Sobre 1964

Na guerra de narrativas que faz parte da luta política, a esquerda marxista tenta reivindicar João Goulart, o Jango como um dos seus. E a direita liberal-conservadora tenta empurra Jango para o comunismo, de acordo com o discurso de que os militares “salvaram a nação do comunismo”.

João Goulart teve muitos defeitos, mas nunca foi comunista: ele é um representante da tradição do trabalhismo brasileiro. Durante a segunda metade dos anos 1950 e os anos 1960, o principal teórico do trabalhismo foi Alberto Pasqualini, o mesmo que fundamentava as linhas mestras do PTB na Doutrina Social da Igreja Católica-Romana.

Fora da teoria, na práxis política, Jango era mais próximo das concepções peronistas de República sindicalista e do corporativismo – e de Getúlio Vargas. Obviamente, tudo muito distante de qualquer abraço ao marxismo.

Os vínculos entre os movimentos comunistas e o trabalhismo nos anos 1960 não passavam de articulações políticas em torno de plataformas comuns, que eram possíveis por causa da leitura hegemônica do PCB sobre o momento do país.

Naquele período, os comunistas pensavam, de acordo com a análise semi-oficial de Nelson Werneck de Sodré, que a burguesia nacional se uniria com os proletários e o campesinato contra o latifúndio e o imperialismo. Era nesse tom que viam a aliança tambémcom o PTB e com Jango, como uma forma de acelerar a construção de uma capitalismo sob a égide da burguesia nacional.

As ideias ”etapistas” de Sodré estiveram por trás, implícita ou explicitamente, dessas aproximações que o PCB se permitia com o PTB. O golpe de 1964, apoiado fortemente pela burguesia industrial, rompeu essas ilusões, e convenceu os marxistas do erro colossal que cometeram a respeito da suposta dicotomia entre a elite econômica brasileira e o capital internacional.

A oposição a Jango e ao trabalhismo, por sua vez, agitava a bandeira do anticomunismo, que no Brasil sempre foi grande o suficiente para construir um espantalho contra todos os que defendiam uma política externa contra-hegemônica, e portanto desvinculada dos interesses ianques, e uma mudança radical da estrutural social iníqua herdada do escravismo. Nem Vargas, que meteu comunistas a rodo na cadeia, escapou do epíteto.

Pra essa turma, basta romper com o imperialismo econômico e cultural imposto ao povo brasileiro para se tornar, de uma hora para outra, em ”comunista”, num processo similar ao abuso que os socialistas e esquerdistas em geral fazem do termo ”fascismo”. É uma forma de xingamento, de rótulo, cujo fundamento é a pura erística.

Em seu famoso discurso na Central do Brasil, em 1964, Jango disse coisas como:

“O inolvidável Papa João XXIII é quem nos ensina que a dignidade da pessoa humana exige normalmente como fundamento natural para a vida, o direito ao uso dos bens da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade privada a todos.

É dentro desta autêntica doutrina cristã que o governo brasileiro vem procurando situar a sua política social, particurlamente a que diz respeito à nossa realidade agrária.

O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados pelos Santos Padres. Nem os rosários podem ser erguidos como armas contra os que reclamam a disseminação da propriedade privada da terra, ainda em mãos de uns poucos afortunados.

Àqueles que reclamam do Presidente de República uma palavra tranqüilizadora para a Nação, o que posso dizer-lhes é que só conquistaremos a paz social pela justiça social.

(…) Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude ou de uma obra de saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, quese apoderaram das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou 70 bilhões de dinheiro do povo, não deve bemeficiar os latifundiários, pela multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.

Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras abandonadas em títulos de dívida pública e a longo prazo.

(…) E, feito isto, os trabalhadores do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reinvindicação, aquela que lhe dará um pedaço de terra para trabalhar, um pedaço de terra para cultivar. Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios, porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de se fazer reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional parte que obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento em dinheiro.

No Japão de pós-guerra, há quase 20 anos, ainda ocupado pelas forças aliadas vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas em bônus com 24 anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é que se lembrou de chamar o General MacArthur de subversivo ou extremista?

Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica iniciada há quinze anos, 150 mil famílias foram beneficiadas.

No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, 20 anos de prazo, juros de 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor fiscal. Na Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses.

Essas leis abrangem cerca de 68 milhões de hectares, ou seja, a metade da área cultivada da Índia. Todas as nações do mundo, independentemente de seus regimes políticos, lutam contra a praga do latifúndio improdutivo.

Nações capitalistas, nações socialistas, nações do Ocidente, ou do Oriente, chegaram à conclusão de que não é possível progredir e conviver com o latifúndio.

A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É produto da inadiável necessidade de todos os povos do mundo. Aqui no Brasil, constitui a legenda mais viva da reinvindicação do nosso povo, sobretudo daqueles que lutaram no campo.

A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua produção para sobreviver”.

Concordamos com Jango e com os Papas, a Doutrina Social da Igreja Católica e os nacionalistas nesse ponto: a reforma agrária é essencial!

Mas e a mencionada guerra de narrativas (entre a “esquerda” e a “direita”)?

Ela não nos interessa:

O grande derrotado em 31 de março de 1964 foi o povo brasileiro.

A encruzilhada em que o país se encontrava colocava, de um lado, um tipo de industrialização e desenvolvimento que derrubasse a marteladas diversos elementos responsáveis pela reprodução da estrutura social iníqua e neo-escravista em que vivemos, e a construção de uma formação social e política com alto grau de autonomia em relação aos centros capitalistas internacionais.

O outro caminho levaria a um crescimento fundamentado em subordinação ao imperialismo e à hegemonia ianque, e a formação de um país de metrópoles partidas e de extrema exclusão social e política das massas.

A recusa de Jango em lutar fez com que a balança pendesse definitivamente para os golpistas liderados por Castelo Branco, que entregaram o país aos Estados Unidos e começaram sua obra de desmantelamento de boa parte do legado trabalhista.

O ”milagre econômico” tinha por pilares a subordinação a multinacionais, achatamento monumental dos salários e promoção da mais infame desigualdade social do planeta, e era impulsionado por poupança externa, cujas consequências explodiram na crise da dívida do início dos anos 1980.

Grande parte dos problemas que a Nova República enfrenta até hoje são heranças dos governos dos generais, incluindo aí a urbanização caótica, o ”enfavelamento”, a consolidação das máfias vinculadas a contrabando e tráfico na fronteira, o surgimento das organizações criminosas que controlavam presídios e bairros inteiros das grandes cidades, o modelo insustentável de financiamento do Estado, o colapso dos serviços públicos etc.

A grande questão em relação ao regime militar não é se ele deu continuidade à industrialização porque o país passava desde os anos 1930. E sim que tipo ou modelo de sociedade levantou a partir dessa industrialização. O Brasil que nasceu é aquele dos anos 1980 e 1990, que até hoje assombra a maior parte de nós.

Liberdade! Justiça! Revolução!

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