10 clássicos para conhecer a música carioca

O Rio é uma cidade de tambores batendo num ritmo especial, capaz de criar uma sensação de vazio pedindo para ser ocupada -- expressão daquele vácuo no peito gerado pela aculturação dos povos nativos, e que Darcy Ribeiro defendia ser o berço do brasileiro.

Marcada como “cidade-capital” desde sua fundação, o Rio de Janeiro se tornou o símbolo do “Brasil das Metrópoles”, que muitas vezes parecia apontar para a predominância do Mar sobre a Terra, da Costa sobre o Interior. E, no entanto, a música popular da cidade é uma demonstração cabal do sentido contrário da metropolização ocorrida no país: “Acredito ser o mais valente/Nessa luta do Rochedo com o Mar”.

A primeira e mais forte característica dessa música é seu caráter antropofágico, que torna a cidade um imenso ritual tupi ou terreiro a céu aberto, alimentando-se de todas as influências somente para transformá-las e cuspi-las em novas incorporações da brasilidade.

O Rio se abriu para o ragtime, o one step time e o jazz estadunidenses, do mesmo modo que absorveu influências do bolero latino-americano, da polca europeia, da moda e do fado português, do lundu africano e, mais recentemente, do Miami Bass latino vindo da Flórida. Enquanto isso, deixou-se ocupar pela musicalidade dos imigrantes oriundos de Minas Gerais, Bahia, do Vale do Paraíba Fluminense, convertendo toda essa energia em uma proclamação da vitória do Sertão sobre o Mar.

A Antropofagia fundante da cidade é Mestre Sala bailando com uma Porta-Bandeira chamada Síncope. O Rio é uma cidade de tambores batendo num ritmo especial, capaz de criar uma sensação de vazio pedindo para ser ocupada — expressão daquele vácuo no peito gerado pela aculturação dos povos nativos, e que Darcy Ribeiro defendia ser o berço do brasileiro.

A magia gerada na síncope pode ser exemplificada por diversos símbolos do Rio, desde o andar gingado do malandro, passando pelo drible de Garrincha na ponta direita, até o rebuliço da passista na Avenida. E também na Bossa Nova, um dos gêneros mais acusados de “americanizar” a música brasileira, mas cuja batida parecia ser um mistério para os mais experimentados e habilidosos instrumentistas do jazz nos EUA.

Esta Antropofagia Sincopada se faz entre dois pólos de nossa musicalidade: O primeiro deles canta o Paraíso Perdido, a saudade gravada na alma brasileira. A perda e a decadência são emblemas do imaginário carioca, que se via em queda desde o desaparecimento de Dom Sebastião e de Estácio de Sá. Todo evento importante na vida do Rio de Janeiro foi lido nesse tom: o retorno de Dom João VI para Portugal, a Abdicação do primeiro Imperador, a proclamação República, a transferência da capital e os recentes problemas sociais e urbanos que revelaram a “Cidade Partida”. Independente do tempo, do contexto, dos movimentos da história, a consciência do Rio se entende em crise permanente.

Mas o outro polo da síncope antropofágica é o exorcismo da própria saudade, a necessidade ontológica da festa, ela mesmo sincopada entre o sagrado e o profano, que instaura a idade de ouro, o reino da abundância e da felicidade no aqui e agora. Fruto dos festivais indígenas, da metafísica da presença eucarística, da “terreirização” da vida, a música carioca também se esbalda na experiência realizada da Alegria. Somos fiéis em expectativa na Santa Praça Onze ou aos pés da escadaria da Igreja da Penha, aguardando a fumaça branca que anuncia “Habemus Carnaval!”

Essa é a chave por trás do grito de Tom Jobim, “Estou morrendo de Saudade” (Samba do Avião), em tensão sincopada com o bordão que dá início ao movimento da Bossa Nova: “Chega de Saudade!” (Cantada por João Gilberto). Paulinho da Viola, que disse em entrevistas que suas canções nascem de um sentimento anti-nostálgico, de uma presença que ele carrega dentro dele, cantou “Quanto bate uma saudade” e também “Pra fugir da Saudade”.

Zeca Pagodinho versa em “Minha Fé”: “Por isso que a vida que eu levo é beleza/Eu não tenho tristeza e só vivo a cantar/Cantando eu transmito alegria/E afasto qualquer nostalgia pra lá”.

Se a Mangueira cantava saudosamente as “Relíquias do Rio Antigo/Do Rio Antigo/Que não volta mais”, a União da Ilha desfilava sambando sob o som de “É hoje o dia da alegria e a tristeza/Nem pode pensar em chegar/Diga espelho meu/Se há na Avenida alguém mais feliz que eu”.

Escolhi dez canções para refletir essa Antropofagia Sincopada entre o Paraíso Perdido e a Idade de Ouro, e que proclama a vitória do Sertão sobre o Mar em plena metrópole. Não são as dez melhores, nem muito menos as dez únicas possíveis. Mas dez cantos com que hoje escolhi mergulhar no amor ao Rio.

  1. Abre Alas – Chiquinha Gonzaga – Intérpretes: Linda y Dircinha

Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar

Eu sou da Lira
Não posso negar
Eu sou da Lira
Não posso negar

Ó abre alas
Que eu quero passar
Ó abre alas
Que eu quero passar

Rosas de Ouro
É quem vai ganhar!
Rosas de Ouro
É quem vai ganhar!

2. Carinhoso – Pixinguinha/João de Barro – Intérprete: Orlando Silva

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim foges de mim

Ah, se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz
Bem feliz

3. Fita Amarela – Noel Rosa – Intérprete: Orquestra Imperial

Quero que o sol não invada o meu caixão
Para a minha pobre alma não morrer de insolação
Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão

Não quero flores nem coroa com espinho
Eu quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Estou contente, consolado por saber
Que as morenas tão formosas a terra um dia há de comer

Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos mas não paguei ninguém
Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Meus inimigos que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim

4. Heróis da Liberdade – Silas de Oliveira/Mano Décio da Viola/Manoel Ferreira [Samba de Enredo do Império Serrano em 1969] – Intérprete: Jorginho do Império

Ô ô ô ôLiberdade, Senhor,
Passava a noite, vinha dia
O sangue do negro corria
Dia a dia
De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia
O fim da tirania
Lá em Vila Rica
Junto ao Largo da Bica
Local da opressão
A fiel maçonaria
Com sabedoria
Deu sua decisão lá, rá, rá
Com flores e alegria veio a abolição
A Independência laureando o seu brasão
Ao longe soldados e tambores
Alunos e professores
Acompanhados de clarim
Cantavam assim:
Já raiou a liberdade
A liberdade já raiou
Esta brisa que a juventude afaga
Esta chama que o ódio não apaga pelo Universo
É a revolução em sua legítima razão
Samba, oh samba
Tem a sua primazia
De gozar da felicidade
Samba, meu samba
Presta esta homenagem
Aos “Heróis da Liberdade”

5. Águas de Março – Tom Jobim – Intérpretes: Elis Regina e Tom Jobim

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o Sol
É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matinta Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira

É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão

É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto, o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma ponta, é um ponto
É um pingo pingando, é uma conta, é um conto
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada

É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

Au, edra, im, minho
Esto, oco, ouco, inho
Aco, idro, ida, ol, oite, orte, aço, zol
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

6. Preciso me encontrar – Candeia – Intérprete: Cartola

Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Quero assistir ao sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver
Deixe-me ir
Preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar

7. Eu gostava tanto de você – Tim Maia – Intérprete: Tim Maia

Não sei por que você se foi
Quantas saudades eu senti
E de tristezas vou viver
E aquele adeus não pude dar

Você marcou na minha vida
Viveu, morreu na minha história
Chego a ter medo do futuro
E da solidão que em minha porta bate

E eu
Gostava tanto de você
Gostava tanto de você

Eu corro, fujo desta sombra
Em sonho, vejo este passado
E na parede do meu quarto
Ainda está o seu retrato

Não quero ver pra não lembrar
Pensei até em me mudar
Lugar qualquer que não exista
O pensamento em você

E eu
Gostava tanto de você
Gostava tanto de você

8. Fio Maravilha – Jorge Ben – Intérprete: Jorge Ben

Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa
E a magnética agradecida assim cantava

Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa
E a magnética agradecida assim cantava

Fio maravilha, nós gostamos de você
Fio maravilha, faz mais um pra gente vê

Fio maravilha, nós gostamos de você
Fio maravilha, faz mais um pra gente vê

E novamente ele chegou com inspiração
Com muito amor, com emoção, com explosão e gol
Sacudindo a torcida aos 33 minutos do segundo tempo
Depois de fazer uma jogada celestial em gol

Tabelou, driblou dois zagueiros
Deu um toque driblou o goleiro
Só não entrou com bola e tudo
Porque teve humildade em gol

Foi um gol de classe
Onde ele mostrou sua malícia e sua raça

Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa
E a magnética agradecida assim cantava

Foi um gol de anjo, um verdadeiro gol de placa
E a magnética agradecida assim cantava

Fio maravilha, nós gostamos de você
Fio maravilha, faz mais um pra gente vê

Fio maravilha, nós gostamos de você
Fio maravilha, faz mais um pra gente vê

Fio Maravilha!

9. Construção – Chico Buarque – Intérprete: Chico Buarque

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

10. Sorriso Aberto – Guaraci Sant’Anna – Intérprete: Jovelina Pérola Negra

É
Foi ruim a beça
Mas pensei depressa
Numa solução para a depressão
Fui ao violão
Fiz alguns acordes
Mas pela desordem do meu coração
Não foi mole não

Quase que sofri desilusão

Tristeza foi assim se aproveitando
Pra tentar se aproximar
Ai de mim
Se não fosse o pandeiro, o ganzá e o tamborim
Pra ajudar a marcar (o tamborim)

Logo eu com meu sorriso aberto
O paraíso perto, pra vida melhorar
Malandro desse tipo
Que balança mais não cai
De qualquer jeito vai
Ficar bem mais legal
Pra nivelar
A vida em alto astral

Imagem padrão
André Luiz dos Reis

 

 

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