Justiceiro: uma radiografia da podridão americana:

Coincidentemente ou não, no dia de ontem, 20 de novembro de 2017, três dias após a estreia de Marvel’s The Punisher, o jornal Press TV publicou uma entrevista com o analista político americano Kevin Barrett, intitulada – em tradução livre – Os EUA invadiram o Afeganistão, basicamente, para reabilitar a indústria da heroína.

Comentando um recente pronunciamento da administração militar estadunidense acerca de planos operacionais com a finalidade de destruir “instalações de produção de drogas no Afeganistão” e minar uma das bases de “financiamento do Talibã”, Barrett afirmou: “Esse último pronunciamento dos militares norte-americanos, sobre a nova estratégia de bombardear laboratórios de drogas, é bastante humorístico, dado que os EUA foram para o Afeganistão, na realidade e em grande parte, para proteger a indústria da heroína” [1]. Algo que já foi estabelecido por diversos outros analistas [2] [3].

E o que isso tem a ver com O Justiceiro? Tudo, absolutamente tudo.

De modo grosso e abrupto, o enredo de O Justiceiro enuncia – e se fundamenta em – uma proposição politicamente incômoda, que recapitula uma das feridas mais necrosadas, mais pululadas por bichos e por vermes, da sociedade e do governo americano: as incursões militares americanas no Oriente Médio (especialmente no Afeganistão, onde Frank Castle, alter-ego do Justiceiro, serviu), ponto arquimediano da “grandeza da nação americana”, são, na realidade, operações criminosas, banhadas de chacinas, interrogatórios ilegais, torturas, ligadas ao tráfico de drogas e coordenadas por figuras do alto escalão do governo americano, isto é, do Deep State.

Se a primeira aparição de Frank Castle, na segunda temporada de Marvel’s Daredevil, apresenta a figura do Justiceiro como uma bomba jogada no coração de Hell’s Kitchen, esmagando a criminalidade urbana nova-iorquina como se esmaga uma barata, a série solo do anti-herói estabelece um eixo narrativo qualitativamente diferente. De modo análogo a mudança de tom que ocorre entre Tropa de Elite 1 e 2, quando o Capitão Nascimento passa de um perseguidor de cabeças do tráfico a um inimigo declarado do Sistema (nos termos do próprio filme), a jornada de Castle em busca de vingança segue uma mesmo tônica. Não se trata, agora, de perseguir os Cães do Inferno (gangue de motoqueiros que aparece em várias séries da Marvel) ou a máfia irlandesa (até porque ele já a liquidou). O inimigo de Frank agora é outro, a saber: a própria CIA, representada na figura do “aristocrata-oligarca” William Rawlins, o sinistro Agente Orange (coincidentemente, Agent Orange é o nome de um herbicida usado pelo exército americano durante a Guerra do Vietnã).

Neste panorama de conspirações governamentais e de enfrentamento irregular, a série se desenrola a partir de um cabo de guerra envolvendo caciques militares por detrás da infame Operação Cerberus (operação da CIA de queima de arquivo e tráfico de heroína dentro de cadáveres de soldados mortos em combate) e as testemunhas vivas, potencialmente incômodas, do ocorrido, dentre as quais está, não só Castle, como também David Lieberman, o Micro, um hacker e ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional que vazou um vídeo da operação, teve a vida arruinada em seguida e agora depende das habilidades operacionais do Justiceiro para recuperá-la. 

O personagem de Micro é particularmente interessante, não só pela excelente interpretação de Ebon Moss-Bachrach, mas porque seu plot remete a uma problemática recente da política internacional e a uma ferida podre da sociedade americana: a mesma sociedade que, embora se autoproclame como a ponta de lança do chamado Mundo Livre, arauta da liberdade, da democracia e da sociedade aberta, protetora da civilização, persegue implacavelmente quem quer que ouse relevar a verdade sobre suas condutas homicidas e anti-humanas, como Snowden e Assange: Micro é, neste sentido, um símbolo e uma figuratividade de ambos.

Espionagem, queima de arquivo, tráfico de drogas, assassinatos políticos e simbiose entre Estado e setor privado já seriam suficientes para expor a maior parte das feridas podres americanas, mas há ainda outro elemento polêmico pincelado pelo enredo numa espécie de subplot: o problema da compra e porte de armas. E aqui não há muitas delongas. Mesmo sob o risco de boicote da imprensa liberal, a série exprime um posicionamento: o cidadão comum deve poder portar uma arma. E faz isso sem se apoiar em qualquer tipo de clichê, zombando e caricaturizando tanto a figura do redneck, quanto a do liberal-progressista-desarmamentista, fazendo-os parecer idiotas em um mundo repleto de nuances, onde não cabem soluções empacotadas. Um mundo onde a violência é real, tão real que, eventualmente, é necessário recorrer à violência para freá-la.  

O enredo ainda encontra tempo para abordar o problema da (não)socialização à sociedade de ex-combatentes americanos que, uma vez que retornam para a casa, vivem como zumbis, atordoados pelo que viram no campo de batalha, pelo horror da guerra, pela mutilação, pela matança dos inocentes e pela visão da morte de seus amigos, às vezes brutal, sem encontrarem um lugar na sociedade, deslocados de uma guerra física para uma guerra espiritual e mental, acometidos de toda sorte de Transtornos Pós-Traumáticos – o que leva alguns a cometerem ações drásticas e absurdas.

Para um país envolvido em tantas ingerências em países alheios, com um orçamento em Defesa estrondosamente grande (porque essa é a única maneira de manter o controle militar sobre o planeta), nenhuma surpresa.

Toda visceralidade e violência gráfica no último volume são meros detalhes. Além de contar com sequências monumentais de ação e combate, um enredo linear e simples, mas envolvente e robusto, acima de tudo, O Justiceiro é eficiente para desenhar a farsa-totalitária que é os Estados Unidos. 

Notas:

[1] Kevin, Barrett. US invaded Afghanistan to restore heroin industry – now pretending to fight it. Veterans Today, 21 de nov. 2017. Disponível em: https://www.veteranstoday.com/2017/11/21/afghan-heroin. Acesso em 21 de nov. 2017.

[2] Pepe, Escobar. Afghanistan and the CIA Heroin Ratline. Global Research, 25 de ago. 2017. Disponível em: https://www.globalresearch.ca/afghanistan-and-the-cia-heroin-ratline/5606329. Acesso em 21 de nov. 2017.

[3] Julien, Mercille. Afghanistan, Garden of Empire: America’s Multibillion Dollar Opium Harvest. Global Research, 21 de feb. 2013. Extraído de: ________________. Cruel Harvest: US Intervention in the Afghan Drug Trade. New York: Pluto Press, 2013. Disponível em: https://www.globalresearch.ca/afghanistan-garden-of-empire-americas-multibillion-dollar-opium-harvest/5324196. Acesso em 21 de nov. 2017.

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4 comentários

  1. […] A Marvel é conhecida por retratar temáticas políticas em suas histórias. O próprio Capitão América, inicialmente nada mais do que uma peça de propaganda de guerra do imperialismo, com o passar dos anos e nas mãos de certos roteiristas, vai progressivamente se convertendo num personagem com relações muito sensíveis com o governo americano, chegando a lutar contra ele em diversas ocasiões. E por mais que essa “politização” seja ruim às vezes (como quando a editora tenta incutir temáticas pós-modernas e politicamente corretas em seus títulos – o que geralmente acaba desembocando no cancelamento desses títulos por baixa adesão do público), ela acerta o alvo eventualmente. É geralmente fidedigna ao descrever as relações dos EUA com o terrorismo e o crime organizado, como na trama apresentada pela Marvel Studios na recente série do Justiceiro (leia nossa crítica, Justiceiro: uma radiografia da podridão americana, aqui). […]

  2. Adore esta serie, inclusive, agora farei uma maratona dos episódios passados com meus amigos para lembrar e estar prontos para a nova temporada. Adorei O Justiceiro por que não são os gêneros que acostumo ver, ando soube que Jon Bernthal estava participando dele. Jon Bernthal e me ator favorito. Ele sempre surpreende com os seus papeis, pois se mete de cabeça nas suas atuações e contagia profundamente a todos com as suas emoções. Adoro porque sua atuação não é forçada em absoluto. Seguramente o êxito de Jon Bernthal ator deve-se a suas expressões faciais, movimentos, a maneira como chora, ri, ama, tudo parece puramente genuíno. Sempre achei o seu trabalho excepcional, sempre demonstrou por que é considerado um grande ator. Gosto muito do ator e a sua atuação é majestuosa.

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