A responsabilidade da Lava Jato pela crise econômica

Claudio Pereira de Souza Neto é um experiente advogado constitucionalista que hoje atua nos tribunais superiores em Brasília. Além disso, é professor de Direito Constitucional na Universidade Federal Fluminense (UFF). Ex-secretário geral da OAB entre 2013 e 2015, ele acompanhou de perto todo o desenrolar da grande crise brasileira desta década, e reuniu tudo o que viu no livro que está lançando, “Democracia em Crise no Brasil”. O que talvez seja mais especial em todo seu relato é que ele abrange tudo o que ocorre no país desde 2013 até as reações do governo Bolsonaro à pandemia em 2020.

Na entrevista abaixo, no entanto, ele se concentra em comentar o impacto da Lava Jato sobre a economia brasileira, sobre as empresas do setor de construção e infraestrutura, e como a operação sabotou significativas potencialidades de desenvolvimento econômico do Brasil.

RIB – Está se disseminando no Brasil a percepção de que a Lava Jato, apesar de suas intenções, acabou desestruturando setores econômicos importantes. Qual sua visão sobre isso, considerando tanto o fator corrupção como a questão da economia nacional?

Claudio Pereira de Souza Neto – Existe um impacto enorme da Lava Jato na esfera econômica. As consultorias econômicas tradicionais dão conta de que em 2015 este impacto teria chegado a 2,5% do PIB. E nos anos seguintes, o impacto foi se avolumando. É natural, a Lava Jato atingiu as principais empreiteiras brasileiras e a Petrobras, que era a maior contratante dos serviços de engenharia no país. A Petrobras interrompe a execução dos contratos e novos processos licitatórios. Mas os três entes da Federação também começam a sentir a ameaça de que operações análogas os alcancem também. Então eles também interrompem licitações e execução de obras, e assim a construção civil é muito afetada no período, com grande impacto na cadeia produtiva da construção e no emprego.

Um problema importante é sobre a necessidade do impacto. A política se caracterizava por uma relação não republicana entre empresas e Estado, e isso era quase uma exigência sistêmica decorrente do sistema de financiamento eleitoral implantado no Brasil. Era possível o financiamento por empresas, e isso só deixou de ocorrer por decisão do Supremo Tribunal Federal no mesmo período em que eclode a Lava Jato. Então, políticos obtinham financiamentos junto às empresas e as empresas queriam retorno. O Supremo declarou isso inconstitucional, o sistema estava mudando. E a Lava Jato começa olhando para o passado mais do que para o futuro. Então, um ponto é saber se de fato a relação entre empresas e política no Brasil era um problema do ponto de vista da moralidade pública.

Mas a Lava Jato tinha que ter se conduzido em conformidade com a legislação, e isso não aconteceu. A Lava Jato praticou muitas ilegalidades, como vazamento de delações, prisão de suspeitos para forçar delações e a seletividade em certos setores da vida política nacional e sobre os setores econômicos. A Lava Jato focou na construção civil, mas os bancos também doavam para as campanhas eleitorais em valores equivalentes aos das construtoras. E os bancos não foram afetados.

Quando houve a divulgação das conversas telefônicas pelo The Intercept, a sociedade brasileira soube que esta exclusão dos bancos da Lava Jato foi proposital. O próprio Deltan Dallagnol menciona o propósito de evitar uma crise sistêmica na economia. Se fosse conduzida de maneira mais imparcial e respeitando o devido processo legal, o impacto seria muito menor.

Mas tem ainda outros aspectos importantes, sobretudo em relação aos institutos da delação premiada e do acordo de leniência. O acordo de leniência tem por objetivo permitir que as empresas virem a página, que demonstrem os delitos de que participaram, apresentem provas e firmem um acordo para ressarcir os cofres públicos e possam seguir dali em diante sua vida empresarial com normalidade. Isso não ocorreu. Foram feitos vários acordos, mas o Estado brasileiro não reconhecia estes acordos, de maneira que as empresas respondem até hoje por atos que vieram a público em decorrência de suas próprias colaborações, sejam de seus executivos ou das próprias empresas.

Então, havia a possibilidade de que o Brasil virasse a página no contexto da proibição de financiamento eleitoral por empresas. Que se aproveitasse esses acordos para criar um novo começo na relação entre o Estado e os empreendedores privados, mas ao invés disso no enredamos em processos criminais sem fim, e em processos administrativos que vão nascendo a partir desses processos criminais. Até hoje a economia brasileira não conseguiu superar esse momento. E não conseguirá enquanto não tivermos a capacidade de inaugurar um novo momento na vida econômica nacional.

Em outros países, quando grandes empresas são pegas em escândalos, separa-se o CNPJ do CPF, para punir diretores e manter as empresas vivas. Assim aconteceu em casos recentes com a Volkswagen e a Samsung, por exemplo. Por que no Brasil não agimos assim?

Nenhum país do mundo abre mão de um setor inteiro da economia que lhe seja estratégico para o desenvolvimento nacional. Isso é uma temeridade absurda, impensável. A Volkswagen se envolveu em dezenas de problemas com a Justiça. Um dos casos recentes e gravíssimos foi a falsificação de testes de emissão de um tipo de motor a diesel, que era apresentado como revolucionário por emitir muito menos do que um motor tradicional. Mas depois se descobriu que a empresa havia falsificado o teste. A Samsung foi responsabilizada por ter pagado propina para o presidente da República da Coreia do Sul. No entanto, a Alemanha nunca iria pensar em abrir mão da Volkswagen, e muito menos a Coreia do Sul da Samsung.

Alguém poderia questionar que as nossas grandes empreiteiras não se comparam à Samsung. É comparável sim! Essas grandes empreiteiras brasileiras prestavam serviços de engenharia em todo o mundo. A Odebrecht era a maior na área de represas para usinas hidrelétricas. Era a maior empreiteira da América Latina. Por meio dessas empresas, os interesses estratégicos do Brasil se projetavam globalmente. Só uma ausência total de discernimento a respeito dos interesses nacionais pode ter permitido reduzir em muito a capacidade de empresas como estas.

A persecução criminal é muito importante porque ela concorre para a moralização das práticas administrativas do Brasil, mas ela tem uma importância que não supera a de preservar nossa soberania econômica, que envolve a presença de empresas capazes de realizar grandes obras públicas de infraestrutura. Vamos tornar o Brasil dependente de outros países no setor de infraestrutura, quando já havíamos desenvolvido e organizado as tecnologias e o pessoal necessários para dar conta dos grandes desafios envolvidos nas obras de grande complexidade? Isso só pode ser insanidade nacional, em que o país atua contra os próprios interesses.

Deveríamos ter feito com muita clareza a separação do CPF e do CNPJ. Que se processem as pessoas. A solução que foi aventada assim que a Lava Jato eclodiu foi que o próprio Estado encampasse os projetos através do controle acionário das Sociedades de Propósito Específico, e de imediato assim que fosse possível vendê-las de novo no mercado. Seria uma estatização temporária de modo a permitir a continuidade das obras.

Existe um livro da década de 1940, escrito nos Estados Unidos sobre a corrupção no país. Neste livro se formou o conceito de crime de colarinho branco. O autor estuda as 40 maiores empresas norte-americanas e verifica os processos judiciais em que elas estão envolvidas. A grande maioria esteve envolvida em processos de natureza criminal, como a General Motors, a Swift e várias outras. Mas, não fossem essas empresas, os Estados Unidos não seriam o que são. A substância econômica daquele país está muito associada às grandes multinacionais que construíram. E apesar dessas empresas terem se envolvido na prática de ilícitos, ninguém nos EUA imaginaria abrir mão da General Motors.

O meio jurídico brasileiro tem muitas disfunções, e uma das mais graves é a profunda ignorância a tudo o que não diz respeito à interpretação das leis. E a ignorância se soma à pretensão de saber tudo. Juízes nunca entraram numa fábrica, não sabem o que é processo produtivo. Não reconhecem a complexidade tecnológica de uma grande obra de infraestrutura. E assim, trataram essa preciosidade do Brasil que são seus engenheiros como se fossem algo descartável.

Os defensores da Lava Jato afirmam que a operação recuperou muito dinheiro desviado. Você saberia fazer a comparação entre o que se recuperou e o que se perdeu com a desmobilização dos setores da economia?

Não tenho números exatos, mas talvez tenha se recuperado 2% do que se perdeu. Não tem comparação, as grandezas são absolutamente desproporcionais. O único ganho que se poderia atribuir a uma operação de combate à corrupção não é o dinheiro resgatado, já que só em 2015 o PIB brasileiro caiu 2,5% só por causa da Lava Jato. E isso quem reconhece são consultorias como Tendências e companhia. Nessa comparação, a Lava Jato perde, pois as grandezas não são sequer comparáveis.

Um argumento que pode fazer sentido é que a moralização das práticas administrativas qualifica o ambiente de negócios, e daí poderia resultar um crescimento econômico de longo prazo. Quem acha que a corrupção é uma das razões do subdesenvolvimento pode sustentar essa tese. Mas o fato é que esses processos são sempre concomitantes. Os países nórdicos eram muito corruptos no início do século XX, assim como os Estados Unidos também eram. Mas estes países vão se desenvolvendo economicamente, culturalmente e institucionalmente, e daí resulta o aprimoramento na esfera da administração pública.

O Brasil vinha numa melhora crescente. Antes do advento da Lava Jato, aconteceu a Lei de Organizações Criminosas, a Lei Anticorrupção, a Lei da Transparência, a Lei da Ficha Limpa, a adesão do Brasil aos acordos internacionais de enfrentamento da lavagem de dinheiro. Isso é um histórico que começa na CPI dos Anões do Orçamento, ininterrupto, com inovações legislativas uma atrás da outra.

Essa ideia de que a Lava Jato é um marco positivo no enfrentamento da corrupção no Brasil me levanta dúvidas. Nós tínhamos um processo gradual de aperfeiçoamento institucional conduzido por meio de diálogo entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. E no meio disso, a Lava Jato aparece e é capturada por procuradores e um magistrado voluntaristas, viciados no aplauso da massa inflamada. Eles se viciaram no aplauso. E viram que atacar certos setores da política e da economia produzia aplauso e notoriedade pública. E com isso, o processo gradual que vinha se acelerando de forma significativa foi na verdade interrompido em razão da atuação demagógica e inconsequente de não se preocupar com a preservação de atividades econômicas estratégicas para um projeto nacional de desenvolvimento, como eram a construção civil e a engenharia brasileira como um todo.

Na sua resposta anterior, você indica que o aperfeiçoamento institucional é concomitante ao desenvolvimento. Chegaria a dizer que o desenvolvimento econômico é uma condição para o aperfeiçoamento das instituições?

Me parece que são processos concomitantes. O desenvolvimento é multidimensional, e estas dimensões se interpenetram. O desenvolvimento humano produz o desenvolvimento institucional e econômico. O desenvolvimento econômico produz desenvolvimento político. Há estatísticas inquestionáveis. Por exemplo, o país mais rico em que ocorreu um golpe de Estado com ruptura institucional na segunda metade do século XX foi a Argentina. Desde o golpe argentino da década de 1970 para cá, nenhum país em que fosse maior o PIB per capita vivenciou um golpe de Estado. A estabilidade política está estatisticamente associada ao PIB per capita. A superação da corrupção é um processo vinculado a isto. Não estou dizendo que nações pobres sejam nações corruptas, mas em nações desiguais é comum a prática da corrupção.

Houve uma interferência do Departamento de Justiça dos Estados Unidos na Lava Jato, visando atingir nossas empresas de construção de infraestrutura?

O livro é todo baseado em evidências. Ele busca não incidir em nenhum momento em teorias da conspiração. Como eu não tinha evidências sobre isso, e também porque o livro não é apenas sobre a Lava Jato, não se afirma isso no livro. Mas a minha percepção é de que pode ter havido uma interferência norte-americana. A interferência se daria pela via da colaboração jurídica. Os EUA são um país guerreiro; em toda sua história, em apenas 16 anos o país deixou de estar envolvido em guerras fora de seu território. E é natural que este país queira fazer valer seus interesses estratégicos por meio de formas menos custosas do ponto de vista econômico e humano. Eles tentarão lutar guerras por outras vias, e uma delas é o chamado lawfare. Que é justamente a utilização do Direito como instrumento de guerra.

Fonte: A Revolução Industrial Brasileira

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