Steve McQueen, primeiro diretor negro a ganhar um óscar de melhor filme na história da academia americana, nasceu em Londres, Inglaterra, e tem uma carreira artística que, apesar de ainda pequena, é bastante promissora. Com três longas de indiscutível e extraordinária qualidade, o diretor se destaca pelo seu preciosismo técnico apuradíssimo, pelo cuidado artesanal que tem com a fotografia e por seus “long shots”, com uma inconfundível assinatura poética que se destaca desde os primeiros minutos de qualquer um de seus filmes e é facilmente reconhecida por qualquer espectador mais atento.
Não poderia ser diferente com um diretor cujas influências vêm do melhor que o cinema europeu já produziu (Dreyer, Bresson) e está acima de preocupações mais imediatas e comercias, trabalhando a seu tempo, cuidando de cada detalhe específico e dando a ele significados precisos e profundos. A prova disso é que ele ainda tem poucos filmes no currículo, apesar do estrondoso sucesso de seu último longa, o ganhador do óscar de melhor filme, “12 anos de escravidão”, seu trabalho mais convencional e facilmente digerível, apesar da evidente horripilância do tema.
A estreia de McQueen aconteceu em 2008 com seu primeiro longa-metragem intitulado Hunger (Fome, em Portugal), com Michael Fassbender como protagonista, coisa que viria a se repetir posteriormente. O filme é espetacular e apresenta, já de imediato, as assinaturas poéticas que acompanharão McQueen em seus filmes seguintes. Os takes longos, e aparentemente quase intermináveis, as falas rarefeitas e a exploração obsessiva do silêncio são próprias do estilo de McQueen e já estão, todas elas, em Hunger.
O filme é basicamente sobre a greve de fome iniciada pelo revolucionário patriota irlandês, Bob Sands, no ano de 1981, dentro da prisão de Maze, na Irlanda do Norte. Sands, líder do IRA interpretado por Fassbender, é figura central da trama, e leva literalmente a greve até o fim, firme em seus princípios, morrendo de fome dentro da prisão – aliás, uma das cenas mais emocionantes da história do cinema inglês. Após o decreto de Margaret Thatcher acerca da não-existência de algo como uma “crime político”, mas tão somente “terrorismo”, Sands inicia a greve como uma forma de protesto, pedindo que o tratamento dado aos presos não fosse o de “terroristas”, mas, sim, de “presos políticos”, que lutam por uma causa de consequências evidentemente terríveis para a Irlanda. Seu pedido é sumariamente ignorado, e ele morre como um mártir nacionalista.
A greve de fome não é o único protesto a ser mostrado no filme. Logo no início, o espectador é confrontado com incômodas imagens das paredes das celas do presídio, completamente tomadas pelas fezes dos próprios prisioneiros. É parte do processo de non wash, no qual eles se recusam a adotar qualquer padrão de hábitos higiênicos e, além de não tomarem banho, não cortam o cabelo e a barba, adotando a aparência de homens neandertais. Uma das primeiras cenas do filme é o momento em que os guardas obrigam, pela força, Sands a se higienizar: cortam seu cabelo e a barba e o mergulham numa banheira com água e sabão. O motivo é que é dia de visita, e é preciso que uma imagem de que o prisioneiro está sendo bem tratado seja passada.
A cena definitivamente mais interessante do filme é o long shot de um diálogo entre Sands e um padre, Dominic Moran (brilhantemente interpretado por Liam Cunningham), que inutilmente tenta persuadi-lo de que é absurdo um protesto tão autodestrutivo. A cena é tecnicamente muito simples. A câmera está parada e posicionada no fundo da sala. Os dois conversam por mais de vinte e quatro minutos sem interrupções, próprio do estilo de McQueen.
O diálogo é excelente e Sands argumenta a favor de sua causa, enquanto Moran acredita que tudo o que ele quer, no fundo, é “entrar para os livros de História”. O que mais se destaca no diálogo, no entanto, é a paixão absurdamente evidente de Sands pela Irlanda. Ele conhece tudo sobre seu país, sobre sua região de origem, sua cultura, suas práticas, seus costumes, tem orgulho portentoso de seu sotaque (alvo frequente de críticas pelos ingleses), e fala da Irlanda com paixão absoluta: é um nacionalista nato. Moran deixa a sala convencido de que Sands não voltará atrás e continuará firme em seus princípios na luta contra o imperialismo inglês. E ele de fato permanece.
Um filme muito pouco divulgado pela crítica, inclusive bastante injustiçado e ofuscado pelo brilho de “12 anos de escravidão” – que é, sem dúvida, uma excelente película, mas não apresenta a força de McQueen em todo o seu esplendor, coisa que vemos em Hunger desde o primeiro minuto.