”Dada a negação de facto de confiança e, em respeito irrestrito à Constituição Política do Peru, decidi dissolver constitucionalmente o Congresso e convocar eleições para o Congresso da República”.
Às
17h44 no horário peruano do dia 30 de setembro de 2019, com base no artigo 134º da Constituição
Política do Peru[1], e
por decreto do Presidente Constitucional da Republica, Martin Vizcarra, o
Congresso da República do Peru para todos os efeitos, foi DISSOLVIDO, permanecendo
em funções uma Comissão Permanente presidida pelo ex-presidente do Congresso
Pedro Olaechea, até que dentro de quatro meses da data da dissolução se
realizem as eleições para o novo Congresso.
[1] Artigo 134º da Constituição Política do Peru. – O Presidente da República tem o poder de dissolver o Congresso se este estiver censurado ou negado sua confiança a dois Conselhos de Ministros. O decreto de dissolução contém a convocação de eleições para um novo Congresso. Tais eleições são realizadas dentro de quatro meses a partir da data da dissolução, sem que possa alterar o sistema eleitoral preexistente. Não se pode dissolver o Congresso no último ano de seu mandato. Dissolvido o Congresso, se mantém em funcionamento a Comissão Permanente, a qual não pode ser dissolvida. Não há outras maneiras de revogar o mandato parlamentar. Sob estado de sítio, o Congresso não pode ser dissolvido.
- O final de um confronto entre Executivo e Legislativo
Com esse ato, chegou ao ápice um confronto entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, confronto que vinha se dando pela instrumentalização de várias reformas constitucionais[2] que o Executivo levara a consulta popular mediante Referendo de 11 de dezembro de 2018 e que tinha como principal objetivo melhorar a institucionalidade da nação, a fim de conter a espiral de corrupção desencadeada pelo escândalo do Caso Odebrecht (escândalo este que causou: o encarceiramento por nove meses e a atual liberdade restrita do ex-presidente da República Ollanta Humala Tasso e da primeira-dama Nadine Heredia por lavagem de dinheiro; a renúncia do Presidente da República Pedro Pablo Kuczynski e a posterior investigação que determinou sua prisão domiciliar por 36 meses até o momento, pelo crime de lavagem de dinheiro com o agravante de participação em uma organização criminosa; a atual prisão provisória nos Estados Unidos do ex-presidente Alejandro Toledo por lavagem de dinheiro; o suicídio de Alan García Pérez, quando foi descoberto que este recebeu pagamentos ilegais de 4,5 milhões de dólares da Odebrecht, e a atual prisão preventiva da candidata à presidência nas eleições de 2016, Keiko Fujimori Higuchi, pelo Caso Cócteles, ao descobrir contribuições da Odebrecht para sua campanha eleitoral) tudo isso, combinado à rede de corrupção dentro do órgão responsável pela eleição de juízes e promotores (o Conselho Nacional da Magistratura), descoberta por uma série de áudios que revelam ofertas de reduções de penas, pedidos e agradecimentos por favores, ou negociações para promoção de funcionários.
[2] Reforma do Conselho Nacional da Magistratura, Retorno a um Parlamento Bicameral, Eliminação da Reeleição de Congressistas, Controle no Financiamento de Partidos Políticos.
Todos esses acontecimentos chegaram a um clímax com o fato principal que motivou a sucessão dos eventos atuais: o altamente questionável procedimento de eleição de magistrados do Tribunal Constitucional (TC), que veio à tona graças à denúncia de Marianella Ledesma, magistrada do mesmo TC, que revelou ter havido, por parte de membros do Congresso, um apelo para que os sete magistrados do TC votassem de maneira unânime a favor da liberdade de Keiko Fujimori, sob ameaça de não serem nomeados nas novas eleições para esse órgão constitucional (eleições que se realizariam na sessão plenária do Congresso em 30 de Setembro). Tal procedimento é atribuição exclusiva do Congresso.
Ora, trata-se de um Congresso que era de maioria fujimorista, isto é, do partido Força Popular de Keiko Fujimori. Isso determinava, precisamente, que, a partir do Executivo, se apresentasse um projeto de lei de reforma do artigo 8 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, para garantir que o processo de eleição de magistrados do TC fosse transparente, algo que foi acompanhado por uma Moção de Confiança[3], e com caráter de URGENTE[4], o que significa que o Congresso, para tratar o tema da eleição de magistrados, devia, previamente, tratar da moção de confiança sobre este projeto de lei, que, dentro de suas considerações, previa precisamente que o projeto se aplicasse ao procedimento de eleição de magistrados em curso.
No
entanto, a sessão plenária do Congresso votou contra a moção que buscava
suspender a eleição dos membros do Tribunal Constitucional, sabendo que a moção
de confiança residia precisamente sobre esse ponto em particular. Em seguida,
elegeram Gonzalo Ortiz de Zevallos como novo membro do Tribunal Constitucional.
Configurou-se, assim, a não concessão de confiança (e crise total do gabinete).
Assim, o Presidente da República se encontrava livre para dissolver o Congresso
dentro de sua estrita faculdade constitucional. Todos nós peruanos vimos em televisão nacional como, ao mesmo tempo em
que o presidente dissolvia o Congresso, em um ato de total desespero, o
Congresso aprovava a Moção de Confiança.
[3] Ferramenta que tem o Poder Executivo de buscar apoio político no Congresso, em questões de ampla gestão.
[4] Artigo 105º da Constituição Política do Peru – Nenhum projeto de lei pode ser sancionado sem ter sido previamente aprovado pela respectiva comissão dominante, salvo exceção indicada nos Regulamentos do Congresso. Tem preferência do Congresso os projetos enviados pelo Poder Executivo com caráter de urgência.
À dissolução do Congresso veio a resposta do mesmo, por meio da apresentação de uma moção de vacância por incapacidade moral permanente contra o presidente da República e, portanto, a nomeação de um novo Presidente da República, cargo que recairia para a vice-presidente Mercedes Aráoz – já era 21:02 de 30 de setembro. Então, às 00:20, o Comando Conjunto das Forças Armadas emitiu um comunicado dando seu total apoio ao Presidente da República, Martin Vizcarra, expressando que, nos termos do artigo 167º da Constituição, o Presidente da República é o Chefe Supremo das Forças Armadas e da Polícia Nacional do Peru.
No dia seguinte, em 01 de outubro, Mercedes Aráoz, a Presidenta da Republica designada por um Congresso dissolvido (que nos lembra Juan Guaidó, com as diferenças do caso), terminou renunciando mediante carta enviada ao ex-presidente do Congresso, Pedro Olaechea, esperando que, com sua renúncia, se convocassem eleições gerais (para presidente, vice-presidente, congressistas e parlamentares andinos), claramente seguindo o discurso do Congresso Dissolvido. Porém, nessas alturas o Decreto de Dissolução já havia sido emitido pelo Executivo e a dissolução do Congresso seguiu sua causa constitucional, enquanto que, a partir de hoje, já se tinha convocado eleições, somente para o novo Congresso de 26 de janeiro de 2020, conforme manda a Constituição.
Não entraremos nos aspectos técnico-jurídicos, que determinaram uma polarização efêmera de juristas peruanos, que afirmam que a Moção de Confiança é inconstitucional e, portanto, a Dissolução do Congresso também é (postura que é compartilhada pela oligarquia peruana reunida no CONFIEP[5] e pelos liberais, conservadores e libertários de sempre).
O certo é que um Congresso Dissolvido não pode destituir ninguém e menos ainda prestar juramento a um novo Presidente. Para todos os efeitos, Martin Vizcarra, com o respaldo das Forças Armadas e do povo (ou ao menos de uma parte importante deste) continua sendo o Presidente de Fato da República do Peru, o que é endossado ainda mais pela recente renúncia de Mercedes Aráoz. No entanto, neste momento há uma forte pressão por parte do Congresso Dissolvido para que Vizcarra também renuncie e sejam convocadas eleições gerais.
- Uma visão quarto teórica da crise política peruana
Vistos os antecedentes e fatos do caso, o que o futuro reserva para nossa República a partir de agora? O que significam todos esses acontecimentos para o peruano comum? O que podemos aprender com essa crise? E sobretudo, o que cabe concluir de tudo isso? Responderemos brevemente a todos esses questionamentos a partir de uma perspectiva quarto-teórica.
a) O que o futuro reserva para nossa República a partir de agora? O que podemos aprender com essa crise?
O que acontecerá em seguida aos acontecimentos é a eleição de novos Congressistas, de acordo com a constituição – o que demanda atenção de todos os cidadãos, já que esses mesmos 130 congressistas do então dissolvido Congresso, foram eleitos por voto popular, assim como os presidentes anteriores que estavam envolvidos no Caso Odebrecht. É um forte apelo para que se observem os critérios que o cidadão tem para a eleição de seus representantes e de que, se queremos realmente um mudança, devemos começar a mudar nossa atitude diante da política de nosso país, o que implica interromper a espiral de despolitização em que fomos envoltos pela realidade pós-liberal. Realidade essa, que gerou peruanos despolitizados, não identificados com sua pátria e alienados. Realidade essa que cria uma vácuo propício para que pessoas imorais que não deveriam fazer política, a exerçam. Para que as pessoas corruptas que não deveriam se candidatar a cargos públicos, o façam; e para que os candidatos lobistas que nem sequer deveriam ser opção, continuem sendo eleitos. É, em suma, a sentença platônica que se reafirma de maneira contundente no dia de hoje: “Porque o maior castigo para o homem de bem, quando recusa governar os demais, é o ver-se governado por outro menos digno” (1872:92).
Por outro lado, estes acontecimentos nos demonstram de maneira fidedigna que a democracia liberal no Peru já não tem mais legitimidade diante do povo, e que o sistema republicano liberal fundado em 1821 já cumpriu seu ciclo histórico, na medida em que os acontecimentos demonstraram total e absolutamente que a democracia liberal só permite a participação através de um sistema de partidos, gerando com isso que os interesses destes se estabeleçam e se cartelizem, de costas, enfim, para a sociedade, parafraseando Baños (2006:46); isso tudo unido à ausência de filtros mínimos para o exercício político sem os quais não se pode garantir a presença de pessoas íntegras na política e a transformação dos partidos em lobbies que zelam pelos interesses de quem os financia, como se viu com o caso Odebrecht.
Esses fatos, que sabemos que foram o denominador comum na história contemporânea da Ibero-América, não somente no Peru, reafirmam a tese do filósofo russo Alexander Dugin sobre a Laocracia, como um imperativo histórico a desenvolver, como aquele governo sustentado no poder do povo – o estado como instrumento do povo, por oposição à democracia liberal, que pela experiência peruana é simplesmente o governo dos lobbies.
b) O que significam todos esses acontecimentos para o peruano comum?
Para o peruano comum, foi um choque total – ninguém esperava que chegássemos a uma dissolução do congresso, contudo todos ou pelo menos a grande maioria dos peruanos vê a medida como necessária, e isso, mais do que qualquer outra coisa, ajudou a inaugurar um novo paradigma na política peruana.
As eleições de 2016, para os peruanos de esquerda, foram uma escolha entre o fascismo fujimorista de Keiko (uma espécie de “Bolsonara” peruana apoiada por pequenos empresários e um importante setor neopentecostal) e o liberalismo progressista de Pedro Pablo Kuczynski (conhecido popularmente como PPK, o candidato dos empresários). Neste mesmo quadro de reacionarismo foi que a própria esquerda representada por Verónica Mendoza do Frente Amplio (que perdeu no primeiro turno das eleições) pediu votos em favor de PPK para evitar que o fujimorismo chegasse ao poder (a retórica do mal menor), o que de fato levou à vitória de PPK, mas foi uma vitória ilusória, dado que a Fuerza Popular de Keiko obteve maioria no Congresso.
Uma grande maioria de peruanos comemoraram a vitória de PPK, chamando-o de o Presidente de Luxo, por sua experiência profissional. No entanto, como todo liberalismo progressista, seu governo esteve em consonância com uma política que muitos consideraram guiada pela “ideologia de gênero”, em matéria educativa, o que levou o Congresso a explorar esses temas para apresentar-se como baluarte de valores frente a um governo que apoiava propostas contrárias aos interesses e ao ethos da nação. É digno de menção a presença de uma forte oposição neopentecostal no Congresso, através de uma denominada Bancada Evangélica, composta por congressistas da Fuerza Popular, Peruanos por el Kambio (partido de PPK) e Alianza para el Progreso. Então veio a queda de PPK quando foi investigado pela operação Lava Jato do Brasil, o que acarretou uma crise total do governo e terminou com a renúncia de PPK e a ascensão ao seu cargo do vice-presidente Martin Vizcarra.
Martin Vizcarra, agora presidente, foi vice-presidente e membro do Partido Peruanos por el Kambio (agora partido “Contigo”), que é um partido de direita liberal progressista. No entanto, depois de todos as descobertas da Odebrecht e a corrupção do CNM[6], Vizcarra assumiu uma postura de liberalismo cívico-reformista, independentemente de sua boa vontade em gerar reformas que beneficiem o país, mas que nem por isso deixa de ser uma resposta dentro do mesmo liberalismo diante de sua própria crise. Contudo, no dia mesmo em que o presente texto é escrito, está sendo conduzido, no caso Odebrecht, o processo de interrogatório de Jorge Barata, ex-funcionário da Odebrecht, por parte da Equipe Especial da Lava Jato, pelos 71 codinomes (pseudônimos) de funcionários públicos e agentes privados à quem a construtora teria subornado.
Quando exploraram todas as descobertas de corrupção, ao que se soma tudo já mencionado, esse foi o momento em que os peruanos se deram conta que tudo estava péssimo, que era tudo mais do mesmo: esquerdas, centros, direitas… e sobretudo que, o Fujimorismo não é mais que conservadorismo liberal, não é mais do que essa postura que é conservadora para alguns assuntos (conservador no sócio-político), mas totalmente liberal na busca de interesses particulares (liberal na economia). Isso é, que a realidade política do Peru é liberal, e que é precisamente essa mesma realidade que está em crise, e a que permitiu que interesses econômicos e particulares prevaleçam sobre o interesse nacional, porque essa é precisamente a natureza do liberalismo, afinal, citando Alain de Benoist: “A medida que vai se desenvolvendo, a casta econômica atrai para si a essência do Estado, subordinando pouco a pouco a decisão política aos interesses econômicos”. (2002: 13-29)
c) O que cabe concluir?
Que as sociedades estão despertando do sopor liberal e o Peru é uma prova disso; já não é questão de ser de esquerda ou de direita, o peruano comum se identifica com sua pátria e não com os partidos tradicionais, que já não o representam, e se seguimos uma postura dentro do espectro tradicional, pois que seja “Valores de Direita, Ideias de Esquerda” em sintonia com a visão do filósofo Diego Fusaro. A dicotomia passou a ser outra: agora é o povo peruano contra uma elite política que está de costas para o povo. O que reafirma novamente a visão de Dugin: “Nos dias atuais já não existem mais esquerdas e direitas, mas somente o povo contra a elite”7 (2018).
Referencias Bibliográficas
BAÑOS, Jessica. (2006). «Teorías de la democracia: debates actuales». Andamios. Revista de Investigación Social, vol. 2, núm. 4, junio, pp. 35-58.
BENOIST, Alain.(2002). «Critique de l’idéologie libérale».
DUGIN, Alexander. (2014). «Hacía la Laocracia».
En: https://4tpes.wordpress.com/2014/11/03/hacia-la-laocracia/
PLATON.
(1872). «Obras Completas». En: http://www.filosofia.org/cla/pla/azf07061.htm
[5] Confederación Nacional de Instituciones Empresariales Privadas.
[6] Conselho Nacional de Magistratura, o órgão peruano encarregado da eleição de juízes e fiscais.