Neste domingo, ingressou à força o Palácio do Governo da Bolívia um homem chamado Luis Fernando Camacho, com uma bandeira da Bolívia e uma Bíblia. Ele é o líder de uma organização paramilitar neoconservadora que tem perseguido aliados de Evo Morales, mas quem é ele?
Luis Fernando Camacho se apresenta no twitter como “presidente do Comitê por Santa Cruz, advogado e pai de três filhos”. Ele afirma lutar “não com armas, mas com fé”, mas é a face visível do golpe de Estado contra Evo Morales. Quem é o homem que ontem entrou no Palácio do Governo e rezou ajoelhado no chão com uma Bíblia sobre a bandeira boliviana?
O chamam “El macho”, lidera a organização civil mais importante da região mais rica da Bolívia e faz parte de uma das duas grandes lojas maçônicas da região (Los Caballeros del Oriente) e junto com sua família faz parte do Grupo Empresarial de Inversiones Nacional Vida S.A., empresas ligadas a seguros, gás e serviços. Tem 40 anos, é advogado da Universidade Privada de Santa Cruz de la Sierra e fez mestrado em Direito Financeiro e Fiscal pela Universidade de Barcelona.
As empresas familiares
Em meados deste ano, a mídia local informou que Camacho estaria relacionado aos Panama Papers: através da criação de três empresas (Medis Overseas Corp., Navi International Holding e Positive Real Estate), ele teria atuado como intermediário para “ajudar pessoas e empresas a esconder suas fortunas em entidades offshore, lavar dinheiro e estabelecer esquemas de evasão fiscal” (https://www.paginasiete.bo/nacional/2019/7/31/vinculan-al-lider-civico-cruceno-con-el-caso-panama-papers-225964.html). Assim se lê no relatório elaborado pela comissão legislativa que investigou a questão, que foi apresentado em setembro de 2017. Então, Camacho disse que eles queriam intimidá-lo: “Eu não vou calar a boca, vou manter o discurso”, disse ele.
Para o politólogo e analista político boliviano Marcelo Arequipa, “Camacho pertence a uma linhagem familiar histórica em Santa Cruz de uma elite que sempre gerenciou o poder cívico e o poder territorial”. E ele relatou que a situação atual em seu país é como se ele tivesse voltado ao século XIX. “É a bíblia, o conservador e o apelo às elites econômicas anteriores”, diz ele em conversa com a RT.
Para Hugo Siles, cientista político e ex-ministro da Autonomia de Santa Cruz, “Camacho faz parte de uma família rica da região”. E especifica: “No passado, custava a cada usuário de $1.000 a $1.500 para se conectar à rede de gás. Esse era um dos negócios da família dele. Hoje tudo isso é gratuito por causa da política de nacionalização onde o gás é um recurso que nós, bolivianos, recuperamos para nossa economia”. É assim que ele relaciona alguns dos interesses concretos de seu clã que foram afetados pelo governo de Morales.
Um homem da região mais rica da Bolívia
Em sua juventude, Camacho foi vice-presidente da Organização Cruceñista da Juventude (UJC), uma organização cujo lema é “Não somos violentos, somos pacíficos, mas não somos covardes”, e que está organizada sob a “hashtag” #DiosVolveráAlPalacio. Siles o define desta forma: “São um grupo de choque violento, historicamente fizeram uso da força”.
Os jovens fazem parte da grande organização que Camacho agora preside e que entre 1981 e 1983 foi liderada por seu pai: Comitê pró Santa Cruz.
Camacho tem presidido desde fevereiro deste ano. É uma organização que reúne diferentes bairros, zonas, empresas, trabalhadores de uma das áreas mais ricas da Bolívia. A região produz 70% dos alimentos do país e tem um enorme potencial energético e de hidrocarbonetos que, após a nacionalização de Morales em 2016, está agora nas mãos do Estado.
De acordo com dados oficiais do Instituto Nacional de Estatística da Bolívia, o PIB do Departamento de Santa Cruz em 2016 representava 28,9% da economia total do país. “Santa Cruz representa um terço do PIB. Aqui, com imensos recursos, ele organizou uma mobilização de pessoas que tomaram as ruas”, diz Siles.
É uma região rica e influente, mas a última vez que conseguiu ter um presidente próprio foi Hugo Banzer Suárez, que liderou um golpe de Estado em 1971 e depois fundou um partido e ganhou as eleições presidenciais em 1997. Desde o início da administração do MAS, o departamento questionou a legitimidade do governo.
As “cambas”, tal como se definems, foram organizadas em torno de comitês cívicos liderados na altura por Branko Marinković, um líder filho de pai croata e mãe montenegrina, e desafiaram o poder central. Era uma aliança entre as elites dos departamentos de Beni, Pando, Tarija e Santa Cruz que se chamava “o Crescente”. A tensão aumentou e houve mesmo uma guerrilha incipiente que procurou quebrar a unidade do país. A UJC, da qual Camacho foi vice-presidente, foi uma organização chave na escalada da violência.
Ao mesmo tempo, uma nova constituição estava sendo negociada em Sucre. Diante de um tal “empate catastrófico” (como era então chamado), o governo convocou um referendo revogatório em 2008 que refletisse a correlação de forças. Morales ganhou, mas a maioria dos governadores também ganhou. No entanto, o massacre de camponeses no Porvenir, em setembro de 2008, acabou por fazer pender a balança a favor do governo central e forçou os setores mais rebeldes a sentarem-se à mesa das negociações.
Atualmente, segundo Siles, “à noite, em Santa Cruz circulam carros que saem para patrulhar a cidade: negócios que veem abertos, fecham à força”.
Perseguição em nome de Deus
Tudo o que Camacho faz tem uma justificação religiosa muito forte: ele menciona Deus em todas as suas aparições, levou a Bíblia ao Palácio do Governo e pede aos seus seguidores que levem a Virgem às mobilizações. No dia 4 de outubro, reuniu seus seguidores “aos pés do Cristo Redentor” em Santa Cruz. Então, ele postou um vídeo nas redes sociais em que ele disse que naquele ‘cabildo’ eles tinham decidido “punir o tirano com os votos”.
Camacho não se candidatou às eleições presidenciais de outubro na Bolívia. No entanto, ele lidera atualmente um golpe que tem como argumento original a denúncia da oposição de fraude por parte de Morales.
Ele mesmo teve o cuidado de deixar claro o seu estilo ao citar publicamente o mais famoso traficante de drogas colombiano: “Temos que fazer – guardadas as diferenças – e sacar a agenda como fez Pablo Escobar, mas apenas para escrever os nomes dos traidores deste povo”, disse ele em 30 de outubro em uma prefeitura na zona sul de Santa Cruz.
“Isto está circulando nas redes sociais da Bolívia sobre a organização política mais importante do país: o Movimento ao Socialismo. O Camacho disse que iam anotar nome por nome, como Pablo Escobar. Isto é o que eles fazem a nível das bases. E por isso também é um golpe de Estado”, disse o cientista político Juan Manuel Karg, que anexou a imagem de um panfleto que pede à população que façam um registro de postagens em redes sociais redes sociais para prender traidores do povo, encontrando-os rastreando sua localização no celular.
Cronologia
Desde 21 de agosto, o Comitê de Santa Cruz, junto com os de outros departamentos, e o Comitê de Defesa da Democracia (Conade) convocam uma greve indefinida em rejeição à candidatura de Morales. O argumento era que ele havia perdido o referendo de 2016, no qual ele perguntou se a população concordava com a reforma do artigo 168 da Constituição para permitir uma reeleição contínua. Embora a Comissão Eleitoral tenha posteriormente autorizado a sua candidatura, a oposição continuou a insistir que ele era ilegítimo.
Este conflito continuou até às eleições gerais de 20 de Outubro. Morales obteve 47,08 % dos votos, o que fez dele um vencedor no primeiro turno (https://actualidad.rt.com/actualidad/331529-finaliza-conteo-votos-bolivia-ganar-evo).
Camacho ignorou o resultado desde o primeiro momento, denunciando fraude eleitoral e convocou a uma câmara municipal em Santa Cruz, da qual disse que dava 48 horas para que Morales renunciasse. Além disso, ele pediu uma greve indefinida e proclamou-se líder da “unidade” opositora. Nesse momento ele se colocou acima de Carlos Mesa (que obteve o segundo lugar nas eleições gerais com 36,5%) e até acima do senador Carlos Ortíz de Santa Cruz, que surpreendentemente só obteve 4,2% dos votos.
“Camacho é o líder político de facto da oposição e é quem está impondo a sua agenda. Ele fez uso do que é chamado de ‘espetacularização da política’: ele usou as telas de forma perfeita”, analisou Arequipa.
Segundo ele, conseguiu acrescentar o discurso de Ortíz (“uma direita tecnocrática”) ao do pastor evangélico coreano (Chi Hyun Chung), que obteve 8,77% dos votos nas eleições de outubro. “É a soma das direitas na Bolívia”, disse ele.
Depois das 48 horas que Camacho deu a Morales para renunciar, convocou a um novo Cabildo e publicou uma carta na qual escreve a renúncia do então presidente. Desde então, começou uma viagem a caminho do Palácio para entregar a carta.
Enquanto isso, a Organização dos Estados Americanos (OEA) denunciou irregularidades em algumas atas e Morales decidiu convocar novas eleições “para buscar a paz”.
Mas a tensão não caiu: Camacho seguia em direção ao Palácio. Aquele lugar, na Praça Murillo, é onde o Executivo trabalhava até agosto de 2018, quando transferiu suas funções para a Casa Grande do Povo. Foi lá que o Morales governou a partir daí. No entanto, o líder de Santa Cruz ignorou isso explicitamente e decidiu ir para o antigo edifício.
É mais uma mensagem entre muitas: “É como um vazio de símbolos, estão queimando wiphalas, negando todos os avanços sociais”, disse Arequipa.
Finalmente, essa foi a cena que abalou o mundo ontem. Minutos antes de Morales renunciar à presidência, Camacho entrou no Palácio do Governo e apresentou a carta em uma bandeira boliviana com a Bíblia ao lado.
Mais tarde ele twitou: “Confirmado! Mandado de captura para Evo Morales! A polícia e os militares estão à procura dele no Chapare, o lugar onde ele se escondeu” (https://actualidad.rt.com/actualidad/333228-opositor-camacho-policia-ejercito-buscar-morales).
Denuncio ante el mundo y pueblo boliviano que un oficial de la policía anunció públicamente que tiene instrucción de ejecutar una orden de aprehensión ilegal en contra de mi persona; asimismo, grupos violentos asaltaron mi domicilio. Los golpistas destruyen el Estado de Derecho. — Evo Morales Ayma (@evoespueblo) November 11, 2019 https://twitter.com/evoespueblo/status/1193702186024361985?ref_src=twsrc%5Etfw
Mas logo – ainda que já fosse tarde e após desmentidos da política – o deletou. Morales denunciou a perseguição.