Resistência, Imperialismo e Contradições na Guerra na Síria

(Primeira parte da intervenção efetuada no dia 18 de outubro de 2017, durante o I Fórum Fluminense de Resistências Patrióticas, realizado no SINDIPETRO-RJ. A segunda parte, voltada para a crise venezuelana, pode ser lida aqui. Os slides usados na apresentação podem ser acessados [em inglês] aqui).

Resumo:

A Guerra Síria é o mais recente front no impulso de Washington pela dominação global. Porém, diferente de suas operações contra Iraque e Líbia, a Síria, apoiada por seus aliados, resistiu com sucesso à tentativa de mudança de regime apoiada por Washington. Apesar da resistência de sucesso e do caso óbvio das ambições imperialistas de Washington contra a Síria, a maioria da esquerda ocidental não conseguiu identificar este impulso por remover o presidente anti-americano e antissionista da Síria e, ao contrário, ficou do lado de forças reacionárias apoiadas pelos EUA, muitas das quais ligadas à al-Qaeda. Este artigo explorará os motivos pelos quais a Síria é, e sempre foi, alvo dos imperialistas americanos, o tipo de forças que os EUA apoiam, e quem e porque a esquerda imperialista ocidental apoia forças reacionárias. A Guerra Síria apresenta um caso sobre como o Império Americano está em declínio, na medida em que não consegue conquistar a destruição completa do Estado sírio e a derrubada do presidente democraticamente eleito, Bashar al-Assad.

Introdução:

O imperialismo é o mecanismo que busca controlar militarmente e economicamente o mundo. É por meio de um sistema capitalista, e da exportação de grandes corporações, que se pode impor a própria dominação sobre Estados mais fracos. O imperialismo é o que ocorre quando corporações multinacionais ou um Estado, particularmente da Anglosfera, pode extrair matéria-prima como petróleo e metais preciosos ou impor dominação econômica e militar sobre outro Estado sem ser responsável perante ninguém ou sem dividir os lucros com o povo. No entanto, isso não se reduz apenas à matéria-prima ou à dominação militar: é também é o meio pelo qual o dólar americano, em particular, seja a moeda hegemônica no planeta. Aqueles que não se encaixam nos paradigmas do comércio em dólar americano, ou em ter seus recursos naturais sob controle corporativo ocidental, se tornam alvos.

Isso foi visto com a derrubada e assassinato do coronel Muammar Gaddafi na Líbia, quando ele planejou descartar o dólar americano e criar uma moeda pan-africana lastreada em ouro (Sputnik, 2016). Isso também foi visto no Iraque quando Saddam Hussein foi derrubado e executado quando deixou de fazer comércio em dólares americanos em favor do eurodólar (Paul, 2008: 265). Isso também é visto hoje com a intensa beligerância do presidente americano Donald Trump contra o líder norte-coreano Kim Jong-Il após ter sido descoberto, em junho de 2017, que o país tem trilhões de dólares em minérios não-extraídos como ouro, ferro, zinco e cobre (Weller, 2017). Apesar de Washington sempre utilizar a retórica de violações dos direitos humanos no Iraque, Líbia e Coreia do Norte como justificativa para a agressão americana, deve-se questionar os motivos pelos quais Washington não só tolera, mas está aliada a um reino puritano como a Arábia Saudita (que executa homossexuais e não permite que mulheres dirijam); ou por qual motivo os EUA terem apoiado todos os golpes direitistas na América Latina, que têm levado ao extermínio de centenas de milhares de pessoas, especialmente entre socialistas, comunistas e camponeses.

Ao invés, a beligerância dirigida pelos EUA contra Iraque, Líbia e Coreia do Norte não é por razões humanitárias, mas porque estes Estados não se submeteram à órbita do Império Americano.

Porém, a história do imperialismo também é uma história de resistência. Resistências derrotadas, como a catástrofe de Salvador Allende contra o golpe de Pinochet apoiado pelos EUA no Chile em 1973; a derrubada de Saddam Hussein em 2003 pelo exército americano invasor e o assassinato de Gaddafi em 2011 por jihadistas apoiados pelos EUA estão entre muitas. Porém, há momentos na história em que foram vistas resistências bem sucedidas ao imperialismo, particularmente os sucessos dos irmãos Castro em Cuba; a vitória vietnamita contra o Império Americano expansionista e a resiliência do povo sírio na guerra atual.

Por que a Síria é um alvo das forças imperialistas?

A Síria é um dos poucos Estados no mundo, desde a Guerra do Vietnã, que tem resistido ao imperialismo americano até a exaustão e a retirada quase que completa de Washington. Apesar da Guerra síria ainda estar em andamento, nós vimos Trump cortar o financiamento da CIA a grupos jihadistas em julho de 2017, demonstrando o lento recuo dos EUA na Síria (Sanger, Schmitt e Hubbard, 2017).

Porém, a questão mais crítica que devemos ponderar é: por que a Síria tem sido alvo do Império Americano? Os dois pontos principais nessa questão são o papel da Síria no Eixo da Resistência e sua localização geoestratégica na encruzilhada da diplomacia dos oleodutos.

O Eixo da Resistência é uma coalizão entre Irã, Síria e o grupo paramilitar xiita libanês Hezbollah, e se mostrou uma poderosa força anti-imperialista, anti-ocidental e antissionista no Oriente Médio (Antonopoulos e Cottle, 2017: 99). Apesar de comentaristas afirmarem que o Eixo da Resistência é um eixo xiita pelo fato do Irã ser uma teocracia xiita, pela Síria ser governada por um presidente alauíta e pelo Hezbollah ser uma milícia xiita, essa análise simplista ignora que o Irã é uma República Islâmica multiétnica, ao passo que a Síria é uma república nacionalista árabe secular. Tais formas de governo, normalmente, estariam em lados opostos, mas por causa da visão compartilhada de que o Oriente Médio deveria estar livre de ambições e intervenções imperialistas, isso forçou estes Estados a se alinharem um com o outro.

A derrubada do xá pró-americano no Irã em 1979 viu uma mudança de poder que desafiaria diretamente os desígnios hegemônicos dos EUA na região, e mais importantemente, ameaçaria seu parceiro mais importante no Oriente Médio, a entidade sionista conhecida como Israel. Com um Irã poderoso revigorado por um zelo religioso e afirmando abertamente desejar exportar sua revolução e derrotar Israel em um confronto militar, o novo Aiatolá não poderia ser tolerado pelos EUA. O alinhamento da Síria à República Islâmica do Irã não se baseia em uma afiliação religiosa compartilhada, mesmo que os alauítas sejam um derivado do Islã xiita, mas sim pelos dois Estados serem diretamente afetados pela existência de Israel e do imperialismo americano.

A Síria, atualmente, hospeda 600 mil refugiados palestinos, e Israel ocupou as Colinas de Golã, ricas em petróleo, desde a Guerra dos Seis Dias em 1967, quando a entidade sionista capturou o território (Zaman al-Wasl, 2014). O Irã, por outro lado, se vê como a principal nação islâmica e sustenta que é dever de todos os muçulmanos participaram na luta pela causa palestina. É por essa razão que a hostilidade partilhada contra Israel, e a luta contra o imperialismo americano, forçou o Eixo da Resistência a existir. Porém, apesar da ameaça a Israel, por que o Eixo da Resistência é completamente intolerável aos desígnios de Washington no Oriente Médio?

O ponto mais importante concerne petróleo e gás, particularmente os oleodutos/gasodutos. No início da Guerra na Síria, um gasoduto catari-turco, que levaria gás do Catar do campo de gás condensado irano-catari Pars sul/Domo norte aos mercados europeus com um duto que passaria pela Síria, foi proposto: o gasoduto proposto foi rejeitado por Damasco, com a Agence France-Presse afirmando que Assad se recusou a assinar o acordo do gasoduto para “proteger os interesses de seu aliado russo, que é o principal fornecedor de gás natural da Europa” (Antonopoulos e Cottle, 2017: 90). Porém, do mesmo campo de gás, mas na porção controlada pelo Irã, a Síria foi receptiva à construção do Gasoduto Islâmico no período pós-guerra, com o gasoduto passando pelo Iraque, Síria e rumo à Europa. O correspondente da Asia times, Pepe Escobar, afirmou que “O gasoduto Irã-Iraque-Síria – se chegar a ser construído – solidificaria um eixo predominantemente xiita com um cordão umbilical econômico de aço” (Escobar, 2010). Um eixo composto por Irã, Iraque e Síria não se dá por identidade religiosa, como já foi enfatizado, mas por necessidades econômicas e geopolíticas.

A Guerra na Síria apresenta uma oportunidade para os EUA destruírem a proposta do Gasoduto Islâmico ao derrubarem o pró-iraniano Assad em Damasco, o que isolaria Teerã ainda mais. Isso é especialmente verdadeiro na medida em que a Síria é o único Estado árabe aliado ao Irã. Não obstante, não é apenas a energia iraniana que está sendo comprometida por causa da dificuldade em ter gás e petróleo iranianos alcançando mercados europeus por causa do caos na Síria e no Iraque, mas também a energia síria sendo explorada por Israel.

A descoberta de petróleo nas Colinas de Golã, ocupadas por Israel, serve como uma razão importante para que a Síria seja alvo das potências imperialistas. A empresa Genie Energy recebeu direitos exclusivos para a exploração e perfuração deste petróleo. O Conselho Diretor da Genie Energy inclui o 46º vice-presidente dos EUA, Dick Cheney; o ex-chefe da CIA, e presidente da Fundação para Defesa das Democracias, James Woolsey; Jacob Lord Rothschild da dinastia bancária londrina e o magnata midiático Rupert Murdoch (Genie Oil Gas, 2017).

É por causa de considerações energéticas e de segurança que Israel apoia as ambições imperialistas americanas na destruição do Estado sírio. As Colinas de Golã, que possuem uma população indígena de 20 mil drusos sírios, estão agora sendo numericamente superados por aproximadamente 25 mil colonos israelenses (Baker, 2017). Apesar da ONU e de Washington não terem reconhecido o controle israelense sobre as Colinas de Golã, a extração de recursos sírios serve não só para fortalecer os interesses capitalistas americanos e israelenses, mas também enfraquece a Síria na medida em que ela perde renda que poderia ser utilizada para o fortalecimento estatal ou para pagar sua dívida externa cada vez maior no período pós-guerra que se aproxima. O Eixo da Resistência representa a única ameaça real ao Estado israelense e, portanto, a longa guerra contra a Síria tem o potencial de enfraquecer a coalizão.

Apesar de Israel não ter se engajado em um ataque frontal direto contra a Síria, ele faz o bastante para atacar sistematicamente o Hezbollah e preservar forças jihadistas que combatem o Exército Sírio perto das Colinas de Golã. O Ministro da Defesa de Israel afirmou em 2015 que “(…) a nível estratégico, em outras palavras, nós não estamos intervindo em benefício de quem quer que seja” (Fishman, 2015). Israel enxerga a longa guerra contra a Síria como algo benéfica para si.

Com Washington classificando Irã e Síria como parte do “Eixo do Mal”, e o Hezbollah designado como uma organização terrorista, fica cada vez mais claro que a política externa americana no Oriente Médio está estrategicamente dirigida para isolar e cercar completamente o Irã (Segell, 2005: 166). Porém, diferentemente das suas invasões no Afeganistão e no Iraque, nas fronteiras oriental e ocidental do Irã, respectivamente, os EUA tentaram expandir sua rede neocolonial através de guerra de proxy e financiando secretamente organizações terroristas.

O respeitado acadêmico de esquerda Michael Parenti afirma que uma “Terceiromundização” dos EUA já começou (Parente, 1995). O que se quer dizer efetivamente com isso é que tem havido uma aceleração do empobrecimento da sociedade civil por causa do interesse de Washington em servir corporações transnacionais. Parente afirma que o império militar global americano é impulsionado pela ideia de garantir a expansão de capital. Com isso explicado, o não-alinhamento sírio com os EUA limitou a expansão do capital americano no país, fazendo dele, assim, um alvo direto do imperialismo americano.

Deste modo, os principais motivos pelos quais a Síria é alvo do Império Americano são sua ideologia antissionista e a resistência em permitir influência americana no país. É somente por causa do desejo americano de controlar o fluxo de gás e petróleo do Oriente Médio que a destruição do Estado sírio se tornou um imperativo, permitindo que corporações ocidentais controlem o petróleo sírio e que oleodutos/gasodutos de países pró-americanos passem livremente pela região.

Como visto na Líbia, a OTAN, controlada pelos EUA, não queria necessariamente governar a Líbia, mas garantir que os planos para troca de moeda comercial fossem paralisados e que o controle corporativo do petróleo fosse atingido. O sucesso do Experimento Líbio de Washington foi replicado na guerra de proxy da América contra o Estado sírio. Porém, os planejadores políticos e militares dos EUA não conseguiram reconhecer que, diferente de uma Líbia isolada, a Síria tem aliados dispostos a interferir, como foi visto no envio de tropas do Hezbollah à Síria em 2012; no envio de conselheiros militares iranianos em 2012 e na intervenção aérea russa, que começou em setembro de 2015. A Líbia não recebeu esse tipo de ajuda quando as ambições imperialistas se dirigiram contra ela, isolando completamente o Estado através de um cerco.

A Síria, porém, sempre foi alvo dos imperialistas americanos, razão pela qual a onda da chamada Primavera Árabe finalmente abriu a oportunidade para desestabilizar o país. No início da invasão americana no Iraque de 2003, o general Wesley Clark, um general 4 estrelas aposentado do exército americano, e Supremo Comandante da OTAN durante a Guerra da Iugoslávia de 1999, revelou que ele tomou ciência, em 2002, de um plano estabelecido no qual os EUA realizaram intervenções no Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e, finalmente, Irã (Antonopoulos e Cottle, 2017: 12). Apesar disso não ocorrer dentro do prazo de cinco anos do qual o general Wesley Clark tomou conhecimento, nós temos visto a desestabilização de todos esses países desde 2003, com a exceção do Irã, que, ao contrário, tem resistido com sucesso à intensa campanha de sanções contra ele.

A Contradição Americana na Síria:

Apesar da Guerra Síria ter apresentado a Washington uma oportunidade para derrubar o governo anti-imperialista em Damasco, ela também expôs a farsa que é a Guerra contra o Terrorismo liderada pelos EUA. Tal como aconteceu na Líbia, onde todas as medidas foram tomadas para derrubar Gaddafi, inclusive financiar, armar e apoiar forças jihadistas: o mesmo ocorreu na Síria, onde uma gama de grupos militantes receberam o mesmo apoio que seus colegas mujahedeen na Líbia. Porém, a diferença mais importante é que Gaddafi foi derrubado e assassinado em um curto período de tempo, diferente de Assad, que não só sobreviveu, mas se fortaleceu desde 2011. Isso não foi antecipado por Washington, e quanto mais a Guerra na Síria se arrasta, mais exposto o apoio americano a grupos ligados à al-Qaeda, e outras organizações terroristas como o ISIS, tem se revelado.

Em um exemplo, o grupo terrorista Al-Zinki decapitou, em 2016, uma criança palestina de 12 anos de idade em Aleppo, sob a alegação de que ele era um combatente (Adra, 2016). Isso é significativo, já que, até 2015, essa organização terrorista era financiada e armada pela CIA (Chulov, 2016).

Em outro caso, em outubro de 2017, foi revelado que Abu Khalid al-Sharqiya, um comandante da organização terrorista Ahrar al-Sharqiya (que havia sido anteriormente apoiada pelos EUA), foi filmado estuprando uma adolescente na cidade de Jarablus ao norte de Aleppo (Antonopoulos, 2017).

Jarablus é atualmente controlada por grupos terroristas apoiados pela Turquia depois que a cidade foi capturada do ISIS em 24 de agosto de 2016.

Apesar de ser sabido que os EUA tem apoiado secretamente o ISIS e a al-Nusra, o que estes dois exemplos demonstram é que os EUA estavam apoiando de forma aberta e direta estes grupos sob a justificativa de que eles seriam rebeldes moderados. Ao contrário, há duas possibilidades: ou os EUA não sabiam quem eles estavam apoiando em um frenesi por apoiar qualquer grupo que estivesse combatendo o Exército Sírio ou eles sabiam das ideologias extremistas destes grupos, mas as apoiavam ainda assim, contradizendo sua suposta Guerra ao Terrorismo.

Evidências da colaboração entre EUA e ISIS também têm se apresentado. Um exemplo é o ataque aéreo da coalizão contra as montanhas Thardeh nos arredores de Deir Ezzor no leste da Síria, em setembro de 2016, quando jatos da coalizão, inclusive com envolvimento da Austrália, mataram 82 soldados sírios (Antonopoulos, 2016). Em poucos minutos da conclusão do ataque aéreo, o ISIS assaltou as posições do Exército Sírio, expulsando forças do governo dos picos da montanha, que perderam boa parte do território. Isso levou vários comentaristas políticos e meios midiáticos a sugerirem que este era um exemplo do Ocidente colocando a mudança de regime na Síria acima do combate ao terrorismo.

O presidente russo Vladimir Putin, quase 1 mês depois do ataque, disse em uma entrevista concedida à televisão francesa:

“Nossos colegas americanos nos disseram que este ataque aéreo foi um equívoco. Este equívoco custou as vidas de 80 pessoas e, por coincidência talvez, o ISIS assumiu a ofensiva imediatamente depois. Ao mesmo tempo, nas fileiras mais baixas, no nível operacional, um militar americano comentou de forma bem franca que eles passaram vários dias preparando este ataque. Como ele teria sido um erro se foram vários dias de preparação?” (RT, 2016).

O exército sírio disse que os ataques aéreos eram “um ataque sério e claro à Síria e ao seu exército” e “prova firme do apoio americano ao ISIS”, com a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, aformando que após “o ataque ao exército sírio, chegamos à terrível conclusão de que a Casa Branca está defendendo o Estado Islâmico” (Deeb, 2016).

Porém, excetuando o apoio americano a grupos ligados à al-Qaeda na Síria, os EUA também são apoiadores das Forças Democráticas Sírias (SDF), que são ligadas às Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG). A YPG está sob o “guarda-chuva” do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que são reconhecidos como uma organização terrorista internacional por Washington. Isso novamente demonstra a contradição da política americana na Síria, na qual eles abertamente apoiam a YPG, mas reconhecem seu grupo fundador na Turquia e Iraque como uma organização terrorista.

O Secretário de Defesa dos EUA, à época Ashton Carter, elogiou a YPG em março de 2016 como tendo “demonstrado ser uma excelente parceira na luta contra o ISIL. Nós somos gratos por isso e pretendemos continuar a fazê-lo, reconhecendo as complexidades de seu papel regional” (Hurriyet Daily News, 2016). Forças de Operação Especial dos EUA, operando ilegalmente na Síria, são usualmente vistas utilizando patches da YPG em seus uniformes (Bertrand, 2016). Em resposta, o Ministro de Relações Exteriores da Turquia, Meylut Cavusoglu, criticou as tropas americanas utilizando patches da YPG, dizendo que:

“Neste caso, recomendamos que eles usem patches do Daesh, da al-Nusra e da al-Qaeda quando forem a outras partes da Síria, e do Boko Haram quando eles forem à África. Àqueles que dizem não considerar a YPG como sendo o mesmo que esses grupos terroristas, essa é a nossa resposta: isso é aplicar dois pesos e duas medidas, isso é ser duas caras” (Fraser e Balder, 2016).

A Turquia, particularmente, vê o PKK como uma organização terrorista e tem combatido sua insurgência por décadas. A Turquia é um membro central da OTAN, liderada pelos EUA, e essa discordância sobre os curdos tem sido uma razão importante na deterioração das relações entre os dois Estados.

Contradição Anti-Imperialista Ocidental na Síria:

O aspecto mais confuso do conflito sírio foi a resposta da maioria das organizações de esquerda anti-imperialistas do Ocidente. Embora a maioria dos Estados pós-coloniais, e seus respectivos partidos de esquerda, bem como os ex-Estados soviéticos, tenham apoiado o governo sírio desde o início da guerra, a maioria dos grupos esquerdistas ocidentais, com exceção de um pequeno número de organizações comunistas não-trotskistas, apoiaram grupos militantes reacionários na Síria.

A esquerda ocidental olha a guerra na Síria como uma revolução interna, levada a cabo por forças progressistas para derrubar uma ditadura brutal, enquanto a maioria da esquerda em Estados pós-coloniais reconhece os fatores externos e as ambições imperiais que estão em curso na Síria. Enquanto isso, a esquerda ocidental, mascarada como anti-imperialista, se recusa a reconhecer os projetos imperialistas na Síria por parte dos Estados Unidos, Israel, Turquia e Arábia Saudita. Por esse motivo, é comum que eles sejam referidos como a “esquerda imperialista”.

Como a maioria na esquerda imperialista no Ocidente não tem memórias históricas de serem colonizados pelas potências imperiais, eles geralmente vêem o mundo através do paradigma apenas de uma luta de classes entre capitalistas e trabalhadores. Assim, com a erupção da Guerra na Síria, eles não reconheceram os fatores externos em jogo e acreditavam que se tratava de uma luta dos trabalhadores contra uma ditadura que tolerava uma classe burguesa. Essa visão simplista, de não reconhecer fatores externos, também significou o apoio da esquerda imperialista à derrubada do coronel Gaddafi. É através deste mecanismo simplista que a esquerda imperialista aplica o seu Complexo do Salvador Branco e vê o mundo pós-colonial como consistindo em dois tipos de pessoas: ditadores e vítimas.

É o entusiasmo pelo YPG desempenhar o papel das vítimas que ganhou os corações da esquerda imperialista. O YPG é apresentado como uma resistência contra grupos extremistas, especialmente o ISIS, e contra a chamada ditadura brutal de Bashar al-Assad. Ao ter mulheres posando com armas e bandeiras de Che Guevara, eles são apresentados como uma força progressiva com valores marxistas e seculares. Enquanto os EUA entravam em contradição ao apoiar um ramo de uma organização que eles identificavam como uma organização terrorista, os YPGs são contraditórios ao se apresentarem como marxistas anti-imperialistas, mas serem completamente dependentes e aliados ao Império dos EUA. A esquerda imperialista ignorou essa contradição e continuou a apoiar o YPG cegamente.

O YPG deixou claro o seu desejo de federalizar a Síria, com elementos mais extremos da organização desejando a independência completa. Embora o YPG afirme ser tolerante com as minorias étnicas, na realidade, vimos o assassinato de assírios em Qamishli e a limpezas étnicas em aldeias árabes. Além dos objetivos de separatismo e de limpeza étnica, a esquerda imperialista ignora que o YPG também usa crianças como soldados. O YPG nem sequer tentou esconder o fato de que eles usavam crianças como soldados e, muitas vezes, publicaram imagens de crianças mártires.

O pai de uma menina de 14 anos, próximo a cidade de Qamishli, no norte da Síria, revelou como sua filha foi lutar com o YPG. Ele afirmou: “Minha filha foi para a escola e foi tirada de lá por um grupo do YPJ. Nós não sabíamos nada sobre ela até que um comandante do YPJ nos ligasse e nos contasse que ela se juntou ao YPJ” (Human Rights Watch, 2015). Em 5 de julho de 2015, o YPG emitiu uma circular para comandantes e chefes de centros de recrutamento, dizendo que estes não deveriam recrutar ou aceitar qualquer pessoa com menos de 18 anos e que aqueles que não cumprissem a diretriz enfrentariam “medidas disciplinares máximas” (Ibid).

No entanto, os EUA, em seu relatório anual sobre o tráfico de seres humanos, declararam que:

“Apesar de terem assinado uma promessa de compromisso com uma organização internacional em junho de 2014 para desmobilizar todos os combatentes menores de 18 anos, as Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG) recrutaram e treinaram crianças de até 12 anos em 2016” (Departamento de Estado dos EUA , 2017).

O viés não pode ser questionado, considerando que o YPG são os aliados mais próximos dos EUA na Síria, e suas revelações surpreendentes revelaram o uso continuado de crianças como soldados na Síria. A esquerda imperialista escolhe ignorar este crime de guerra grosseiro do YPG.

Eles também optam por ignorar sua operação de limpeza étnica. Pesquisadores da Anistia Internacional visitaram 14 cidades e aldeias nas províncias de al-Hasakeh e al-Raqqa, no norte da Síria, controladas pelo YPG em julho e agosto de 2015, para investigar o deslocamento forçado de moradores e a demolição de residências (Anistia Internacional, 2015). No entanto, as Nações Unidas rebateram a declaração feita pela Anistia Internacional, afirmando que:

“Apesar de alegações de ‘limpeza étnica’ continuarem a ser recebidas durante o período de investigação, a Comissão não encontrou evidência para substanciar acusações de que o YPG ou o SDF tenham alguma vez atacado as comunidades árabes com base na etnia, nem que as autoridades cantonais da YPG tentaram sistematicamente alterar a composição demográfica dos territórios sob seu controle através da prática de violações dirigidas contra qualquer grupo étnico em particular. Em todo o norte da Síria, o SDF ou o YPG deslocaram comunidades para limpar as áreas minadas pelo ISIS durante sua retirada” (Antonopoulos, 2017).

No entanto, a evidência é que apenas as comunidades árabes foram evacuadas, sob o pretexto de que elas seriam alvo de aeronaves da coalizão, e a Anistia Internacional forneceu imagens de satélite que mostravam blocos inteiros destruídos, que não foram resultado da luta contra o ISIS (Anistia Internacional, 2015). Uma dessas imagens de satélite mostrou a escala das demolições na aldeia de Husseiniya, com 225 edifícios em junho de 2014, mas apenas 14 restantes em junho de 2015: uma redução chocante de 93,8% (Ibid). Uma testemunha ocular afirmou que: “Eles nos retiraram de nossas casas e começaram a queimar a casa (…) eles trouxeram as escavadeiras (…) eles derrubaram casa após casa até que a aldeia inteira foi destruída” (Ibid).

As cidades são destruídas porque o YPG acredita que os árabes na região são simpatizantes e apoiadores do ISIS. Isso fornece o pretexto para que o YPG limpe etnicamente aldeias e cidades não-curdas, criando uma mudança demográfica a seu favor. Mais uma vez, a esquerda imperialista nega esses crimes de guerra, e de limpeza étnica, e ainda vê o YPG como uma força progressista e tolerante, quando, na realidade, seus objetivos visam um Estado curdo homogêneo.

O aspecto mais confuso do apoio da esquerda imperialista ao YPG é a contradição do apoio dos EUA ao grupo. A esquerda imperialista se define como um movimento progressista anti-imperialista, no entanto, o YPG, que também se retrata como um grupo marxista-leninista, depende inteiramente da maior potência imperial no mundo atual: os Estados Unidos. Essa contradição também é ignorada pela esquerda imperialista, que apoia diretamente a política externa dos EUA na Síria.

Conclusão:

A Guerra na Síria provou ser uma das guerras mais mortíferas deste século até agora. Ao contrário da Guerra do Iraque em 2003, onde houve uma invasão direta dos EUA, a Síria viu a implementação do modelo líbio contra ela: [modelo que] falhou. Assad conta com o apoio da maioria do povo, e juntamente com aliados como Hezbollah, Irã e Rússia, assegurou a sobrevivência do Estado sírio.

Não é necessariamente a sobrevivência de Assad que deve ser apoiada, mas a sobrevivência de um Estado sírio secular, com sua sua soberania respeitada. O governo sírio fornece saúde e educação gratuitas para a sua população, subsidiando muitas necessidades. É por isso que a Síria tem sido um modelo e tem servido de inspiração para muitos Estados pós-coloniais, que têm visto os sucessos alcançados, apesar das constantes guerras da entidade sionista, recursos limitados e mão-de-obra limitada.

A Síria não só sobreviveu, mas também resistiu ao imperialismo dos EUA contra ela. Esta guerra não enfraqueceu a Síria, mas, ao contrário, fortaleceu a unidade nacional, o apoio ao governo e o apoio ao exército. O que o fracasso dos EUA na Síria demonstra é o declínio do Império Americano. O Império Americano não conseguiu subjugar e isolar o Irã; não conseguiu destruir o Hezbollah; não conseguiu levar a fome à Coréia do Norte e, nos últimos tempos, não substituiu o bolivarianismo na Venezuela por forças pró-americanas neoliberais.

Na medida em que os Estados pós-coloniais se galvanizam e reivindicam cada vez mais sua legítima soberania, o Império Americano enfraquece, auxiliando na criação de um mundo mais equitativo, onde as corporações ocidentais não representam o auge da civilização. O sucesso da sobrevivência da Síria demonstra essa mudança de ordem mundial, especialmente com uma Rússia ressurgente e com uma ascensão chinesa, que eliminou o mundo unipolar de curta duração que existia desde o colapso da União Soviética em 1991.

A sobrevivência da Síria também desafia a perspectiva da esquerda imperialista perante Estados pós-coloniais. Enquanto as organizações stalinistas e maoistas reconhecem a necessidade de apoiar a sobrevivência do Estado sírio contra a agressão imperialista, a esquerda imperialista, que constitui a maioria da esquerda no Ocidente, especialmente os trotskistas e os cliffitass, apoia a agressão imperialista. No entanto, ao olhar para organizações de esquerda de Estados pós-coloniais ou ex-soviéticos, elas quase unilateralmente apoiam a Síria, incluindo partidos comunistas na Síria, Líbano, Turquia e de outros Estados regionais.

Portanto, é justo anunciar que, após as guerras brutais no século 21 contra o Iraque e a Líbia, a Síria representa uma ordem mundial em mutação, onde a resistência contra o Império Americano pode ter sucesso. O sucesso da Síria apenas encorajou o Hezbollah e o Irã, mas ainda mais significativamente, outros chamados Estados dissidentes que não se enquadram nos paradigmas do capitalismo e do império americanos, como a Coréia do Norte, a Venezuela e a Bielorrússia. Neste sentido, não é surpreendente ver a Coréia do Norte, a Venezuela e a Bielorrússia fortalecerem seus laços com a Síria, em vez de abandoná-la, com o início da guerra. Embora Cuba e Vietnã tenham resistido com sucesso ao imperialismo norte-americano, estes foram casos isolados no século 20 e, ao longo do século XXI, veremos o declínio do poder global do Império Americano.

 

Referências:

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(Primeira parte da intervenção efetuada no dia 18 de outubro de 2017, durante o I Fórum Fluminense de Resistências Patrióticas, realizado no SINDIPETRO-RJ. A segunda parte, voltada para a crise venezuelana, pode ser lida aqui. Os slides usados na apresentação podem ser acessados [em inglês] aqui).

Resumo:

A Guerra Síria é o mais recente front no impulso de Washington pela dominação global. Porém, diferente de suas operações contra Iraque e Líbia, a Síria, apoiada por seus aliados, resistiu com sucesso à tentativa de mudança de regime apoiada por Washington. Apesar da resistência de sucesso e do caso óbvio das ambições imperialistas de Washington contra a Síria, a maioria da esquerda ocidental não conseguiu identificar este impulso por remover o presidente anti-americano e antissionista da Síria e, ao contrário, ficou do lado de forças reacionárias apoiadas pelos EUA, muitas das quais ligadas à al-Qaeda. Este artigo explorará os motivos pelos quais a Síria é, e sempre foi, alvo dos imperialistas americanos, o tipo de forças que os EUA apoiam, e quem e porque a esquerda imperialista ocidental apoia forças reacionárias. A Guerra Síria apresenta um caso sobre como o Império Americano está em declínio, na medida em que não consegue conquistar a destruição completa do Estado sírio e a derrubada do presidente democraticamente eleito, Bashar al-Assad.

Introdução:

O imperialismo é o mecanismo que busca controlar militarmente e economicamente o mundo. É por meio de um sistema capitalista, e da exportação de grandes corporações, que se pode impor a própria dominação sobre Estados mais fracos. O imperialismo é o que ocorre quando corporações multinacionais ou um Estado, particularmente da Anglosfera, pode extrair matéria-prima como petróleo e metais preciosos ou impor dominação econômica e militar sobre outro Estado sem ser responsável perante ninguém ou sem dividir os lucros com o povo. No entanto, isso não se reduz apenas à matéria-prima ou à dominação militar: é também é o meio pelo qual o dólar americano, em particular, seja a moeda hegemônica no planeta. Aqueles que não se encaixam nos paradigmas do comércio em dólar americano, ou em ter seus recursos naturais sob controle corporativo ocidental, se tornam alvos.

Isso foi visto com a derrubada e assassinato do coronel Muammar Gaddafi na Líbia, quando ele planejou descartar o dólar americano e criar uma moeda pan-africana lastreada em ouro (Sputnik, 2016). Isso também foi visto no Iraque quando Saddam Hussein foi derrubado e executado quando deixou de fazer comércio em dólares americanos em favor do eurodólar (Paul, 2008: 265). Isso também é visto hoje com a intensa beligerância do presidente americano Donald Trump contra o líder norte-coreano Kim Jong-Il após ter sido descoberto, em junho de 2017, que o país tem trilhões de dólares em minérios não-extraídos como ouro, ferro, zinco e cobre (Weller, 2017). Apesar de Washington sempre utilizar a retórica de violações dos direitos humanos no Iraque, Líbia e Coreia do Norte como justificativa para a agressão americana, deve-se questionar os motivos pelos quais Washington não só tolera, mas está aliada a um reino puritano como a Arábia Saudita (que executa homossexuais e não permite que mulheres dirijam); ou por qual motivo os EUA terem apoiado todos os golpes direitistas na América Latina, que têm levado ao extermínio de centenas de milhares de pessoas, especialmente entre socialistas, comunistas e camponeses.

Ao invés, a beligerância dirigida pelos EUA contra Iraque, Líbia e Coreia do Norte não é por razões humanitárias, mas porque estes Estados não se submeteram à órbita do Império Americano.

Porém, a história do imperialismo também é uma história de resistência. Resistências derrotadas, como a catástrofe de Salvador Allende contra o golpe de Pinochet apoiado pelos EUA no Chile em 1973; a derrubada de Saddam Hussein em 2003 pelo exército americano invasor e o assassinato de Gaddafi em 2011 por jihadistas apoiados pelos EUA estão entre muitas. Porém, há momentos na história em que foram vistas resistências bem sucedidas ao imperialismo, particularmente os sucessos dos irmãos Castro em Cuba; a vitória vietnamita contra o Império Americano expansionista e a resiliência do povo sírio na guerra atual.

Por que a Síria é um alvo das forças imperialistas?

A Síria é um dos poucos Estados no mundo, desde a Guerra do Vietnã, que tem resistido ao imperialismo americano até a exaustão e a retirada quase que completa de Washington. Apesar da Guerra síria ainda estar em andamento, nós vimos Trump cortar o financiamento da CIA a grupos jihadistas em julho de 2017, demonstrando o lento recuo dos EUA na Síria (Sanger, Schmitt e Hubbard, 2017).

Porém, a questão mais crítica que devemos ponderar é: por que a Síria tem sido alvo do Império Americano? Os dois pontos principais nessa questão são o papel da Síria no Eixo da Resistência e sua localização geoestratégica na encruzilhada da diplomacia dos oleodutos.

O Eixo da Resistência é uma coalizão entre Irã, Síria e o grupo paramilitar xiita libanês Hezbollah, e se mostrou uma poderosa força anti-imperialista, anti-ocidental e antissionista no Oriente Médio (Antonopoulos e Cottle, 2017: 99). Apesar de comentaristas afirmarem que o Eixo da Resistência é um eixo xiita pelo fato do Irã ser uma teocracia xiita, pela Síria ser governada por um presidente alauíta e pelo Hezbollah ser uma milícia xiita, essa análise simplista ignora que o Irã é uma República Islâmica multiétnica, ao passo que a Síria é uma república nacionalista árabe secular. Tais formas de governo, normalmente, estariam em lados opostos, mas por causa da visão compartilhada de que o Oriente Médio deveria estar livre de ambições e intervenções imperialistas, isso forçou estes Estados a se alinharem um com o outro.

A derrubada do xá pró-americano no Irã em 1979 viu uma mudança de poder que desafiaria diretamente os desígnios hegemônicos dos EUA na região, e mais importantemente, ameaçaria seu parceiro mais importante no Oriente Médio, a entidade sionista conhecida como Israel. Com um Irã poderoso revigorado por um zelo religioso e afirmando abertamente desejar exportar sua revolução e derrotar Israel em um confronto militar, o novo Aiatolá não poderia ser tolerado pelos EUA. O alinhamento da Síria à República Islâmica do Irã não se baseia em uma afiliação religiosa compartilhada, mesmo que os alauítas sejam um derivado do Islã xiita, mas sim pelos dois Estados serem diretamente afetados pela existência de Israel e do imperialismo americano.

A Síria, atualmente, hospeda 600 mil refugiados palestinos, e Israel ocupou as Colinas de Golã, ricas em petróleo, desde a Guerra dos Seis Dias em 1967, quando a entidade sionista capturou o território (Zaman al-Wasl, 2014). O Irã, por outro lado, se vê como a principal nação islâmica e sustenta que é dever de todos os muçulmanos participaram na luta pela causa palestina. É por essa razão que a hostilidade partilhada contra Israel, e a luta contra o imperialismo americano, forçou o Eixo da Resistência a existir. Porém, apesar da ameaça a Israel, por que o Eixo da Resistência é completamente intolerável aos desígnios de Washington no Oriente Médio?

O ponto mais importante concerne petróleo e gás, particularmente os oleodutos/gasodutos. No início da Guerra na Síria, um gasoduto catari-turco, que levaria gás do Catar do campo de gás condensado irano-catari Pars sul/Domo norte aos mercados europeus com um duto que passaria pela Síria, foi proposto: o gasoduto proposto foi rejeitado por Damasco, com a Agence France-Presse afirmando que Assad se recusou a assinar o acordo do gasoduto para “proteger os interesses de seu aliado russo, que é o principal fornecedor de gás natural da Europa” (Antonopoulos e Cottle, 2017: 90). Porém, do mesmo campo de gás, mas na porção controlada pelo Irã, a Síria foi receptiva à construção do Gasoduto Islâmico no período pós-guerra, com o gasoduto passando pelo Iraque, Síria e rumo à Europa. O correspondente da Asia times, Pepe Escobar, afirmou que “O gasoduto Irã-Iraque-Síria – se chegar a ser construído – solidificaria um eixo predominantemente xiita com um cordão umbilical econômico de aço” (Escobar, 2010). Um eixo composto por Irã, Iraque e Síria não se dá por identidade religiosa, como já foi enfatizado, mas por necessidades econômicas e geopolíticas.

A Guerra na Síria apresenta uma oportunidade para os EUA destruírem a proposta do Gasoduto Islâmico ao derrubarem o pró-iraniano Assad em Damasco, o que isolaria Teerã ainda mais. Isso é especialmente verdadeiro na medida em que a Síria é o único Estado árabe aliado ao Irã. Não obstante, não é apenas a energia iraniana que está sendo comprometida por causa da dificuldade em ter gás e petróleo iranianos alcançando mercados europeus por causa do caos na Síria e no Iraque, mas também a energia síria sendo explorada por Israel.

A descoberta de petróleo nas Colinas de Golã, ocupadas por Israel, serve como uma razão importante para que a Síria seja alvo das potências imperialistas. A empresa Genie Energy recebeu direitos exclusivos para a exploração e perfuração deste petróleo. O Conselho Diretor da Genie Energy inclui o 46º vice-presidente dos EUA, Dick Cheney; o ex-chefe da CIA, e presidente da Fundação para Defesa das Democracias, James Woolsey; Jacob Lord Rothschild da dinastia bancária londrina e o magnata midiático Rupert Murdoch (Genie Oil Gas, 2017).

É por causa de considerações energéticas e de segurança que Israel apoia as ambições imperialistas americanas na destruição do Estado sírio. As Colinas de Golã, que possuem uma população indígena de 20 mil drusos sírios, estão agora sendo numericamente superados por aproximadamente 25 mil colonos israelenses (Baker, 2017). Apesar da ONU e de Washington não terem reconhecido o controle israelense sobre as Colinas de Golã, a extração de recursos sírios serve não só para fortalecer os interesses capitalistas americanos e israelenses, mas também enfraquece a Síria na medida em que ela perde renda que poderia ser utilizada para o fortalecimento estatal ou para pagar sua dívida externa cada vez maior no período pós-guerra que se aproxima. O Eixo da Resistência representa a única ameaça real ao Estado israelense e, portanto, a longa guerra contra a Síria tem o potencial de enfraquecer a coalizão.

Apesar de Israel não ter se engajado em um ataque frontal direto contra a Síria, ele faz o bastante para atacar sistematicamente o Hezbollah e preservar forças jihadistas que combatem o Exército Sírio perto das Colinas de Golã. O Ministro da Defesa de Israel afirmou em 2015 que “(…) a nível estratégico, em outras palavras, nós não estamos intervindo em benefício de quem quer que seja” (Fishman, 2015). Israel enxerga a longa guerra contra a Síria como algo benéfica para si.

Com Washington classificando Irã e Síria como parte do “Eixo do Mal”, e o Hezbollah designado como uma organização terrorista, fica cada vez mais claro que a política externa americana no Oriente Médio está estrategicamente dirigida para isolar e cercar completamente o Irã (Segell, 2005: 166). Porém, diferentemente das suas invasões no Afeganistão e no Iraque, nas fronteiras oriental e ocidental do Irã, respectivamente, os EUA tentaram expandir sua rede neocolonial através de guerra de proxy e financiando secretamente organizações terroristas.

O respeitado acadêmico de esquerda Michael Parenti afirma que uma “Terceiromundização” dos EUA já começou (Parente, 1995). O que se quer dizer efetivamente com isso é que tem havido uma aceleração do empobrecimento da sociedade civil por causa do interesse de Washington em servir corporações transnacionais. Parente afirma que o império militar global americano é impulsionado pela ideia de garantir a expansão de capital. Com isso explicado, o não-alinhamento sírio com os EUA limitou a expansão do capital americano no país, fazendo dele, assim, um alvo direto do imperialismo americano.

Deste modo, os principais motivos pelos quais a Síria é alvo do Império Americano são sua ideologia antissionista e a resistência em permitir influência americana no país. É somente por causa do desejo americano de controlar o fluxo de gás e petróleo do Oriente Médio que a destruição do Estado sírio se tornou um imperativo, permitindo que corporações ocidentais controlem o petróleo sírio e que oleodutos/gasodutos de países pró-americanos passem livremente pela região.

Como visto na Líbia, a OTAN, controlada pelos EUA, não queria necessariamente governar a Líbia, mas garantir que os planos para troca de moeda comercial fossem paralisados e que o controle corporativo do petróleo fosse atingido. O sucesso do Experimento Líbio de Washington foi replicado na guerra de proxy da América contra o Estado sírio. Porém, os planejadores políticos e militares dos EUA não conseguiram reconhecer que, diferente de uma Líbia isolada, a Síria tem aliados dispostos a interferir, como foi visto no envio de tropas do Hezbollah à Síria em 2012; no envio de conselheiros militares iranianos em 2012 e na intervenção aérea russa, que começou em setembro de 2015. A Líbia não recebeu esse tipo de ajuda quando as ambições imperialistas se dirigiram contra ela, isolando completamente o Estado através de um cerco.

A Síria, porém, sempre foi alvo dos imperialistas americanos, razão pela qual a onda da chamada Primavera Árabe finalmente abriu a oportunidade para desestabilizar o país. No início da invasão americana no Iraque de 2003, o general Wesley Clark, um general 4 estrelas aposentado do exército americano, e Supremo Comandante da OTAN durante a Guerra da Iugoslávia de 1999, revelou que ele tomou ciência, em 2002, de um plano estabelecido no qual os EUA realizaram intervenções no Iraque, Síria, Líbano, Líbia, Somália, Sudão e, finalmente, Irã (Antonopoulos e Cottle, 2017: 12). Apesar disso não ocorrer dentro do prazo de cinco anos do qual o general Wesley Clark tomou conhecimento, nós temos visto a desestabilização de todos esses países desde 2003, com a exceção do Irã, que, ao contrário, tem resistido com sucesso à intensa campanha de sanções contra ele.

A Contradição Americana na Síria:

Apesar da Guerra Síria ter apresentado a Washington uma oportunidade para derrubar o governo anti-imperialista em Damasco, ela também expôs a farsa que é a Guerra contra o Terrorismo liderada pelos EUA. Tal como aconteceu na Líbia, onde todas as medidas foram tomadas para derrubar Gaddafi, inclusive financiar, armar e apoiar forças jihadistas: o mesmo ocorreu na Síria, onde uma gama de grupos militantes receberam o mesmo apoio que seus colegas mujahedeen na Líbia. Porém, a diferença mais importante é que Gaddafi foi derrubado e assassinado em um curto período de tempo, diferente de Assad, que não só sobreviveu, mas se fortaleceu desde 2011. Isso não foi antecipado por Washington, e quanto mais a Guerra na Síria se arrasta, mais exposto o apoio americano a grupos ligados à al-Qaeda, e outras organizações terroristas como o ISIS, tem se revelado.

Em um exemplo, o grupo terrorista Al-Zinki decapitou, em 2016, uma criança palestina de 12 anos de idade em Aleppo, sob a alegação de que ele era um combatente (Adra, 2016). Isso é significativo, já que, até 2015, essa organização terrorista era financiada e armada pela CIA (Chulov, 2016).

Em outro caso, em outubro de 2017, foi revelado que Abu Khalid al-Sharqiya, um comandante da organização terrorista Ahrar al-Sharqiya (que havia sido anteriormente apoiada pelos EUA), foi filmado estuprando uma adolescente na cidade de Jarablus ao norte de Aleppo (Antonopoulos, 2017).

Jarablus é atualmente controlada por grupos terroristas apoiados pela Turquia depois que a cidade foi capturada do ISIS em 24 de agosto de 2016.

Apesar de ser sabido que os EUA tem apoiado secretamente o ISIS e a al-Nusra, o que estes dois exemplos demonstram é que os EUA estavam apoiando de forma aberta e direta estes grupos sob a justificativa de que eles seriam rebeldes moderados. Ao contrário, há duas possibilidades: ou os EUA não sabiam quem eles estavam apoiando em um frenesi por apoiar qualquer grupo que estivesse combatendo o Exército Sírio ou eles sabiam das ideologias extremistas destes grupos, mas as apoiavam ainda assim, contradizendo sua suposta Guerra ao Terrorismo.

Evidências da colaboração entre EUA e ISIS também têm se apresentado. Um exemplo é o ataque aéreo da coalizão contra as montanhas Thardeh nos arredores de Deir Ezzor no leste da Síria, em setembro de 2016, quando jatos da coalizão, inclusive com envolvimento da Austrália, mataram 82 soldados sírios (Antonopoulos, 2016). Em poucos minutos da conclusão do ataque aéreo, o ISIS assaltou as posições do Exército Sírio, expulsando forças do governo dos picos da montanha, que perderam boa parte do território. Isso levou vários comentaristas políticos e meios midiáticos a sugerirem que este era um exemplo do Ocidente colocando a mudança de regime na Síria acima do combate ao terrorismo.

O presidente russo Vladimir Putin, quase 1 mês depois do ataque, disse em uma entrevista concedida à televisão francesa:

“Nossos colegas americanos nos disseram que este ataque aéreo foi um equívoco. Este equívoco custou as vidas de 80 pessoas e, por coincidência talvez, o ISIS assumiu a ofensiva imediatamente depois. Ao mesmo tempo, nas fileiras mais baixas, no nível operacional, um militar americano comentou de forma bem franca que eles passaram vários dias preparando este ataque. Como ele teria sido um erro se foram vários dias de preparação?” (RT, 2016).

O exército sírio disse que os ataques aéreos eram “um ataque sério e claro à Síria e ao seu exército” e “prova firme do apoio americano ao ISIS”, com a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, aformando que após “o ataque ao exército sírio, chegamos à terrível conclusão de que a Casa Branca está defendendo o Estado Islâmico” (Deeb, 2016).

Porém, excetuando o apoio americano a grupos ligados à al-Qaeda na Síria, os EUA também são apoiadores das Forças Democráticas Sírias (SDF), que são ligadas às Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG). A YPG está sob o “guarda-chuva” do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), que são reconhecidos como uma organização terrorista internacional por Washington. Isso novamente demonstra a contradição da política americana na Síria, na qual eles abertamente apoiam a YPG, mas reconhecem seu grupo fundador na Turquia e Iraque como uma organização terrorista.

O Secretário de Defesa dos EUA, à época Ashton Carter, elogiou a YPG em março de 2016 como tendo “demonstrado ser uma excelente parceira na luta contra o ISIL. Nós somos gratos por isso e pretendemos continuar a fazê-lo, reconhecendo as complexidades de seu papel regional” (Hurriyet Daily News, 2016). Forças de Operação Especial dos EUA, operando ilegalmente na Síria, são usualmente vistas utilizando patches da YPG em seus uniformes (Bertrand, 2016). Em resposta, o Ministro de Relações Exteriores da Turquia, Meylut Cavusoglu, criticou as tropas americanas utilizando patches da YPG, dizendo que:

“Neste caso, recomendamos que eles usem patches do Daesh, da al-Nusra e da al-Qaeda quando forem a outras partes da Síria, e do Boko Haram quando eles forem à África. Àqueles que dizem não considerar a YPG como sendo o mesmo que esses grupos terroristas, essa é a nossa resposta: isso é aplicar dois pesos e duas medidas, isso é ser duas caras” (Fraser e Balder, 2016).

A Turquia, particularmente, vê o PKK como uma organização terrorista e tem combatido sua insurgência por décadas. A Turquia é um membro central da OTAN, liderada pelos EUA, e essa discordância sobre os curdos tem sido uma razão importante na deterioração das relações entre os dois Estados.

Contradição Anti-Imperialista Ocidental na Síria:

O aspecto mais confuso do conflito sírio foi a resposta da maioria das organizações de esquerda anti-imperialistas do Ocidente. Embora a maioria dos Estados pós-coloniais, e seus respectivos partidos de esquerda, bem como os ex-Estados soviéticos, tenham apoiado o governo sírio desde o início da guerra, a maioria dos grupos esquerdistas ocidentais, com exceção de um pequeno número de organizações comunistas não-trotskistas, apoiaram grupos militantes reacionários na Síria.

A esquerda ocidental olha a guerra na Síria como uma revolução interna, levada a cabo por forças progressistas para derrubar uma ditadura brutal, enquanto a maioria da esquerda em Estados pós-coloniais reconhece os fatores externos e as ambições imperiais que estão em curso na Síria. Enquanto isso, a esquerda ocidental, mascarada como anti-imperialista, se recusa a reconhecer os projetos imperialistas na Síria por parte dos Estados Unidos, Israel, Turquia e Arábia Saudita. Por esse motivo, é comum que eles sejam referidos como a “esquerda imperialista”.

Como a maioria na esquerda imperialista no Ocidente não tem memórias históricas de serem colonizados pelas potências imperiais, eles geralmente vêem o mundo através do paradigma apenas de uma luta de classes entre capitalistas e trabalhadores. Assim, com a erupção da Guerra na Síria, eles não reconheceram os fatores externos em jogo e acreditavam que se tratava de uma luta dos trabalhadores contra uma ditadura que tolerava uma classe burguesa. Essa visão simplista, de não reconhecer fatores externos, também significou o apoio da esquerda imperialista à derrubada do coronel Gaddafi. É através deste mecanismo simplista que a esquerda imperialista aplica o seu Complexo do Salvador Branco e vê o mundo pós-colonial como consistindo em dois tipos de pessoas: ditadores e vítimas.

É o entusiasmo pelo YPG desempenhar o papel das vítimas que ganhou os corações da esquerda imperialista. O YPG é apresentado como uma resistência contra grupos extremistas, especialmente o ISIS, e contra a chamada ditadura brutal de Bashar al-Assad. Ao ter mulheres posando com armas e bandeiras de Che Guevara, eles são apresentados como uma força progressiva com valores marxistas e seculares. Enquanto os EUA entravam em contradição ao apoiar um ramo de uma organização que eles identificavam como uma organização terrorista, os YPGs são contraditórios ao se apresentarem como marxistas anti-imperialistas, mas serem completamente dependentes e aliados ao Império dos EUA. A esquerda imperialista ignorou essa contradição e continuou a apoiar o YPG cegamente.

O YPG deixou claro o seu desejo de federalizar a Síria, com elementos mais extremos da organização desejando a independência completa. Embora o YPG afirme ser tolerante com as minorias étnicas, na realidade, vimos o assassinato de assírios em Qamishli e a limpezas étnicas em aldeias árabes. Além dos objetivos de separatismo e de limpeza étnica, a esquerda imperialista ignora que o YPG também usa crianças como soldados. O YPG nem sequer tentou esconder o fato de que eles usavam crianças como soldados e, muitas vezes, publicaram imagens de crianças mártires.

O pai de uma menina de 14 anos, próximo a cidade de Qamishli, no norte da Síria, revelou como sua filha foi lutar com o YPG. Ele afirmou: “Minha filha foi para a escola e foi tirada de lá por um grupo do YPJ. Nós não sabíamos nada sobre ela até que um comandante do YPJ nos ligasse e nos contasse que ela se juntou ao YPJ” (Human Rights Watch, 2015). Em 5 de julho de 2015, o YPG emitiu uma circular para comandantes e chefes de centros de recrutamento, dizendo que estes não deveriam recrutar ou aceitar qualquer pessoa com menos de 18 anos e que aqueles que não cumprissem a diretriz enfrentariam “medidas disciplinares máximas” (Ibid).

No entanto, os EUA, em seu relatório anual sobre o tráfico de seres humanos, declararam que:

“Apesar de terem assinado uma promessa de compromisso com uma organização internacional em junho de 2014 para desmobilizar todos os combatentes menores de 18 anos, as Unidades de Proteção do Povo Curdo (YPG) recrutaram e treinaram crianças de até 12 anos em 2016” (Departamento de Estado dos EUA , 2017).

O viés não pode ser questionado, considerando que o YPG são os aliados mais próximos dos EUA na Síria, e suas revelações surpreendentes revelaram o uso continuado de crianças como soldados na Síria. A esquerda imperialista escolhe ignorar este crime de guerra grosseiro do YPG.

Eles também optam por ignorar sua operação de limpeza étnica. Pesquisadores da Anistia Internacional visitaram 14 cidades e aldeias nas províncias de al-Hasakeh e al-Raqqa, no norte da Síria, controladas pelo YPG em julho e agosto de 2015, para investigar o deslocamento forçado de moradores e a demolição de residências (Anistia Internacional, 2015). No entanto, as Nações Unidas rebateram a declaração feita pela Anistia Internacional, afirmando que:

“Apesar de alegações de ‘limpeza étnica’ continuarem a ser recebidas durante o período de investigação, a Comissão não encontrou evidência para substanciar acusações de que o YPG ou o SDF tenham alguma vez atacado as comunidades árabes com base na etnia, nem que as autoridades cantonais da YPG tentaram sistematicamente alterar a composição demográfica dos territórios sob seu controle através da prática de violações dirigidas contra qualquer grupo étnico em particular. Em todo o norte da Síria, o SDF ou o YPG deslocaram comunidades para limpar as áreas minadas pelo ISIS durante sua retirada” (Antonopoulos, 2017).

No entanto, a evidência é que apenas as comunidades árabes foram evacuadas, sob o pretexto de que elas seriam alvo de aeronaves da coalizão, e a Anistia Internacional forneceu imagens de satélite que mostravam blocos inteiros destruídos, que não foram resultado da luta contra o ISIS (Anistia Internacional, 2015). Uma dessas imagens de satélite mostrou a escala das demolições na aldeia de Husseiniya, com 225 edifícios em junho de 2014, mas apenas 14 restantes em junho de 2015: uma redução chocante de 93,8% (Ibid). Uma testemunha ocular afirmou que: “Eles nos retiraram de nossas casas e começaram a queimar a casa (…) eles trouxeram as escavadeiras (…) eles derrubaram casa após casa até que a aldeia inteira foi destruída” (Ibid).

As cidades são destruídas porque o YPG acredita que os árabes na região são simpatizantes e apoiadores do ISIS. Isso fornece o pretexto para que o YPG limpe etnicamente aldeias e cidades não-curdas, criando uma mudança demográfica a seu favor. Mais uma vez, a esquerda imperialista nega esses crimes de guerra, e de limpeza étnica, e ainda vê o YPG como uma força progressista e tolerante, quando, na realidade, seus objetivos visam um Estado curdo homogêneo.

O aspecto mais confuso do apoio da esquerda imperialista ao YPG é a contradição do apoio dos EUA ao grupo. A esquerda imperialista se define como um movimento progressista anti-imperialista, no entanto, o YPG, que também se retrata como um grupo marxista-leninista, depende inteiramente da maior potência imperial no mundo atual: os Estados Unidos. Essa contradição também é ignorada pela esquerda imperialista, que apoia diretamente a política externa dos EUA na Síria.

Conclusão:

A Guerra na Síria provou ser uma das guerras mais mortíferas deste século até agora. Ao contrário da Guerra do Iraque em 2003, onde houve uma invasão direta dos EUA, a Síria viu a implementação do modelo líbio contra ela: [modelo que] falhou. Assad conta com o apoio da maioria do povo, e juntamente com aliados como Hezbollah, Irã e Rússia, assegurou a sobrevivência do Estado sírio.

Não é necessariamente a sobrevivência de Assad que deve ser apoiada, mas a sobrevivência de um Estado sírio secular, com sua sua soberania respeitada. O governo sírio fornece saúde e educação gratuitas para a sua população, subsidiando muitas necessidades. É por isso que a Síria tem sido um modelo e tem servido de inspiração para muitos Estados pós-coloniais, que têm visto os sucessos alcançados, apesar das constantes guerras da entidade sionista, recursos limitados e mão-de-obra limitada.

A Síria não só sobreviveu, mas também resistiu ao imperialismo dos EUA contra ela. Esta guerra não enfraqueceu a Síria, mas, ao contrário, fortaleceu a unidade nacional, o apoio ao governo e o apoio ao exército. O que o fracasso dos EUA na Síria demonstra é o declínio do Império Americano. O Império Americano não conseguiu subjugar e isolar o Irã; não conseguiu destruir o Hezbollah; não conseguiu levar a fome à Coréia do Norte e, nos últimos tempos, não substituiu o bolivarianismo na Venezuela por forças pró-americanas neoliberais.

Na medida em que os Estados pós-coloniais se galvanizam e reivindicam cada vez mais sua legítima soberania, o Império Americano enfraquece, auxiliando na criação de um mundo mais equitativo, onde as corporações ocidentais não representam o auge da civilização. O sucesso da sobrevivência da Síria demonstra essa mudança de ordem mundial, especialmente com uma Rússia ressurgente e com uma ascensão chinesa, que eliminou o mundo unipolar de curta duração que existia desde o colapso da União Soviética em 1991.

A sobrevivência da Síria também desafia a perspectiva da esquerda imperialista perante Estados pós-coloniais. Enquanto as organizações stalinistas e maoistas reconhecem a necessidade de apoiar a sobrevivência do Estado sírio contra a agressão imperialista, a esquerda imperialista, que constitui a maioria da esquerda no Ocidente, especialmente os trotskistas e os cliffitass, apoia a agressão imperialista. No entanto, ao olhar para organizações de esquerda de Estados pós-coloniais ou ex-soviéticos, elas quase unilateralmente apoiam a Síria, incluindo partidos comunistas na Síria, Líbano, Turquia e de outros Estados regionais.

Portanto, é justo anunciar que, após as guerras brutais no século 21 contra o Iraque e a Líbia, a Síria representa uma ordem mundial em mutação, onde a resistência contra o Império Americano pode ter sucesso. O sucesso da Síria apenas encorajou o Hezbollah e o Irã, mas ainda mais significativamente, outros chamados Estados dissidentes que não se enquadram nos paradigmas do capitalismo e do império americanos, como a Coréia do Norte, a Venezuela e a Bielorrússia. Neste sentido, não é surpreendente ver a Coréia do Norte, a Venezuela e a Bielorrússia fortalecerem seus laços com a Síria, em vez de abandoná-la, com o início da guerra. Embora Cuba e Vietnã tenham resistido com sucesso ao imperialismo norte-americano, estes foram casos isolados no século 20 e, ao longo do século XXI, veremos o declínio do poder global do Império Americano.

 

Referências:

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Paul Antonopoulos

Ativista político de origem grega, colaborador independente da NR, jornalista e analista político do jornal. @oulosP

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