Fonte: http://www.ernst-juenger.org
Para o pensador alemão Ernst Jünger a figura mitológica do “titã” pode servir para ampliar nossa compreensão da verdadeira natureza da civilização ocidental. Isso porque a natureza do “titã” está ligada ao exagero, à noção de uma vontade de poder cega e insaciável, que não conhece qualquer tipo de limite. Isso estaria nas antípodas do senso de medida e equilíbrio simbolizado pelas figuras mitológicas dos “deuses”.
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A orientação titânica de nossa humanidade contemporânea é um tema continuamente referido e explicado por Ernst Jünger e seu irmão Friedrich Georg. Pode ser útil aos leitores ter sua visão ampliada de forma simples para alguns poucos aspectos concretos de nosso mundo moderno.
Segundo uma interpretação, a etimologia da palavra do grego antigo “titã” expressa a noção de um “super-esticar” ou de ser estender além do limite. Isso expressa a falta de um senso de medida dos titãs, no que concerne a expressão de poder. Posto em termos nietzschianos, os titãs são motivados por uma vontade de poder cega e insaciável: sempre mais ao ponto do extremo, sem uma concepção de equilíbrio, de um ponto de suficiência ou equilíbrio que possa ser alcançado e então sustentado ao longo do tempo. Os deuses, que os titãs periodicamente derrubam e conseguem excluir brevemente, representam este senso de medida e equilíbrio.
Já é evidente a partir dessa descrição como a civilização nos últimos poucos séculos se tornou cada vez mais titânica, começando no Ocidente mas agora atingindo uma extensão global. Segundo Jünger, nosso período é o próximo retorno dos titãs após aquele da Roma Imperial. Eu creio que estamos lentamente começando a compreender os perigos da arrogância titânica no homem e, pelo menos teoricamente e em círculos restritos, contemplando uma retirada de sua abordagem da existência insustentável, inescapavelmente catastrófica e também sobre a maneira pela qual a próxima fase pode emergir, um retorno dos “deuses” restauradores da ordem.
Eis aqui então alguns exemplos superficialmente explicados do titanismo conforme ele se manifesta no presente.
Crescimento Econômico, Estupro Ambiental, Infelicidade
Junto com o tema intrinsecamente conectado do meio ambiente, a economia estagnada é a crise do dia nos EUA e Europa, isto é, na vanguarda titânica do nosso mundo. Tem sido tomado como dado há muito tempo que nada é mais importante para o bem-estar humano do que um crescimento econômico contínuo e limitado, que PIBs e rendas mais altos são as medidas críticas do importantíssimo ingresso de um país nos tempos modernos e efetivamente medidas do bem-estar físico e até da felicidade de seu cidadão. Considerando esta pressuposição, não há limite para o nível de riqueza a ser alcançada – isso é mais aparente nos países ocidentais mais ricos onde um nível mais elevado de conforto material dificilmente poderia ser imaginado, e ainda assim o crescimento ainda é uma obsessão. De fato, um círculo vicioso de esforços fúteis cada vez mais intensos é criado neste cul-de-sac: conforme a esquiva felicidade prometida por políticas e cientistas permanece sempre na próxima esquina, atrás do próximo avanço tecnológico ou crescimento econômico, nós ficamos cada vez mais desesperados e corremos cada vez mais rápido ao longo dessa avenida, em cujo fim não a salvação, mas uma catástrofe espiritual e ambiental nos aguarda.
Em determinado momento, nós ocidentais titânicos também buscamos condescendentemente ajudar o mundo “subdesenvolvido” com nosso conhecimento superior, ainda que o processo efetivamente se assemelhe mais a uma infecção dos inocentes com nosso veneno, com as sementes da insatisfação. Se tais iniciativas parecem (ingenuamente) bem intencionadas, em um nível mais profundo elas funcionam para nós como uma distração necessária em relação a nosso desespero espiritual no dilema de “para onde ir agora, agora que nós temos tudo e somos cada vez mais miseráveis”.
Pode parecer que não há a criticar nessas ambições materiais mais que sua futilidade em fornecer felicidade – dado um nível básico de conforto e sustento, a felicidade é basicamente um produto de harmonia e sentido interiores, e não de luxo físico. Mas na verdade elas trazem perigos materiais sérios consigo, já que o crescimento econômico a todo custo envolve um consumo de energia e recursos naturais que crescem constantemente (ver “A Falha da Tecnologia”, de F.G. Jünger), ao ponto da falência ambiental. Começa nossa crise ambiental, nada além da consequência inevitável da super-extensão e da falta de medida. A tragédia aqui é que os titãs – nós – não aprendemos pela experiência, simplesmente nos tornamos suas vítimas: nós só paramos quando catástrofes provocadas por nós mesmos nos detém. Como escrito no “Problema de Aladim”, de Ernst Jünger: “Ou seremos salvos pelo poeta ou pelo fogo”.
Mas mesmo a pior catástrofe ambiental imaginável não seria o resultado mais trágico de nossas pretensões titânicas: a verdadeira tragédia é que elas nos distraem dos esforços espirituais a serem empreendidos em nossas vidas pessoais e, portanto, levam a uma pobreza interior, a uma insignificância pessoal e a infelicidade cada vez maiores. Nós colocamos todas as nossas esperanças em uma salvação material e nos esquecemos da base interna e fundamentalmente espiritual de toda realização mais profunda. De fato, aqueles na vanguarda do titanismo, nossos ricos países ocidentais, indubitavelmente não são os mais ricos em felicidade, e eles quase certamente são os mais espiritualmente falidos. O “Problema de Alladin”, “Logo não haverá nada além do som do Sheol”.
Ciência
De ser uma fonte de conhecimento espiritualmente significativo em tempos antigos, a ciência foi degradada por nossa cultura titânica em uma mera ferramenta para impulsionar crescimento econômico e a invenção pela invenção, isto é, a ciência foi degradada em tecnologia e em um acúmulo insaciável de conhecimento. A maioria dos cientistas se surpreenderia a ouvir falar de tempos em que a ciência buscava um conhecimento absoluto que possuísse significado espiritual para as pessoas, que as ajudasse a alcançar felicidade interior e não meramente conforto físico.
Pois a ciência titânica de hoje está interessada em conhecimento apenas na medida em que ele eleva o poder material ou mundano, ou, quando isso não é aplicável, como na astronomia por exemplo, que ele forneça autogratificação egoísta, material para se gabar disso por sobre outros titãs envolvidos na mesma corrida rumo ao nada – pela própria natureza, os titãs são competitivos. (Uma expressão em baixo nível disso é o curioso orgulho que o homem na rua sente em seu conhecimento de trivialidades, que são absolutamente inúteis em todo sentido a não ser como medida competitiva potencial: “Eu sei mais do que você” – não importando quão inútil o conhecimento abstrato não-integrado é.)
Esta fé titânica na ciência tecnológica como panaceia cujo poder de salvação está sempre provocativamente atrás da próxima esquina, com a próxima inovação técnica, não é apenas arrogante ou ingênua, ela também pode ser mortal; pois a invenção per se não tem preferência por fins benignos ou malignos, e, em uma era de declínio espiritual, esta última até pode emergir como mais mortal do que a primeira. Ademais, quando os acidentes inevitavelmente acontecem, eles assumem proporções tecnicamente empoderadas: o afundamento do Titanic foi um primeiro sinal, dotado de valor simbólico único, mas muitos outros ocorreram desde então, inclusive por exemplo a habilidade técnica de matar e se livrar de seres humanos com elevada eficiência. Neste sentido, nós só podemos agradecer às nossas estrelas que o maquinário atômico jamais saiu realmente do controle.
Arte e Cultura
Como F.G. Jünger aponta em “A Falha da Tecnologia”, os titãs são incapazes de arte porque eles carecem de seus pré-requisitos básicos, um senso de medida. Na verdade, a arte contemporânea se limita, com raras exceções, à pura inovação, à novidade, e geralmente possui um efeito consideravelmente abominável por suas desproporções. Como tudo que é titânico, ela objetiva um efeito dinâmico, ser didática ou pornográfica, atrair ou repelir – ela não possui compreensão da stasis que a verdadeira arte evoca (à la “efeito Stendhal).
Se ela possuir um propósito genuíno no processo maior, o que certamente ela tem, então pelo menos momentaneamente, deve ser o de pilha de adubo sobre a qual as velhas formas desgastadas são decompostas e a partir de cujos ricos substratos novas formas podem algum dia emergir. Mas sejamos objetivos sobre em que estágio estamos agora – quando novas formas emergirem, já será sinal do fim do período titânico.
Como Ernst Jünger aponta em “O Problema de Alladin”, a cultura humana enquanto tal não pode ser desenvolvida em uma sociedade titânica, já que a cultura está baseada em nosso tratamento dos mortos e os titãs patentemente não se interessam pelos mortos ou por nada que tenha relação com o passado e com tradição – eles só querem expressar poder e isso implica uma ruptura com modelos estáticos do passado; eles vivem com um centro existencial de gravidade no devir e não no ser. A continuidade e o ser-para-além-do-tempo implicados pela rememoração do passado, por tumbas e cultos aos mortos não é de interesse e não possui sentido para eles.
Neste mesmo livro, Ernst Jünger especula que a emergência de um novo culto aos mortos será sinal de que a cultura poderá se enraizar novamente – e nós acrescentamos que isso necessariamente também marcará os estertores de morte de nossa fase titânica atual.
“Extremismo”
No ensaio “Mut und Übermut” do livro “Coração Aventuroso”, Ernst Jünger fala sobre ter perdido gosto por certas palavras combinadas com o prefixo “super” (über). Como ele explica, este prefixo possui uma forte conotação de força de vontade, uma crença de que a realização suprema vem da mais intensa aplicação da vontade, e não da sabedoria – isto é, como resultado de esforço titânico.
(Um aparte: o destino do ator do Super-Homem Christopher Reeve pode ser um outro sinal tolamente claro dado por Cassandra do destino da humanidade titânica, semelhante àquela outra profecia dela que Jünger menciona regularmente, sobre o naufrágio do inaufragável Titanic).
A tendência para o superlativo, em palavras e ações, só progrediu desde que aquele ensaio foi escrito – hoje eu sugeriria que a palavra equivalente, a apropriada para o próximo estágio na busca do mais, é o adjetivo “extremo”. “Super” perdeu seu poder e agora somos forçados a usar a próxima e última possibilidade, o extremo. Assim, na mídia, nos estilos de vida e nas produções ocidentais, nós vemos essa palavra por todos os lados: esportes extremos, sexo extremo, nutrição extrema, tecnologia extrema, performance extrema, até minha pasta de dentes se chama “menta extrema”!
Um desenvolvimento social aparentemente trivial que é, na verdade, um prenúncio assustador para nossa civilização titânica – porque o extremo de qualquer desenvolvimento linear (i.e. um que não segue ou crê em padrões cíclicos) deve representar a última fase. Não há lugar para ir depois que essa palavra aparece, não pode haver nada além do extremo, exceto o mergulho da beira do precipício que nós temos tão fanaticamente escalado.
Salvação?
Este fim deve logicamente vir, em algum grau desconhecido de forma catastrófica, mesmo que na realidade os processos meta-históricos envolvidos não sejam lineares mas cíclicos, de forma que “o fim” seja na verdade apenas o ponto baixo que marca o início de um novo ciclo. Nossa força de vontade titânica é tamanha que ela vai nos levar a este fim sem desacelerar, e isso será mais ou menos desastroso em um sentido material. Se pelo menos isso está claro, então a única tarefa que temos hoje não é tentar uma redenção do mundo, cujo destino está fundamentalmente selado, mas nos prepararmos espiritualmente para uma passagem pelas cortinas de fogo e para o novo mundo que deve nascer do outro lado.
Neste sentido, pode ser que nós no Ocidente tenhamos o papel principal, pois aquele que lidera o caminho na direção do abismo do poder material também será aquele que primeiro percebe sua futilidade e então encontra o caminho de fuga. Ernst Jünger disse frequentemente que apesar de ele ser um pessimista a curto prazo, “no final das contas” ele era um otimista. Os deuses sempre retornam – eventualmente. Ele atribuiu o século XXI aos titãs, e o século XXII aos deuses – de minha parte, eu não tenho certeza de que as coisas poderão durar tanto