Crítica ao progresso no pensamento antirracista de Aleksandr Dugin:

A rejeição radical das três teorias clássicas reflete também nossa atitude diante daquilo que é comum às três – isto é, nossa atitude perante a modernização, o progresso, evolução, desenvolvimento e crescimento.

O cientista americano Gregory Bateson, teórico da etno-sociologia, cibernética e ecologia e também psicanalista e linguista, descreveu o que chamou de processo monotônico em seu livro Mind and Nature[1] (Mente e Natureza). O processo monotônico é justamente a idéia de um crescimento constante, acumulação constante, desenvolvimento, progresso estável e regular e a elevação de um indicador particular. Na matemática, está associado à noção de valor monotônico, i.e. o valor sempre crescente, daí as funções monotônicas. Os processos monotônicos são aquele tipo de processo que ocorre sempre em uma direção: por exemplo, todos os seus indicadores consistentemente aumentam sem flutuações cíclicas e oscilações. Estudando os processos monotônicos em três esferas – a esfera da biologia (vida), da mecânica (motor a vapor, motor de combustão interna etc) e a esfera dos fenômenos sociais, Bateson concluiu que quando esse processo ocorre na natureza, ele imediatamente destrói a espécie; se estamos falando de um dispositivo artificial, ele pifa (explode, entra em colapso); se estamos falando de uma sociedade – ela deteriora, degenera e desaparece. O processo monotônico (na biologia) é incompatível com a vida – é um fenômeno anti-biológico. Processos monotônicos são completamente ausentes na natureza. Todos os processos de acumulação de algo em particular, de um traço específico, resultam na morte de outros. Processos desse tipo não existem em nenhuma espécie, desde células aos organismos mais complexos. Assim que esse tipo de processo (monotônico) inicia-se, surgem aberrações da natureza, grandes demais, pequenas demais, desvios de toda sorte – são incapacitados, incompatíveis com a vida, não produzem prole e a vida mesma os expulse.

Ora, o processo montônico foi o principal problema a ser resolvido no desenvolvimento de motores a vapor. A questão é que a sutileza mais crucial em se tratando desses motores é o “relay feedback”. Quando o processo chega a certa velocidade, é necessário resetar o abastecimento de combustível, senão o processo monotônico inicia-se, tudo começa a ressonar e a velocidade do motor aumenta, causando explosão. Foi precisamente asolução que evita o processo monotônico, na mecânica, o principal problema de engenharia teorético, matemático e físico durante o primeiro estágio da industrialização. Aparentemente o processo monotônico não é apenas incompatível com a vida – mas também com o devido funcionamento mecânico de um dispositivo qualquer. A tarefa de projetar um dispositivo funcional consiste em evitar o processo monotônico, isto é, a prevenção de qualquer progresso unidimencional, da evolução, desenvolvimento e crescimento num ciclo fechado.
Ao analisar a sociologia, Bateson demonstrou que não há processos monotônicos em sociedades reais. Processos monotônicos, tais como crescimento populacional, normalmente levam a guerras, como regra geral, o que corta o crescimento da população pela metade. Em nossa sociedade atual vemos um nível sem precedentes de progresso tecnológico automatizado juntamente com uma degradação moral inacreditável.


Se atentarmos para a evidência disponível sem viés “evolucionista”, então perceberemos que o processo monotônico existe apenas na mente de quem olha, i.e. são modelos puramente ideológicos. Bateson demonstra que não existem na realidade biológica, mecânica e social. Marcel Mauss, conhecido sociólogo francês, também criticou a crença no processo monotônico. Em seu livro, O Sacrifício: sua natureza e funções [2] e principalmente em seu ensaio, O Presente [3]; nesses trabalhos ele mostra como a sociedade tradicional dava grande importância à destruição ritual do excedente. O excedente era visto como excessivo, likho, usura. Likho personifica o mal, usura é o juro cobrado pelo capital emprestado e excesso é aquilo que é obtido que excede a necessidade. Por exemplo, colheitas excedentes (excessivas) eram vistas como um desastre na sociedade tradicional. A visão de mundo antiga baseava-se na crença de que um aumento em uma área significa uma diminuição em outra. Assim sendo, o excedente tinha de ser destruído o mais rápido possível. Para esse propósito, a comunidade organizava uma orgia, banquete, uma festa, um sacrifício etc no qual consumia toda a comida excedente, empanturrava-se, ou dava-a como oferenda aos deuses ou ainda destruía-a. Eis aí a origem dum tipo especial de ritual – o potlatch, que consiste na destruição deliberada de propriedade pessoal. Ele pressupõe a destruição do excedente [4].

Marcel Mauss provou que a crença na destrutividade do processo monotônico está na base da sociabilidade humana. A sociedade só permanece forte por meio da rejeição do processo monotônico e por meio da transformação do crescimento num ciclo.

Emile Durkheim, Pitirim Sorokin e George Gurvitch, os grandes sociólogos do século 20, clássicos do pensamento sociológico, argumentaram que o progresso social não existe – contrastando com a sociologia do século 19, de Auguste Comtem ou Herbert Spencer. O progresso não é um fenômeno social objetivo, mas antes um conceito artificial, um tipo de “mito formulado cientificamente”. Quando estudamos a sociedades, só podemos falar, quando muito, em diferentes tipos (de progresso). Não há um critério geral objetivo que possa determinar qual é mais desenvolvida e qual é menos. Lucien Lévy-Brühl tentou provar que o pensamento “selvagem” é pré-lógico, enquanto o pensamento dos modernos seria lógico [5]. No entanto, Claude Levi-Strauss demonstrou [6] que os selvagens pensam da mesma maneira que nós; apenas sua taxonomia é construída diferentemente, de modo que eles não possuem menos lógica do que nós – talvez, em certo sentido, tenham até mais – demonstrou também que seu pensamento é mais refinado (em alguns aspectos).

Quanto às fases do desenvolvimento social, Franz Boaz, o maior antropólogo cultural americano, e seus discípulos, bem como Claude Levi-Strauss e sua escola provaram que nós não podemos conceber, no quadro conceitual da antropologia, os humanos “modernos” como pessoas que evoluíram das horas arcaicas e primitivas. Os primitivos e as sociedades primitivas são simplesmente pessoas diferentes e sociedades diferentes. Os seres humanos “modernos” são um grupo, e os “arcaicos”, outro. Porém, trata-se de pessoas, em nada piores do que nós. Os “primitivos” não são uma “versão subdesenvolvida” de nós mesmos. Eles têm filhos diferentes, que não conhecem nossas fábulas e contos, diferentemente das nossas crianças. Eles têm adultos diferentes – seus adultos conhecem os mitos, enquanto os nossos não crêem em mitos.Nossos adultos, nossa sociedade prática e sóbria, assemelha-se às crianças deles. Os adultos em tribos primitivas é que conhecem as histórias míticas, acreditam sinceramente nelas e personificam em sua vida as façanhas de seus ancestrais e espíritos, sem fazer distinção. Já as crianças nas sociedades primitivas é que se caracterizam pelo cinismo, pragmatismo, cepticismo e o desejo de atribuir tudo a causas materiais. Isso não significa necessariamente que as sociedades modernas desenvolveram-se a partir do primitivismo e suplantaram-no; ocorre simplesmente que configuramos nossa sociedade diferentemente (nem melhor nem pior) e erguemo-la sobre outros fundamentos e outros valores.

No que diz respeito ao estudos culturais e à filosofia, Nikolai Danilevskii, Oswald Spengler, Carl Schmitt, Ernst Jünger, Martin Heidegger e Arnold Toynbee demonstraram que todos os processos na História da filosofia e história da cultura são fenômenos cíclicos. O historiador russo Lev Gumilev também o sugere em sua versão da História cíclica, a qual explicou em sua famosa teoria da passionalidade. Todos esses autores reconhecem que existe desenvolvimento, mas também existe declínio. Aqueles que apostam apenas no crescimento e desenvolvimento agem contra todas as leis da História, contra as leis sociológicas, contra a lógica mesma da vida. Tal modernização unidirecional, tal crescimento, tal desenvolvimento e tal progresso não existem. Piotr Sztompka, sociólogo polonês contemporâneo, afirma [7] que, em termos de progresso, a seguinte mudança aconteceu nas ciências humanas: no século 19, todos acerditavam que ele (o progresso) existe e isso era o principal axioma e um critério científico. Porém, se examinarmos os paradigmas do século 20 nas humanidades e ciências naturais, veremos que quase todo mundo já rejeita tal paradigma; ninguém mais é guiado por ele. Hoje em dia, o paradigma do progresso é considerado quase “anti-científico”; é incompatível com os critérios científicos contemporâneos, bem como é incompatível com os critérios do humanismo e tolerância. Qualquer ideia de progresso é ela mesma um racismo velado ou direto, que reivindica a “nossa” cultura, por exemplo, a “cultura branca” ou a cultura americana como uma cultura superior à “sua” cultura; superior, por exemplo, às culturas africanas, islâmicas, iraquianas ou afegãs. Assim que afirmamos que a cultura americana ou russa é melhor do que a cultura Chukchi ou a dos habitantes do norte do Cáucaso, nós estamos agindo como racistas. Isso é incompatível, seja com a ciência ou com o próprio respeito a diferentes etnias.

As ciências do século, seja como for, usam a ciclicidade como critério científico ou ainda, de acordo com Sztompka, poder-se-ia dizer que nós saímos do paradigma da evolução, modernização e desenvolvimento e movemo-nos para o paradigma da crise, o paradigma das catástrofes. Isso significa que todos os processos – na natureza, sociedade e tecnologia – devem ser concebidos como relativos, reversíveis e cíclicos. Essa é a questão principal.

No que diz respeito à sua base metodológica, a “Quarta Teoria Política” deve fundamentar-se na rejeição fundamental ao processo monotônico. Em outras palavras, a “Quarta Teoria Política” deve asseverar que o processo monotônico é anticientífico, inadequado, amoral e falso como axioma futuro (sem precisar especificar exatamente como o processo monotônico deve ser rejeitado). Mais do que isso: tudo que recorre à ideia de processo monotônico e suas variações, tais como o desenvolvimento, evolução e modernização devem, pra se dizer o mínimo, ser colocado no modo cíclico. No lugar da ideia de processo (monotônico), progresso etc, devemos defender outros “slogans”, direcionados à vida, repetição e preservação daquilo que vale a pena ser preservado (e mudança daquilo que deve ser mudado).

No lugar do discurso da modernização e crescimento, precisamos do caminho do equilíbrio, adaptabilidade e harmonia. No lugar do movimento sempre para frente e acima, precisamos adaptarmo-nos àquilo que existe, comprender em que ponto estamos e harmonizar o processo sócio-político.
Mais importante do que isso: no lugar do crescimento, progresso etc existe a vida. Ainda há de se provar, afinal, que a vida esteja relacionada ao crescimento. Tal foi o mito do século 19. A vida, na verdade, é relacionada ao eterno retorno. No fim, até mesmo Nietzsche acabou incorporando o conceito de eterno retorno à sua idéia de “vontade de poder”. A lógica mesma da vida, à qual Nietzche dedicou-se, contou-lhe que se há crescimento na vida, o movimento apolíneo rumo ao logos, então o equilíbrio do mundo noturno dionisíaco também existe. Ora, Apolo não é apenas o oposto de Dionísio, mas seucomplemento (complementam-se). Metade do ciclo é composto por modernização, a outra metade – por declínio; quando um lado da moeda vira-se para cima, o outro vira para baixo. Não há vida sem morte etc.

O ser-para-a-morte, a atenção cuidadosa à morte, ao outro lado da esfera do Ser, como escreveu Heidegger, não é uma luta com a vida, mas antes a glorificação da vida e seu alicerce.

Devemos pôr um fim às ideologias políticas e teorias antiquadas. Se rejeitamos realmente o marxismo e o fascismo, então o que resta a ser rejeitado é o liberalismo. Ele é uma ideologia igualmente ultrapassada, cruel e misantropa. O termo “liberalismo” deveria ser igualado aos termos “fascismo” e “comunismo”. O liberalismo, afinal, é responsável por não menos crimes históricos que o fascismo (Auschwitz) e o comunismo (o gulag): ele é responsável pela escravidão, a destruição os índios americanos nos EUA, por Hiroshima e Nagasaki, pela agressão militar na Sérbia, Iraque e Afeganistão e pela devastação e exploração econômica de milhões de pessoas no planeta; e ainda pelas mentiras cínicas e ignóbeis que mascaram essa história. Mais do que isso: devemos rejeitar a base mesma sobre a qual essas três ideologias (liberalismo, comunismo e fascismo) foram construída: o processo monotônico, em todas as suas formas, isto é, evolução, crescimento, modernização, progresso, desenvolvimento e tudo aquilo que parecia tão científico no século 19, mas foi desmascarado como anti-científico no século 20.

Devemos abandonar a ideologia do desenvolvimento e propor o seguinte slogan: a vida é mais importante do que o crescimento. No lugar da ideologia do desenvolvimento, devemos apostar na ideologia do conservadorismo e conservação. Entretanto, não é apenas pelo conservadorismo na vida quotidiana que clamamos, mas também por um conservadorismo filosófico. Nós precisamos da filosofia do conservadorismo. Olhando para o futuro do sistema político russo, vemos que se será baseado na ideia de processo monotônico, então está condenado ao fracasso. Nenhuma estabilidade poderá advir de mais uma rodada de crescimento unidirecional (a partir dos preços da energia, bens imóveis, ações da bolsa de valores etc) ou do crescimento da economia global como um todo. Se essa ilusão persistir, ela pode tornar-se fatal para nosso país.

Hoje nós nos encontramos em um estado de transição. Nós sabemos vagamente do quê estamos nos afastando, mas não sabemos rumo a quê nos aproximamos. Se nós nos dirigirmos rumo àquilo que direta ou indiretamente implica na presença do processo monotônico, então chegaremos a uma rua sem saída.

A “Quarta Teoria Política” deve dar um passo rumo à formulação de uma crítica coerente do processo monotônico; deve desenvolver um modelo alternativo de um futuro conservador, um amanhã conservador, baseado nos princípios de vitalidade, raízes, constância e eternidade. Afinal, como disse Arthur Moeller van den Bruck, “a eternidade está do lado dos conservadores”.

[1] Bateson, Gregory, Razum i priroda, Moscow, KomKniga, 2007. [Mind and Nature]

[2] Mauss, Marcel, Sotsial’nye funktsii sviaschennogo, in Selected Works, tr., ed. I. V Utehin, St. Petersburg, Evraziia, 2000. [Sacrifice: Its Nature and Functions]

[3] Mauss, Marcel, Ocherk o dare. Obschestva. Obmen. Lichnost’: Trudy po sotsial’noi antropologii, tr. A. B. Gofman, Moscow, Vostochnaia literatura, RAN, 1996. [The Gift: Forms and Functions of Exchange in Archaic Societies]

[4] Nota do tradutor: likho ém na mitologia eslava, a personificação de calamidades e desastres. Essa palavra arcaica equivale à palavra “mal” e é etimologicamente relacionada a lishnii, ou seja, “excesso”. O autor também usa o sentido original do termo likhva, um vocábulo arcaico que significa “usara” e também está relacionado a likho.

[5] Lévy-Brühl , Lucien, Pervobytnoe myshlenie. Psikhologiia myshleniia. Moscow, MGU, 1980. [Primitive Mentality]

[6] Lévi-Strauss, Claude, Pervobytnoe myshlenie – issledovanie osobennosti myshleniia, Moscow, Respublika, 1994. [The Savage Mind]

[7] Sztompka, Piotr, Sotsiologiia sotsialnykh izmenenii, Moscow, Aspekt Press, 1996. [The Sociology of Social Change]

(Alexander Dugin, A Quarta Teoria Política – Tradução e negritos: Uriel Irigaray).

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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