Embora a realidade orgânica do Povo seja dinâmica, existem alguns traços que o caracterizam ao longo dos tempos e parecem ser relativamente estáveis e resistentes à mudança.
Nessa perspectiva, o povo brasileiro possui algumas predisposições e tendências bastante claras:
a) Defende e anela por um Estado forte, social, justo, capaz de distribuir e socializar renda e oportunidades;
b) Apoia a presença desse mesmo Estado nos mais diversos setores da sociedade, sobretudo no que tange ao controle e à repressão do crime (o povo brasileiro é extremamente “punitivista” em relação ao fato criminoso);
c) Em termos de moral e costumes, é favorável à primazia social da Família como instituição formadora;
d) Em assuntos polêmicos, ao longo dos anos, tem se mostrado estatisticamente CONTRA a maioria das pautas demo-liberais, como casamento e adoção gay, aborto e legalização das drogas.
Já mencionamos isso n’outras ocasiões e isso é de conhecimento geral para qualquer um que não seja um completo alienado: o brasileiro é “conservador” e “estatista” – é “socialista” e “tradicionalista”. As próprias pesquisas eleitorais corroboram essa tendência, na medida em que a corrida eleitoral é liderada, respectivamente, por um candidato associado pelas massas à concepção de Estado social supracitada, e por um candidato que essa mesma massa entende como representante da moralidade pública mais rudimentar (ainda que saibamos que Lula e Bolsonaro são, cada um ao seu modo, neoliberais).
Ou seja, tudo aquilo que o liberal mais vulgar, ou que o liberal-conservador com sua ridícula gravata borboleta e seu cachimbo hipster, bem como a feminista mais lunática, ou o militante de DCE mais anormal, abominam. A verdade é que nenhum desses tipos sairia de uma conversa com um proletário ao final do dia de trabalho com a saúde mental estabilizada. Isso porque o direitismo e o esquerdismo cultural, embora se debatam como inimigos no debate público, partilham um mesmo sentimento: o nojo profundo pelo que é genuinamente brasileiro.
Esse nojo, compartilhado por direitistas e esquerdistas, se sustenta na essência liberal de ambas as faces do espectro político burguês. Em contrapartida, todos os sentimentos políticos brasileiros rechaçam a primazia do Indivíduo. O povo brasileiro prioriza as grandes formações sociais: Religião, Estado, Família, Comunidade, Pátria, e acredita que tudo isso está acima dos desejos, impulsos e vontades individuais.
Para o direitista e para o esquerdista, cujo posicionamento é sempre subjetivista, isso é anátema. O Indivíduo deve ser livre para trabalhar no que quiser, sem ter que pagar impostos e podendo fumar maconha e abortar à vontade, e casando com pessoas do mesmo sexo ou quiçá até animais, se isso lhe der na telha. As variações entre posicionamentos à direita ou à esquerda são cosméticas, meros detalhes.
Tanto direitistas, quanto esquerdistas nutrem repulsa por noções como “patriotismo”, porque se consideram cidadãos do mundo, membros de uma “aldeia global”, apóstolos dos interesses da “Humanidade”, contra essas “linhas imaginárias” que representam as pátrias. Ambos olham para o próprio povo de cima para baixo, com um ímpeto neocolonial vertical de querer “educar” “esses caipiras ignorantes” nos dogmas de sua religião secular liberal.
O berço social de ambos é o mesmo: usualmente, a classe média urbana (não raro até a própria burguesia). E a única coisa que diferencia o liberal de direita e o liberal de esquerda em como lidam com as suas origens é que os primeiros se orgulham de descender de contadores de moeda, ao passo que os segundos nutrem um profundo sentimento de culpa por isso.
O amor pelas grandes metrópoles ocidentais é o mesmo. O brasileiro direitista ou esquerdista olha para uma cidadezinha do interior de Minas Gerais, Pernambuco ou Rio Grande do Sul e acha tudo aquilo brega, retrógrado, atrasado. Povoado por uma gente fedorenta, que nem sabe falar direito e que crê haver incontáveis coisas mais importantes que os desejos do indivíduo. O direitista e o esquerdista olham para tudo isso e gostariam de ter nascido em Miami (no caso do direitista), ou Estocolmo (no caso do esquerdista).
É um imenso desejo incontido de esquecer que é brasileiro, que se manifesta de forma odiosa sempre que o povo demonstra agir contrariamente à fé liberal (tal como quando vemos nordestinos votarem consistentemente contra candidatos da direita, ou quando vemos coisas como a que vimos há poucos dias, com o caso dos trabalhadores roraimenses que expulsaram migrantes venezuelanos).
Nesses momentos, é necessário reafirmar que o povo brasileiro não encontrará solução para seus problemas se apoiando seja entre candidatos, intelectuais e organizações de direita ou entre candidatos, intelectuais e organizações de esquerda. No final das contas, estamos diante de apenas duas interpretações do mesmo credo liberal, cujos defensores não querem outra coisa senão impôr uma engenharia social liberal ao povo brasileiro, que sempre foi e segue sendo profundamente antiliberal.