, no Brasil, vêm tentando fazer o mesmo com a obra de Evola, usando o Barão como pretexto para defender o governo Bolsonaro, a subordinação da América do Sul aos Estados Unidos e o império do Capital e da usura. Essas tentativas de apropriação precisam ser desmascaradas.
Julius Evola (1898-1974), filósofo italiano e principal nome do tradicionalismo em seu país, tem uma popularidade crescente na internet. O que lhe causaria asco e confirmaria as suas previsões sobre a fase final do processo de decadência do Ocidente, porém, é que ele é um autor muito citado para efeitos de espetacularização, fetichismo e estética, especialmente no mundo virtual, mas simplesmente não é lido.
Na melhor das hipóteses, alguns de seus fãs (a categoria de figura que Evola identificaria como típica do Quinto Estado) leram o Rivolta contro il mondo moderno (1934) e encerraram por aí. Consideram que sabem o suficiente de Evola, chegam a posar de especialistas e gurus, tomando as posições e declarações de Evola nesse livro como definitivas e inscritas em pedra, como se Evola fosse René Guénon ou Frithjof Schuon, que ergueram ao redor de si círculos de bajuladores dedicados a repetir e regurgitar tudo que o mestre dizia, e não um filósofo-guerreiro, um homem que, por natureza e por herança, possuía uma disposição ativa.
Com isso, queremos dizer que Julius Evola nunca construiu dogmas, tampouco tolerou estar cercado por estudantes com o temperamento de bajuladores. Ao contrário, a sua prolífica produção de artigos, ensaios e resenhas mostra que o Barão buscava permanecer sempre atualizado no que concerne a produção intelectual das áreas de seu interesse, e quando necessário revisava posições passadas, e às vezes contrariava tardiamente declarações feitas em obras de décadas anteriores. Nada disso precisaria ser mencionado, afinal, esse é o comportamento padrão, típico, normal, do filósofo (philosophos = amante da sabedoria).
Após seu falecimento, Evola deixou um bom número de estudantes, especialmente na Itália: Renato Del Ponte, Gianfranco De Turris, Claudio Mutti, Adriano Romualdi, Sebastiano Fusco, Mario Michele Merlino, Franco Freda, e muitos outros. Como era de se esperar, nenhum culto foi erguido ao redor de Julius Evola, nenhum “evolianismo ortodoxo” foi instituído, nenhuma dogmática foi codificada, sacralizada e repetida ad nauseam irrefletidamente. Cada um dos jovens que dos anos 50 aos 70 se encontrou com Evola para ouvi-lo trilhou o seu próprio caminho, e mais importante: avançou na senda “reaberta” por seu “mestre”, expandindo, detalhando, e sempre que necessário, revisando e corrigindo o Barão.
Sim, Julius Evola cometia erros. Afinal, ele se propôs a escrever sobre uma amplitude imensa de assuntos, passando de forma bastante geral por temas de todos os campos do conhecimento, de quase todas as civilizações e de quase todas as religiões. Seria impossível ser um especialista em todos esses temas. Para não falar no fato de que dos anos 70 até hoje tivemos mais acesso a textos primários ou novos estudos sobre os vários temas abordados por Julius Evola. Até aqui, não há nenhuma polêmica. Como os estudantes de Evola, em sua maioria, seguiram caminhos mais especializados, apontar as imprecisões do “mestre” é algo de praxe e é possível fazer isso sem deixar de ser evoliano, na medida em que se reconheça que o núcleo fundamental do pensamento do Barão é verdadeiro.
Existem, aliás, várias anedotas sobre como o Barão Evola, tal como um mestre budista, tratava mal, ignorava ou respondia de forma críptica a jovens que vinham bajulá-lo ou demonstravam ausência de um espírito ativo[1].
Tendo sido feitas essas considerações propedêuticas (que talvez fossem desnecessárias em qualquer outro país, mas que podem ser necessárias aqui pela propensão nacional à genuflexão intelectual e à aversão pelo livre pensar), apresentamos a questão que motivou este artigo.
Liberais que, talvez por estética ou fetiche, resolveram se apropriar do pensamento de Evola resolveram declarar que o processo de regressão das castas, descrito pelo Barão, termina, finda, no Quarto Estado; que para Evola o capitalismo é melhor que o comunismo; e que qualquer crítica mais dura de Evola aos Estados Unidos se daria por conta de uma suposta penetração marxista neste país, ou seja, que os EUA são, e permanecem, um baluarte do Terceiro Estado e que não há nele nada de intrinsecamente negativo.
Afirmações que são, no mínimo, peculiares para qualquer um que possua algum conhecimento mais a fundo (ou seja, que tenha lido mais do que um livro) do pensamento de Julius Evola.
Primeiro, porém, precisamos compreender a ideia de regressão das castas. A ideia de regressão das castas, apresentada por Evola em Rivolta contra il mondo moderno, constitui a noção de que, contrariamente às noções progressistas da cosmovisão moderna, as sociedades humanas percorrem um ciclo decadencial, que corre em paralelo com um processo decadencial cósmico iniciado pelo ocultamento do centro que custodia a verdade primordial.
Este processo decadencial político-social foi descrito por Julius Evola por meio de uma analogia com as castas da tradição hindu, as quais, não obstante, possuem seus paralelos na organização social de praticamente todas as ditas civilizações tradicionais, mesmo as que não foram fundadas pelos indo-europeus. O que Julius Evola quer dizer com isso é que a involução político-social das sociedades humanas, atravessa fases metapolíticas e axiológicas, nas quais predominam visões-de-mundo que refletem o ser de uma determinada casta.
A partir do centro primordial, simbolizado pela figura do Imperador, que reúne em si poder espiritual e poder político, o que é seguido pela usurpação dos brâmanes/sacerdotes, então pela usurpação dos xátrias/guerreiros, depois pela usurpação dos vaixás/comerciantes e logo pela usurpação dos sudras/servos. Essa é, resumidamente, a narrativa apresentada por Julius Evola em Rivolta contro il mondo moderno. Nosso autor enumera cada um desses “momentos” na regressão decadencial. Começando pelo domínio dos sacerdotes, Evola se refere a Primeiro Estado, Segundo Estado, Terceiro Estado e Quarto Estado[2].
Cada um desses momentos é iniciado, inaugurado por uma sublevação, mas Evola dá mais atenção às sublevações que deram início ao Terceiro Estado e ao Quarto Estado, que seriam respectivamente a Revolução Francesa, em 1789, e a Revolução Russa, em 1917. Cada um desses momentos representa um ponto de virada que puxa o Ocidente (e todo o mundo tocado pela civilização ocidental) para um nível inferior no processo decadencial.
Se formos dar ouvidos aos neoliberais reacionários da direita burguesa que por fetichismo pseudo-neofascista reivindicam Evola, teríamos que parar por aí. Ninguém precisa ler mais nada de Evola, passem reto, tapem os olhos e os ouvidos, o pensamento de Evola não possui mais nada de relevante, e ele não pensou nada de novo depois de 1934. Temos agora que encerrar a narrativa descrita acima em um “livro sagrado”, e seria até melhor queimar ou esconder os outros livros e artigos de Evola.
A questão é que como nós, da Nova Resistência, somos evolianos (os únicos evolianos brasileiros), não podemos fazer isso.
O primeiro problema concerne a identificação indevida entre castas e ideologias. Esse erro parte do princípio de que o capitalismo é sinônimo de Terceiro Estado e comunismo é sinônimo de Quarto Estado. Evola nunca disse qualquer coisa desse tipo. Para piorar, essa associação estaria na contramão do pensamento evoliano. Se capitalismo é Terceiro Estado e comunismo é Quarto Estado, o final da Guerra Fria teria marcado um retorno do Quarto Estado ao Terceiro Estado. Estaríamos progredindo! Estaríamos passando por uma evolução social e política! Contra o que dizem os nossos olhos e as nossas mentes, que testemunham níveis cada vez mais abissais de monstruosidade e degeneração, os capitalistas pseudo-evolianos estão nos dizendo que está tudo melhorando! Afinal, o Quarto Estado, que é metafisicamente inferior, foi derrotado pelo Terceiro Estado, que é metafisicamente superior a ele.
Para essa visão progressista do pensamento de Evola, veja-se, é fundamental negar até a morte que o Barão haja escrito ou teorizado sobre qualquer coisa como um Quinto Estado. Essa noção é anátema! O comunismo é a pior forma política possível e não é possível cair para um nível inferior ao Quarto Estado. Só se pode subir, evoluir, o mundo está progredindo! Do final da Guerra Fria em diante está tudo melhorando e tudo tende a melhorar! Já estão começando a perceber por que os únicos evolianos brasileiros somos nós da Nova Resistência?
Vejamos, porém, que em 1953, na obra Gli Uomini e le rovine, sem comentar ainda sobre o Quinto Estado, Evola sustentava que o capitalismo era, pelo menos tão subversivo quanto o marxismo:
“Nada é mais evidente do que o fato de que o capitalismo é tão subversão quanto o marxismo. Idêntica é a visão materialista da vida que está na base de um e do outro; idênticos qualitativamente são os ideais de ambos; idênticas, em ambos, são as promessas ligadas a um mundo cujo centro é constituído pela técnica, pela ciência, pela produção, pela ‘eficiência’ e pelo consumo”. [3]
O fato de que não existe identificação ideológica dos Estados é comprovado quando nosso autor, novamente em Rivolta contro il mondo moderno, aponta que as potências do Eixo, se referindo aí mais especificamente à Alemanha Nazista e à Itália Fascista, são expressões do Quarto Estado. Estamos aqui diante de algo importantíssimo. Temos que lidar com o fato de que Evola associa Alemanha e Itália com o Quarto Estado, mas EUA, Inglaterra e França com o Terceiro Estado.
Ora, a marca do Quarto Estado é o coletivismo que afunda a personalidade humana no anonimato. No texto de 1929, Americanismo e Bolscevismo, Evola falava em uma “Besta sem Nome”[4] que avançava contra a Europa vinda simultaneamente do Oeste e do Leste. O Quarto Estado é a sociedade de massas, da produção massificada, da política de massas, da mobilização técnica do homem como mero recurso numérico. Se este é o Quarto Estado, então quando da Segunda Guerra Mundial teríamos que estar falando de um confronto entre potências que pertenciam, todas elas, ao Quarto Estado. Em 1939, quando começa a Segunda Guerra Mundial, EUA, Inglaterra, França, Alemanha, Itália e União Soviética são sociedades de massas. Toda a sua estrutura política e econômica é massificada. Nesse sentido, a identificação que Evola faz, naquele momento, e mais uma vez em Gli Uomini e le Rovine (1953), dos EUA e seus aliados com o Terceiro Estado pode ser apontada verdadeiramente como um equívoco ou como mera força de expressão.
Veja-se, portanto, que o capitalismo não é um “Estado” e pode existir no Terceiro Estado e no Quarto Estado. Não é o sistema econômico que demarca a distinção entre Estados. Afinal, Julius Evola não era economicista. O critério não é econômico! E quem diz o oposto, ou seja, que o capitalismo pertence ao Terceiro Estado, ao usar um critério economicista, está pensando, novamente, na contramão do evolianismo.
Aqui, porém, nos deparamos com uma outra questão que nos é apresentada pelo filósofo russo, Aleksandr Dugin, um dos principais evolianos de nossos tempos e responsável pela introdução do pensamento de Evola em seu país.
As equiparações entre castas tradicionais e estamentos/classes está correta? A burguesia é o equivalente direto europeu dos vaixás? Existem banqueiros em uma sociedade tradicional?
Segundo os estudos de Dugin, detalhados na obra Etnossociologia[5], as vocações tradicionais védicas da casta dos vaixás, da terceira casta, são a agricultura e a pecuária. Nem o comércio, e muito menos a usura. Em uma sociedade tradicional sadia não existe empréstimo a juros ou rentismo. Originalmente, caixeiros-viajantes e usurários estavam por fora do sistema de castas, e apenas em um momento tardio, no final do período védico, eles começam a se integrar a terceira casta. Nisso, Dugin está seguindo também Georges Dumézil, segundo o qual na sociedade tradicional indo-europeia simplesmente não existe casta comerciante. [6]
Falando especificamente do mundo europeu, Dugin demonstra que a burguesia tal como a conhecemos historicamente foi formada a partir daqueles grupos sociais que estavam fora dos limites da sociedade de castas ou ocupavam um papel inferior em relação aos camponeses[7]. Caixeiros-viajantes, serviçais, agiotas, e todo tipo de refugo que se aglomeravam nos espaços urbanos e começaram a constituir o gérmen da burguesia tal como a conhecemos. Não à toa essas ocupações foram abraçadas com gosto por tipos forasteiros, apátridas e nomádicos, sem raízes. Em outras palavras, quando passamos da hegemonia do Segundo Estado ao Terceiro Estado, com a Revolução Francesa, as forças que se erguem não são equivalentes franceses dos vaixás puros, mas já uma mistura caótica de representantes da terceira casta e dos párias. Em paralelo, o proletariado que se formou a partir do cercamento dos campos não é equivalente à casta dos sudras, mas foi historicamente composta em boa parte pelos membros empobrecidos da terceira e segunda castas, além de elementos da quarta casta. A linearidade da equivalência da regressão das castas, assim, está rompida.
Esse ajuste que Dugin faz no pensamento de Evola, muito bem fundamentado e embasado, justifica, à luz do pensamento tradicional, a possibilidade de fazer determinados juízos positivos sobre o comunismo. É que ali não há apenas impulsos servis e coletivistas típicos dos shudras, mas também impulsos românticos, heroicos e bucólicos fruto da presença de elementos xátrias e vaixás em sua composição. Afinal, o que foram os esforços sindicalistas do século XIX senão o anseio pelo retorno da ordem proporcionada pelas corporações de ofício? Algo reconhecido por nacionalistas franceses como Charles Maurras e outras figuras ligadas ao Cercle Proudhon.
Ocorre, porém, que o próprio Barão Evola percebeu que o Quarto Estado não era ainda a fase final do processo de decadência da civilização moderna. Ele aborda o tema pela primeira vez no texto L’Avvento del Quinto Stato, publicado em 1960 no periódico milanês Il Conciliatore. O artigo é uma resenha do livro homônimo de Hermann Berl, lançado em 1931. Afinal, parece que ele recordou que abaixo dos sudras existem os dalits, os chandalas, os párias, os sem-casta. Essa percepção é fundamental, porque o fim da Guerra Fria marca a transição global do Quarto Estado para o Quinto Estado, situação na qual se encontram, hodiernamente, as nossas sociedades contemporâneas. Na obra supracitada o Barão diz:
“A descida quadripartida do nível da civilização e das organizações sociais é uma realidade; igualmente o é a emergência, quando o último grau está por ser alcançado, de forças inferiores, de forças do caos, que em certo sentido podem ser ditas como não mais pertencentes ao mundo propriamente humano, a fórmula do advento do Quinto Estado podendo, talvez, enquadrá-la em uma hierarquia normal”[8].
Qual é a marca do Quinto Estado? Se o Quarto Estado é caracterizado por um coletivismo sem face, o Quinto Estado constitui um prolongamento nivelador e desumanizante, verdadeiramente bestial e dissolvente. Todos os elementos de ordem e arregimentação do Quarto Estado se desintegram em uma desordem generalizada que reúne, simultaneamente, o máximo coletivismo e o máximo individualismo. Na medida em que a política é negada no Quinto Estado, este se constitui verdadeiramente em um Anti-Estado. Se elementos do Quinto Estado já existiam no Terceiro Estado e no Quarto Estado, desde a infiltração de determinadas “forças alógenas”, a conversão da sociedade americana em uma sociedade de párias parece ser fato consumado nos anos 60, se espalhando gradativamente por toda a sua área de influência e se tornando a realidade global após o fim da Guerra Fria. Trata-se da ascensão ao poder direto todas aquelas forças subversivas obscuras que se fortaleceram com a ascensão do Terceiro Estado, além de tudo que poderíamos chamar de camada “lumpem” da sociedade. Loucos, criminosos, figuras do tipo sub-celebridade, tudo que pertence ao refugo social.
Cristiano e Davide Lugli comentam sobre o Quinto Estado:
“Que fique claro que não se quer enfatizar o curso de toda a história como sendo privado de problemas, já que, no sentido contrário, não é segredo que a violência e a atrocidade dos indivíduos sempre existiram; todavia a exclusividade da nossa época remete aos métodos malignos, detalhadamente estudados, capazes de degradar os seres humanos até reduzi-los a cadáveres ambulantes, privado de vontade e enfeitiçado diante dos próprios olhos sem poder opor a menor resistência, ou mesmo uma reação, não obstante os falsos mitos das gerações subversivas constituídos nos anos 60 e 70. Este tipo de rebelião é, também ela, típica do advento do Quinto Estado, onde o caos domina e abre caminho para as forças selvagens que varrem para sempre a ideia de egemonikon que domava e ordenava sentidos e impulsos”.[9]
No Anti-Estado dos párias prevalecem todas as forças sub-humanas que em sociedades tradicionais eram mantidas apartadas, os parasitas de todo tipo, toda forma de degenerado e louco.
Na compilação Civiltà Americana (1983), lançada postumamente e que reúne textos de 1930 a 1968 sobre os EUA, Evola aponta que àquela altura, o tipo de civilização apresentado pelos EUA, constituía uma ameaça maior que o comunismo, era um modelo inferior, pior, mais decadente. Diz o Barão:
“Os americanos são a refutação vivente do axioma cartesiano ‘penso, logo existo’: os americanos não pensam, entretanto existem. A mentalidade americana, pueril e primitiva, não tem uma forma característica e, assim, está aberta a todos os tipos de padronização.
Em uma civilização superior como, por exemplo, aquela dos indo-ários, o ser que carece de uma forma característica ou casta (no sentido original da palavra), é um pária. Neste sentido, a América é uma sociedade de párias”[10].
Trata-se de uma análise ontológica fundamental. A ideia de casta possui um aspecto de “forma”, no sentido de uma força que imprime sentido, limite, contorno, e que é expressão do ser daquele que a ela pertence. É por isso que Evola associa a ausência de forma à ausência de casta e, portanto, ao status de pária.
Ainda que Evola não esteja usando aqui as terminologias concernentes a Terceiro Estado, Quarto Estado e Quinto Estado, fica claro que Evola está falando de um tipo de realidade que se encontra abaixo do Quarto Estado. O sudra possui forma. O Quarto Estado, em que pese o seu estágio avançado de decadência, conhece o sentido da ordem. O chandala não possui forma, o Quinto Estado desconhece a ordem, ele é fluido, liquefeito.
Em outro ponto, Evola retoma a questão da dualidade entre os sistemas encarnados nos EUA e na URSS. Lembremos que, anteriormente, em Rivolta contro il mondo moderno e Gli Uomini e le rovine, o Barão havia equiparado as duas realidades, afirmando não poder haver preferência entre um e outro, ou um melhor entre os dois. Agora, porém, Evola diz:
“Faz algum tempo que escrevi que dos dois grandes perigos que confronta a Europa – o americanismo e o comunismo – o primeiro era mais negativo. O comunismo só é um perigo pelas consequências repressivas que acompanhariam a imposição da ditadura do proletariado. Enquanto a americanização se impõe por meio de infiltração gradual, que modifica as mentalidades e os costumes, e que parece inofensivo, mas realiza uma perversão e degradação contra a qual é impossível lutar diretamente”[11].
Ora, que sistema econômico vige nos EUA senão o capitalismo? Que sistema político vige nos EUA senão a democracia burguesa? Que filosofia política é hegemônica senão o liberalismo? Americanismo, portanto, não é outra coisa que um nome para o tipo de liberalismo democrático capitalista que começou nos EUA e foi se espalhando pelo mundo.
E o que significa essa noção de que os ideais liberais e democráticos estiveram, primeiro, associados ao Terceiro Estado e eram, agora, insígnia do Quinto Estado? Pela nossa percepção, herdada de Dugin, de que na ascensão do Terceiro Estado emergiram também elementos párias, tudo isso parece significar que os elementos párias se fortaleceram até se tornarem hegemônicos nos EUA, espaço mais propício do que nas nações burguesas da Europa Ocidental, onde ainda havia algum grau de enraizamento no mundo tradicional.
Para Evola, essa nova ordem que nos anos 60 já havia convertido os EUA (talvez seu marco tenham sido as manifestações de 1968), era mais perigosa que o comunismo principalmente por sua capacidade de se difundir e se infiltrar de maneira gradual, modificando mentalidades e costumes. Hoje nos referíamos ao “soft power” americano, apto a empreender todo tipo de engenharia social, bem como poderíamos usar a terminologia debordiana da “sociedade do espetáculo”. Todos os fenômenos subversivos de pretensa “rebelião” e “contra-cultura” dos anos 60, em sua maioria nascidos nos EUA, estão enquadrados aí, como aponta o Barão novamente em L’Avvento del Quinto Stato:
“Desde a publicação do livro de Berl, surgiram no mundo moderno fenômenos que, em parte, podem ser relacionadas às ‘emergências’ supramencionadas. Valeria a pena mencionar, por exemplo, certos aspectos da chamada ‘geração em revolta’. A revolta pode ser legítima quando travada contra uma civilização em que quase nada mais possui uma justificação superior, que é vazia e absurda, que, mecanizada e padronizada, tende ela mesma ao sub-pessoal em um mundo amorfo da quantidade. Mas quando se trata de ‘rebeldes sem bandeira’, quando a revolta é, por assim dizer, um fim em si mesmo, o restante servindo como pretexto, quando ela é acompanhada por formas de desencadeamento, de primitivismo, de abandono àquilo que é elementar em um sentido inferior (sexo, jazz, embriaguez, violência gratuita e usualmente criminosa, exaltação complacente do vulgar e do anárquico), não é arriscado estabelecer um nexo entre estes fenômenos e os outros que em um plano diverso atestam a ação de forças do caos emergentes de baixo através de fendas cada vez mais visíveis na ordem subsistente[…]”[12]
Maurizio Blondet, tradicionalista católico de orientação evoliana, traça a conexão fundamental entre o fenômeno do Quinto Estado e a realidade pós-liberal, pós-política e capitalista tardia do mundo contemporâneo:
“Hoje, na anarquia hedonista triunfante, se deve deplorar a emergência de um ‘Quinto Estado’: os frequentadores de estádios e discotecas que impõem a ‘sua’ visão de mundo, que querem ser administrados ao invés de governados, que querem acima de tudo gozar (significativamente, um grupo sessenta-e-oitista lançou o slogan ‘gozo operário’ para substituir o ‘poder operário’). Na perspectiva das castas, estes são os ‘chandala’, sub-humanos, puro ‘tamas’, incapazes de sacrificar um pouco do hoje em prol do amanhã e, portanto, incapazes de sustentar a civilização.
Nas suas mãos, a civilização desmorona, a democracia se converte em criminalidade, a religião é abandonada, o temperamento moral se liquefaz (e aqui é lançado no ridículo).
Mesmo toda forma de arte – como vemos – se degrada e morre, substituída por um ‘mercado da arte’ com leilões e dinheiro.
Os que acreditam serem livres porque ‘vivem como querem’, na verdade, estão sujeitos à mais dura das ‘leis’ impessoais, o economicismo, o ‘livre-mercado global’ que faz de cada um deles (e de nós) os seus tolos.
[…]
Até a sexualidade – não mais assumida como dever – se torna intercambiável e incerta: se glorifica o travestismo, se exaltam como ‘normais’ as perversões. São personalidades larvais, a-racionais, guiadas por impulsos primários. A razão desaparece, substituída por uma violência idiota e corpuscular, por uma rapina generalizada, por uma guerra molecular de todos contra todos. Segundo a antiga sabedoria indo-europeia, esta desordem extrema indica o limite extremo da decadência, do Kali Yuga”[13].
E em lugar algum de qualquer de seus escritos, ao contrário do que é dito pelos pseudo-evolianos neoliberais, as críticas que Evola faz aos EUA se devem a algum tipo de “infiltração marxista” dos EUA. Os EUA são criticados por sua essência mesma, que naquele momento se provava mais terrível e maligna. Os EUA não são apontados como o mal maior por causa de alguma infiltração marxista, mas porque, com o tempo, Evola percebeu que os EUA constituíam um Extremo Ocidente. Ou seja, que ali, todas as tendências negativas do liberalismo, da democracia e do capitalismo se intensificavam e assumiam um caráter plenamente demoníaco, pela ausência do lastro da tradição europeia.
A afirmação de que Evola só critica os EUA por conta de uma “infiltração marxista” não é apenas um erro ou uma mentira. É, verdadeiramente, uma fraude do pior tipo, porque tem uma finalidade específica: despertar tolerância e aceitação pela atual ordem hegemônica mundial. Para todos os efeitos, quem propaga este tipo de fraude está a serviço das mais nefastas forças demoníacas. Não são personagens ingênuos e desinteressados que meramente se equivocam em sua busca pura pelo conhecimento de Evola. Não são evolianos. Nunca leram as obras de Evola. São inimigos de Evola e do pensamento tradicional. São apologistas da atual ordem hegemônica mundial. São párias ressentidos em uma cruzada contra as forças da Tradição e contra todas as agremiações que, como a Nova Resistência, tem como bandeira o pensamento tradicional.
O sentido da história desde uma perspectiva tradicional, culmina no Quinto Estado, a era pós-liberal, pós-política, do capitalismo tardio financeirizado e precarizante. O caráter insuficientemente moderno do comunismo foi demonstrado cabalmente por sua derrota na Guerra Fria[14]. A essência pura e plena da modernidade, sem qualquer limite ou forma imposta de cima para baixo, se manifesta no Quinto Estado, como apresentado em trabalho de conclusão de curso para a Universidade de Perugia por Mario Cecere:
“A ‘modernidade’, no sentido oposto, receptáculo de influências psíquicas tensionadas no subsolo pré-racional do subconsciente e do inconsciente, afundada no abismo promíscuo do Mundo das Mães, constitui a raiz da civilização da massa: entidade indiferenciada, útero engravidado do ‘Quinto Estado’, essência demoníaca do sem-forma, reino de forças ínferas e subpessoais, lugar de ‘excitação’ dos resíduos ctônicos e primitivistas.
O mundo moderno, evolianamente entendido, não é tanto o mero resultado de um processo histórico orientado. Ele é, acima de tudo, o reflexo e a projeção, na história, de uma ordem ideal e de um horizonte meta-histórico, de uma hierarquia espiritual que conhece tanto o ‘alto’ como o ‘baixo’ – e este último, manifestando-se no domínio político e na dinâmica histórica da ‘idade escura’, propícia ao ‘advento’, no mundo fenomênico finito, do anti-Estado, cuja premissa necessária é, precisamente, uma ‘desintegração’ do plano metafísico, um ‘desmoronamento’, uma sua ‘perversão’, que, misteriosamente, repercute efeitos específicos no plano físico, envolvendo a decadência da ordem hierárquica tradicional que custodia o logos e garante a auctoritas do Estado orgânico”.[15]
Desintegração, desmoronamento, perversão. Quando, senão na era pós-moderna que se inicia com o fim da Guerra Fria, vimos os mais altos níveis de desintegração, desmoronamento e perversão? Onde, senão no coração do Ocidente atlantista, vimos os mais elevados graus de desintegração, desmoronamento e perversão?
A ordem pequeno burguesa e industrialista inaugurada pela Revolução Francesa no século XIX pode ser menos ruim do que a massificação coletivista vista no século XX, inaugurada pela Revolução Russa e difundida por todas as nações, sejam comunistas, fascistas ou democráticas, mas o liberalismo, o capitalismo, e a democracia se provaram capazes de ir muito mais longe e muito mais fundo no processo de destruição espiritual do mundo.
O Barão Julius Evola, homem genial, intuiu isso nos anos 60, especialmente após as pantomimas do maio de 1968 e após ver a Itália ser culturalmente invadida pelo veneno americanista mais torpe.
Os evolianos do século XXI, que vivemos para ver o fim da Guerra Fria, o colapso da URSS e a morte do comunismo, pudemos testemunhar isso e confirmar as intuições de Evola. E nós, da Nova Resistência, como os custódios do pensamento de Evola no Brasil temos o dever de mostrar isso a todos, de desbaratar toda tentativa de apropriar o pensamento de Evola em prol de Mammôn e de extirpar todos os falsificadores do pensamento do Barão.
Notas
[1] https://www.ereticamente.net/2014/08/il-mio-incontro-con-evola.html
[2] Evola, Julius, Rivolta contro il mondo moderno, 1934
[3] Evola, Julius, Gli uomini e le rovine, 1953
[4] Evola, Julius, Americanismo e Bolscevismo, 1929
[5] A obra Etnossociologia, do professor Aleksandr Dugin, foi recentemente lançada em inglês pela editora Arktos. O original é de 2011, e pode ser lido no site 4pt.su.
[6] O professor Dugin estuda o tema desde, pelo menos, 1996, como se pode ver do Manifesto dos Novos Magos, escrito junto a Sergey Kuriokhin: https://eurasianist-archive.com/2019/08/26/alexander-dugin-sergey-kuryokhin-manifesto-of-the-new-magi/ e ele aparece mais uma vez, de uma forma mais elaborada em Julius Evola e o Tradicionalismo Russo: https://www.rigenerazionevola.it/julius-evola-e-il-tradizionalismo-russo/
[7] https://legio-victrix.blogspot.com/2019/03/aleksandr-dugin-quarta-teoria-politica.html
[8] Evola, Julius, L’avvento del Quinto Stato, Ricognizioni: Umonini e Problemi, Edizioni Mediterranee, 1985 (o artigo original foi publicado em 1960 no jornal Il Conciliatore)
[9] https://www.radiospada.org/2017/09/stato-o-anti-stato-il-culmine-del-quarto-stato/
[10] https://legio-victrix.blogspot.com/2011/01/civilizacao-americana.html
[11] Ibid.
[12] Ibid.
[13] http://www.circolo-latorre.com/home.jsp?idrub=5215
[14] Dugin, Aleksandr, A Quarta Teoria Política, Editora Austral, 2012
[15] Cecere, Mario, Avanguardia e nihilismo in Julius Evola, Università di Perugia, 2009