Messianismo Tecnológico – Ilusões e Desencanto

Por Horacio Cagni

As contradições do progresso, e particularmente a tremenda experiência das guerras do século XX puseram sobre o tapete os alcances da ciência e da técnica, obrigado pensadores de toda origem e procedência a se interrogarem angustiosamente sobre o destino de nossa civilização.

Ao analisar aspectos emblemáticos como os gulags soviéticos, o genocídio armênio pelos otomanos, ou o holocausto – o extermínio de judeus pelo nazismo na Segunda Guerra Mundial – assim como as consequências do eufemisticamente chamado bombardeio estratégico anglo-americano – que, tanto em dito conflito como em outros posteriores, era simples terrorismo aéreo – se pode concluir que esses massacres em série são consequência da planificação e organização próprias das indústrias de grande escala. A morte industrial, a objetificação de um grupo social ou de um coletivo a destruir, resulta óbvio para os estudiosos do holocausto e do aniquilamento racial, como para aqueles que se dedicaram à revisão do aniquilamento social que realizaram os comunistas com burgueses, reacionários ou “desviacionistas”.

Em todos os casos, a distância que a tecnologia põe entre vitimários e vítima assegura a despersonalização dessa última, convertida em simples material a exterminar; os que estão amontoados esperando o fim em um campo de concentração perante o administrador de sua morte, como os trasfegados civis que estão sob a mira do bombardeiro, não são mais que simples números sem rosto. A responsabilidade do genocídio se dilui na imensa estrutura tecnoburocrática, o que Hannah Arendt chamava de “a banalidade do mal”.

É útil recordar que, ao longo de todo o século passado, numerosas vozes se ergueram, lucidamente, para denunciar os limites da técnica e os perigos do messianismo tecnológico. A técnica, chave da modernidade, se constituiu em uma religião do progresso, e a máquina resultou igualmente venerada e exaltada por liberais, comunistas, nazifascistas, reacionários e progressistas.

Guerra e Técnica – A Crítica de Ernst Jünger

Escritor, naturalista, soldado, morto mais que centenário pouco antes do ano 2000, Ernst Jünger foi a testemunha lúcida e o crítico agudo de uma das épocas mais intensas e cataclísmicas da história, desse século tão breve, que Eric Hobsbawm situa entre o fim da belle époque em 1914, e a queda do Muro de Berlim e da utopia comunista, em 1991.

Nunca se insistirá o suficiente que, para entender Jünger e as correntes espirituais de seu tempo, que também é o nosso, a chave, uma vez mais, é a Grande Guerra. O primeiro conflito mundial foi a grande parteira das revoluções desse século, não só no plano ideológico e político senão no das ideias, da ciência e da técnica. Pela primeira vez todas as instâncias da vida humana se subsumiam e subordinavam ao especto bélico. Era a consequência lógica da Revolução Industrial, o orgulho da Europa, porém ademais necessitou da conjunção com um novo fenômeno sociopolítico, que George Mosse definiu com acerto “a nacionalização das massas”. Em todos os países beligerantes, porém acima de tudo em Itália e Alemanha, culminava o processo de coagulação nacional e de exaltação da comunidade. Países que haviam chegado tarde, mercê das vicissitudes históricas, à conquista de uma unidade interior – como os assinalados – haviam encontrado finalmente essa unidade no front. Nas trincheiras se deixava de lado os dialetos, para mandar e obedecer na língua nacional; no bairro e sob a avalanche de fogo se vivia e se morria de forma absolutamente igualitária.

Constrangidos perante tamanho desastre, esses homens “civilizados” se depararam com o fato de que sua única arma e esperança eram a vontade, e seu único mundo os camaradas do front. Atrás haviam ficado os orgulhosos ideais do Iluminismo. O jogo da vida em boas formas e a retórica folhetinesca-parisiense ficavam enterrados no lodo de Verdun e Galicia, nas rochas do Carso e nas frias águas do Mar do Norte.

A catástrofe não só significou o afundamento do positivismo senão que demonstrou até que ponto havia avançado a técnica em seu desenvolvimento desmedido, e até que grau o ser humano estava submetido a ela. Soldados e máquinas de guerra eram uma mesma coisa, juntamente com seus Estados-Maiores e a cadeia de produção bélica. Já não existia frente e retaguarda, pois a mobilização total se havia apoderado da alma do povo. Jünger, oficial do exército do Kaiser, chamou de Materialschlacht – guerra de material -a essa nova espécie de combate. Nas operações bélicas, tudo se tornava material, inclusive o indivíduo, que não podia escapar da operação conjunta de homens e máquinas que nunca chegava a entender.

Quando se leem as obras de Jünger sobre a Grande Guerra – editadas por Tusquets – como Tempestade de Aço ou O Bosque 125, o relato das ações bélicas se torna monótono e abrumador, como deve ter sido a vida quotidiana no front, suspensa no risco, que insensibiliza a força de mortificação. Em A Guerra como Experiência Interior, Jünger aceita a guerra como um fato inevitável da existência, pois existe em todas as facetas da ocupação humana: a humanidade nunca fez outra coisa além de combater. A única diferença estriba na presença omnimoda e despersonalizante da técnica, porém sempre somos mais fortes ou mais fracos.

A literatura criada pela Grande Guerra é numerosa, e às vezes magnífica. A partir de O Fogo de Henri Barbusse, que foi a primeira, uma série de obras contaram a dor e o sacrifício, como a satírica O Lodo de Flandes, de Max Deauville, Guerra e Pós-Guerra de Ludwig Renn, Caminho do Sacrifício de Fritz von Unruh, e as reconhecidas Nada Novo no Front, de Erich Remarque e Quatro de Infantaria, de Ernst Johannsen, que deram lugar a filmes. Em todas essas obras campeia a sensação de impotência do homem frente à técnica desencadeada. Porém, mais além de sua excelência literária, todas se esgotam na crítica da guerra e o sentido desejo de que nunca se volte a repetir a tragédia.

Jünger foi muito mais longe; compreendeu que esse conflito havia destruído as barreiras burguesas que ensinavam a existência como busca do êxito material e observação da moral social. Agora afloravam as forças mais profundas da vida e da realidade, o que ele denominava “elementais”, forças que através da mobilização total se convertiam em parte ativa da nova sociedade, formada por homens duros e jovens, uma geração abissalmente diferente da anterior.

O novo homem se baseava em um “ideal novo”; seu estilo era a totalidade e sua liberdade a de se subsumir, de acordo à categoria da função, em uma comunidade na qual mandar e obedecer, trabalhar e combater. O indivíduo se subsume e tem sentido em um Estado total. Indivíduo e totalidade se conjugam sem trauma algum mercê à técnica, e seu arquétipo será o trabalhador, símbolo no qual o elemental vive e, ao mesmo tempo, é força mobilizadora. Se bem o exemplo é o operário industrial, todos são trabalhadores por cima de diferenças de classe. O tipo humano é o trabalhador, seja engenheiro, capataz, operário, quer se encontre na fábrica, no escritório, no café ou no estádio.

Oposto ao “homem econômico” – alma do capitalismo e do marxismo por igual – surgia o “homem heróico”, permanentemente mobilizado, seja na produção, seja na guerra. Essa distinção entre homem econômico e homem heróico a havia esboçado cedo o jovem Peter Drucker em seu livro O Fim do Homem Econômico, de 1939, fazendo alusão ao fascismo e ao nacional-socialismo, que irrompiam na história desde as mãos de “artistas da política”, que haviam vislumbrado a missão redentora e salvífica da unidade nacional nas trincheiras em que haviam combatido.

O trabalhador é “pessoa absoluta”, com uma missão própria. Consequência da era tecnomaquinista, é pertença e identidade com o trabalho e a comunidade orgânica à qual pertence e serve, assinala Jünger em seu livro Der Arbeiter, um de seus maiores ensaios, escrito em 1931. O mais importante dessa obra é a consideração do trabalhador como superação da burguesia e do marxismo: Marx entendeu parcialmente o trabalhador, pois o trabalho não se submete à economia. Se Marx acreditava que o trabalhador devia se converter em artista, Jünger sustenta que o artista se transforma em trabalhador, pois toda vontade de poder se expressa no trabalho, cuja figura é dito trabalhador.

Quanto ao miolo do pensamento burguês, este renega toda desmedida, tentando explicar todo fenômeno da realidade desde um ponto de vista lógico e racional. Este culto racionalista despreza o elemental como irracional, terminando por pretender um esvaziamento de sentido da existência mesma, erigindo uma religião do progresso, onde o objetivo é consumir, garantindo-se uma sociedade pacífica e sem sobressaltos. Para Jünger isso conduz ao mais venenoso e angustiante entediamento existencial, um estado espiritual de asfixia e morte progressiva. Somente um “coração aventureiro”, capaz de dominar a técnica assumindo-a plenamente e dando a ela um sentido heroico, pode tomar a vida de assalto e, desse modo, assegurar ao ser humano não simplesmente existir senão realmente ser.

Outros Críticos do Tecnomaquinismo

A princípios dos anos 30, apareceram na Europa, acima de tudo na Alemanha, uma série de escritores cujas obras se referiam à relação do homem com a técnica, onde a vontade como eixo da vida resulta em uma constante. Assim ocorre em O Homem e a Técnica, de Oswald Spengler – que segue as premissas nietzscheanas da “Vontade de Poder” – A Filosofia da Técnica, de Hans Freyer, Perfeição e Fracasso da Técnica de Friedrich Georg Jünger – irmão de Ernst – e os seminários do filósofo Martin Heidegger, todos contemporâneos do já citado O Trabalhador. (O livro de seu irmão Friedrich foi editado imediatamente depois da Segunda Guerra, porém havia sido escrito muitos anos antes e pelas vicissitudes do conflito não pôde sair à luz). Porém essas questões não eram privativas do mundo germânico, pois não devemos esquecer dos futuristas italianos liderados por Filippo Marinetti, nem ao Luigi Pirandello de Manivelas, aos escritos do francês Pierre Drieu La Rochelle – como La Comédie de Charleroi – e o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin.

O autor de O Pequeno Príncipe, o notável escritor e aviador francês Antoine de Saint Exupéry, também faz diversas reflexões sobre a técnica. Em seu livro Piloto de Guerra há uma página significativa, quando assinala que, em plena batalha da França em 1940, em uma granja, uma árvore anciã “sob cuja sombra se sucederam amores, romances e tertúlias de gerações sucessivas” obstaculiza o campo de tiro “de um tenente artilheiro alemão de 26 anos”, que termina por derrubá-la. Receoso de empregar seu avião como máquina assassina, St. Ex, como o chamavam, desapareceu em voo de reconhecimento em 1944, sem que se haja encontrado seus restos. Sua última carta dizia: “Se volto, o que posso dizer aos homens?”

Também o destacado jurista e politólogo Carl Schmitt se propôs a questão da técnica. Bem cedo, em seu ensaio clássico O Conceito do Político afirma que a técnica não é uma força para neutralizar conflitos senão um aspecto imprescindível da guerra e do domínio. “A difusão da técnica – assinala – é imparável”, e “o espírito do tecnicismo é quiçá maligno e diabólico, porém não pode ser descartado enquanto mecanicista, ele é a fé no poder e domínio ilimitado do homem sobre a natureza”. A realidade, precisamente, demonstrava os efeitos do messianismo tecnológico, tanto na exploração da natureza, como no conflito entre os homens. Em um corolário à obra antecitada, Schmitt define como processo de neutralização da cultura a esse tipo de religião do tecnicismo, capaz de crer que, graças à técnica, se conseguirá a neutralidade absoluta, a tão desejada paz universal. “Porém a técnica é cega em termos culturais, serve por igual à liberdade e ao despotismo…pode aumentar a paz ou a guerra, está disposta a ambas coisas em igual medida”.

O que ocorre, segundo Schmitt, é que a nova situação criada pela Grande Guerra abriu passagem a um culto da ação viril e da vontade absolutamente contrária ao romantismo do século XIX, que havia criado, com seu apoliticismo e passividade, um parlamentarismo deliberativo e retórico, arquétipo de uma sociedade carente de formas estéticas. É inegável a influência dos escritos de pós-guerra de Jünger – a guerra forjadora de uma “estética do horror” – na mente de Schmitt. Porém a essa desesperada busca de uma comunidade de vontade e beleza, capaz de conjurar o Golem tecnológico mediante uma barbárie heroica, não escapava praticamente ninguém naqueles tempos. Hoje é fácil olhar para trás e assinalar tantos pensadores de qualidade como “sepultadores da democracia de Weimar” e “preparadores do caminho do nazismo”. Esse olhar superficial sobre um período histórico tão intenso e complexo se impôs ao calor das paixões, apenas terminada a Segunda Guerra Mundial e, logo, mais ainda desde que o jornalismo se apoderou progressivamente da história e da ciência política. A realidade é sempre mais profunda.

Naqueles anos de Weimar, os alemães em sua maioria sentiam a frustração de 1918 e as consequências de Versalhes; os jovens buscavam com afã encarnar uma geração distinta, edificar uma sociedade nova que reconstruísse a pátria que amavam com desespero. Foi uma época de incrível florescimento na literatura, nas artes e nas ciências, e obviamente, isso se trasladou ao campo político. Por então, Moeller van den Bruck, Spengler e Jünger – malgrado suas diferenças – se transformaram em educadores dessa juventude, através de escritos e conferências. A estética völkisch, popular, que era anterior ao nacional-socialismo, abarcava todos os aspectos da vida quotidiana. A maioria dos pensadores abjuravam do débil parlamentarismo da República surgida da derrota, e no coração do povo, a Constituição de Weimar estava condenada. Por acaso não havia sido um êxito editorial O Estilo Prussiano, de Moeller van den Bruck, que propunha uma educação pela beleza? E Heidegger? Em sua alocução do solstício de 1933 dirá: “os dias declinam/nosso ânimo cresce/chama, brilha/corações, acendam”.

O interessante é que todos coincidiam. O católico Schmitt, quando em sua análise Queda do Segundo Império sustentava que a principal razão estava na vitória do burguês sobre o soldado; neoconservadores como August Winning, que distinguia entre comunidade de trabalho e proletariado, e como Spengler com seu “prussianismo socialista”; o erudito Werner Sombart e sua oposição entre “heróis e comerciantes”, e, ademais, os denominados nacional-bolcheviques. O mais conspícuo dos intelectuais nacional-bolcheviques, Ernst Niekisch, havia conhecido Jünger em 1927; a partir daí elaborará também uma reflexão sobre a técnica. Seu breve ensaio A Técnica, Devoradora de Homens é uma das análises mais lúcidas do messianismo tecnológico, e uma das maiores críticas da incapacidade do marxismo para compreender que a técnica era uma questão que escapava ao determinismo economicista e às diferenças de classe. Também é de Niekisch um dos melhores comentários de O Trabalhador de Jünger, obra da qual tinha um grande conceito. Todos eles tentaram dotar à técnica de um rosto brutal, porém ainda humano, demasiado humano, único achado do mundo, como sustentou Nietzsche.

Certamente, todas essas energias foram aproveitadas pelos políticos, que não pensavam nem escreviam tanto, porém podia franquear as barreiras que os intelectuais não se atreviam a ultrapassar. Esses novos políticos possuíam essa nova filosofia: já não procediam de quadros nem eram profissionais da política senão “artistas do poder”, como dizia Drucker. Lênin abriu o caminho, porém homens como Mussolini e Hitler, e muitos de seus sequazes, eram arquétipos dessa nova classe. Provinham das trincheiras do front, eram condutores de um movimento de jovens, tinham uma grande ambição, desprezavam o burguês, se bem confundiam suas ideias de salvação nacional com o lastre oitocentista de diversos preconceitos.

O Fim de uma Ilusão

Schmitt coincidia com Jünger em seu desprezo do mundo burguês. Na concepção jüngeriana, tão importante era o amigo como o inimigo: ambos são referentes da própria existência e lhe outorgam sentido. O postulado significativo da teorética schmittiana será a específica distinção do político: a distinção entre amigo e inimigo. O conceito de inimigo não é aqui metafórico senão existencial e concreto, pois o único inimigo é o inimigo público, o hostis. Preocupado com a ausência de unidade interior de seu país logo do vexame de 1918, vislumbrando em política interior o custo da debilidade do Estado liberal burguês, e em política externa as falências do sistema internacional de pós-guerra, Schmitt, a princípio, se comprometeu profundamente com o nacional-socialismo. Chegou a ser um dos principais juristas do regime. Acreditava encontrar nele a possibilidade de realização do decisionismo, a encarnação de uma ação política independente de postulados normativos.

Jünger, atento ao que denominava “a segunda consciência mais lúcida e fria” – a possibilidade de ver a si mesmo atuando em situações específicas – foi mais cuidadoso, e se distanciou progressivamente dos nacional-socialistas. Sem dúvida, seu lado conservador havia vislumbrado os excessos do plebeísmo nazi-fascista e sua força niveladora. Também Schmitt começou a ver como elementos medíocres e indesejáveis se entroncavam no regime e adquiriam cada vez mais poder. Heidegger, ao princípio tão entusiasta, se havia distanciado do regime em pouco tempo. Spengler morreu em 1936, mas os havia criticado desde o início.

Não obstante, havia diferenças de fundo. Spengler, Schmitt e Jünger acreditavam que um Estado forte necessitava de uma técnica poderosa, pois o primado da política podia reconciliar técnica e sociedade, soldando o antagonismo criado pelas lacras da revolução industrial e tecnomaquinista. Eram antimarxistas, antiliberais e antiburgueses, porém não antitecnológicos, somo sim era Heidegger; este se havia retirado ao bosque a ruminar sua reflexão sobre a técnica como obstáculo ao “desocultamento do ser”, que tão magistralmente explicitara muito depois.

Outro aspecto no qual coincidiam Jünger, Schmitt e também Niekisch, era em sua consideração como a Rússia stalinista se alinhava com a tendência tecnológica imperante no mundo. Ao finalizar os trinta, duas nações aparentavam se sobressair como exemplo de uma vontade de poder orientada e subsumida em uma comunidade de trabalhadores, malogrado seus princípios e sistemas políticos diferentes: o Terceiro Reich e a URSS stalinista (em menor medida também a Itália fascista). Porém, obviamente, suas classes dirigentes não eram permeáveis às considerações jüngerianas ou schmittianas, pois a carcaça ideológica não podia admitir atitudes críticas. A Jünger e a Schmitt lhes ocorreu o mesmo: não foram considerados suficientemente nacional-socialistas e começaram a ser criticados e atacados. Schmitt se refugiou na teorização – brilhante, sem dúvida – sobre política internacional.

Quanto a Jünger, sua concepção do “trabalhador” foi rechaçada pelos marxistas, acusando-a de cortina de fumaça para tapar a irredutível oposição entre burguesia e proletariado – quer dizer “fascista” – tanto como pelos nazis, os quais não encontravam nela nem rastros de problemática racial. Em seu exílio interior, Jünger escreveu um de seus romances mais importantes. Nos Penhascos de Mármore; constitui uma reflexão profunda, em chave simbólica, sobre a concentração do poder e o mundo desencadeado pelos “elementais”. Mediante uma prosa hiperbólica e metafórica, denuncia a falácia da união de princípios guerreiros e idealistas quando falta uma metafísica de base. Certamente que essa obra, editada em vésperas da Segunda Guerra Mundial, foi considerada, não sem razão, uma crítica do totalitarismo hitlerista, porém não se esgota ali. O escrito vai mais longe, pois se refere ao mundo moderno onde nenhuma revolução, por mais restauradora que se precise, pode evitar a queda do homem e seus dons de tradição, sabedoria e grandeza.

Jünger sempre foi um cético. Em A Mobilização Total há um parágrafo esclarecedor: “Sem descontinuidade, a abstração e a crueza se acentuam em todas as relações humanas. O fascismo, o comunismo, o americanismo, o sionismo, os movimentos de emancipação de povos de cor, são todos saltos em favor do progresso, até ontem impensáveis. O progresso se desnaturaliza para prosseguir seu próprio movimento elemental, em uma espiral feita de uma dialética artificial”. Contemporaneamente, Schmitt assinalava: “Sob a imensa sugestão de inventos e realizações, sempre novos e surpreendentes, nasce uma religião do progresso técnico, que resolve todos os problemas. A religião da fé nos milagres se converte em seguida em religião dos milagres técnicos. Assim se apresenta o século XX, como século não só da técnica senão da crença religiosa nela”.

Se ambos pensadores acreditavam em uma tentativa de ruptura do ciclo cósmico desencadeado, rapidamente terão perdido suas esperanças. Os próprios desafiantes do fenômeno mundial de homogeneização – cujo motor era a técnica originada no mundo anglo-saxão da revolução industrial – como o nacional-socialismo e o sovietismo, mal podiam levar para a frente esse processo de ruptura quando constituíam parte importante, e em muitos casos a vanguarda, do progresso tecnológico. Não há escapatória possível para o homem atual e o princípio totalitário, frio, cínico e inevitável que Jünger vislumbrou desde suas primeiras obras, e que seguiu desenvolvendo até seu final, será a característica essencial da sociedade mundialista.

O desenlace da Segunda Guerra Mundial, com seu horror desencadeado, liquidou a possibilidade de entronização do tão desejado “homem heroico” e consagrou o “homem econômico” ou “consumista” como arquétipo. Esse evidente triunfo da sociedade fukuyamiana se deveu não só à prodigiosa expansão da economia senão essencialmente, ao auge tecnológico e à democratização da técnica. Isso não implica, não obstante, que o homem seja mais livre; se crê livre enquanto participa de democracias quadrimestrais, habitante do shopping e escravo do televisor e do computador, produtor e consumidor em uma sociedade que realizou o milagre de criar a ânsia do desnecessário; a aparente calma em que vive esconde aspectos ominosos.

A tecnologia despersonalizou totalmente o ser humano, o que se evidencia na macroeconomia virtual, que esconde uma espantosa exploração, desigualdade e miséria, assim como nas guerras humanitárias, eufemismo que subsume a tragédia das guerras interétnicas e pseudo-religiosas, vestimenta da exploração dos recursos naturais por parte das potências mundiais. Desde o FMI até a invasão do Iraque, o “filisteu moderno do progresso” – Spengler dixit – é, sob suas múltiplas manifestações, gênio e fugira.

Em seus últimos tempos, Jünger estava farto. Seu conselho para o rebelde era furtar-se à civilização, à urbe e à técnica, refugiando-se na natureza. O atual silêncio dos jovens – sustentava em O Passo na Floresta – é mais significativo ainda que a arte. À queda do Estado-Nação lhe seguiu “a presença do nada a secas e sem enfeites. Porém desse silêncio podem surgir novas formas”. Sempre o homem vai querer ser diferente, vai querer algo distinto. E, como a calma que precede a tormenta, todo estado de quietude e todo silêncio é enganoso.

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Nova Resistência
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