A Mitologia Científica ameaça a Religião e a Ciência

Neste artigo, Christopher Clemens demonstra que não há desacordo entre sua condição de astrofísico e de religioso, bem como critica o que chama de Mitologia Científica e Triunfalismo Científico.

Por Christopher Clemens
17 de setembro de 2019.

Tradução: Franciele Graebin

Neste artigo, Christopher Clemens demonstra que não há desacordo entre sua condição de astrofísico e de religioso, bem como critica o que chama de Mitologia Científica e Triunfalismo Científico.

Muitas pessoas se chocam ao saber que sou astrofísico e também crente religioso. Isso choca alguns de meus companheiros astrofísicos e até mesmo alguns de meus companheiros católicos. E eu sei que isso choca alguns de meus colegas da faculdade de Chapel Hill. Mas por que isso acontece? Por que é tão surpreendente que alguém cuja profissão escolhida seja o estudo científico do universo também seja uma pessoa de fé? Por que a percepção do conflito? É intrínseco à atividade da ciência que ela esteja em desacordo com a religião? Ou isso está enraizado em atitudes culturais? Vamos começar observando certos aspectos da cultura mais ampla e da cultura da ciência em si.

Um dos defeitos da cultura contemporânea é a indevida e insalubre reverência que prestamos aos cientistas. O público imagina que os cientistas sejam muito inteligentes para que se possa discordar deles, muito objetivos para serem influenciados pela emoção ou por preconceitos, e peritos em cada assunto sobre o qual escolham falar. Nenhuma dessas afirmações é verdadeira, é claro, e a aceitação inquestionável dessas noções traz grande prejuízo. Quando o físico Stephen Hawking disse que suas teorias mostram que o universo não tem causa, mas simplesmente “é”, ou quando o biólogo Richard Dawkins ralha contra a religião como um “vírus” que deveria ser erradicado, se dá muito peso a suas palavras. Eles são as grandes mentes de nosso tempo, nossa cultura supõe, e, portanto, não somos inteligentes o suficiente até mesmo para discordar.

Na verdade, os cientistas não são nada além de autoridades em certos assuntos filosóficos, e se desviam para muito longe de seu próprio método científico quando fazem este tipo de pronunciamento. A questão do porquê de suas palavras carregarem tanto peso é interessante e merece ser estudada, mas aqui eu quero explorar o que está por trás de alguns de seus pronunciamentos antirreligiosos. O que eu espero que fique claro é que enquanto cientistas podem ser muito bons em seus trabalhos, seu pensamento sobre o assunto religião não é sempre objetivo e lúcido.

Para começar, eu preciso apresentar um conceito que soa como um oxímoro: “Mitologia Científica”. A grande maioria de cientistas agnósticos ou ateus criticam os cristãos por suas “superstições”, mas suas próprias visões do mundo são frequentemente construídas sobre um tipo de mitologia, com os próprios cientistas sendo os heróis mitológicos. O inimigo (ou, mais romanticamente, o “dragão”) em seus mitos é qualquer obstáculo que impeça a livre investigação e o avanço do conhecimento. Em seus termos, o inimigo é o “dogma”, e eles não terão nenhum. Estes mesmos cientistas não veem que considerar o avanço do conhecimento ou da investigação livre como o bem supremo é em si um tipo de dogma; e isso nos deveria ajudar a perceber que os cientistas não são sempre perfeitos em sua lógica.

Em qualquer acontecimento, uma história típica em Mitologia Científica tem como seu herói uma pessoa com uma ideia nova, e a história funciona melhor se a ideia puder ser descrita como “herética” – um adjetivo que muitos cientistas usam para conferir honra. No decorrer da história, o herói encontra um vilão “dogmático”, preferencialmente um que seja imensamente poderoso, e que seja frequentemente derrotado em corpo e espírito, mas nunca em mente; no clímax da história ele pode murmurar sob sua respiração, “e pur si muove” (“e, no entanto, ela se move”), ou alguma outra frase para nos dizer que ele não desistiu de sua ideia. A moral é sempre a mesma: hoje nós sabemos que a ideia “herética” é correta, e que podemos escarnecer do vilão dogmático que era poderoso, mas errado, e honrar o herói do pensamento livre que era fraco, mas estava certo.

Muitos cientistas são devotados a este tipo de mitologia a tal ponto que isso deturpa sua visão da história, afeta seu trabalho científico adversamente, e até mesmo compromete a honestidade. Estas são acusações sérias, as mais sérias que se pode fazer contra um cientista, mas eu as baseio em experiência íntima. Deixe-me contar uma história que ilustra o que estou dizendo.

Quando eu era aluno da pós-graduação da Universidade do Texas, muitos dos professores lá ensinavam um mito sobre a Nebulosa do Caranguejo e a Supernova de 1054. A Nebulosa do Caranguejo é uma nuvem fina de gás e poeira visível nos céus do norte que os astrônomos acreditam ser remanescente da explosão de uma estrela chamada de supernova. Baseados na distância da nebulosa e o ritmo em que o material da nebulosa se expande, podemos calcular o ano (1054 d.C.) que a supernova teria aparecido no céu e quão brilhante ela teria sido. Como costuma acontecer, naquele ano, astrônomos chineses e japoneses registraram a presença de uma nova estrela, brilhante o suficiente para ser vista até mesmo durante o dia, que é o que esperaríamos. Contudo, não há registro que o evento tenha sido visto na Europa.

Desta falta de evidência registrada cresceu o mito ensinado por muitos dos professores de astronomia da UT (que rastreei até pelo menos as Lições de Física de Feynman). A supernova de 1054, eles ensinaram, não foi registrada na Europa porque os europeus estavam nas garras da Idade das Trevas, e a poderosa e dogmática Igreja Católica compelia a visão de Aristóteles de que as estrelas eram imutáveis. Esta Igreja era tão eficiente em suprimir as observações que nenhuma sobreviveu em toda a Europa.

Essa história tem todos os elementos básicos da Mitologia Científica ampliados muitas vezes. A ideia supostamente herética, que uma nova estrela poderia aparecer, era verificável por qualquer um que tivesse olhos para ver. O vilão dogmático era tão poderoso que seria capaz de convencer as pobres massas ignorantes de um continente inteiro que elas não poderiam acreditar no que seus olhos vissem. De fato, uma Idade das Trevas! Graças a Newton nós vivemos em tempos melhores!

Há apenas um problema com essa história: ela é evidentemente ridícula. Qualquer um que consiga ler os Evangelhos terá uma primeira impressão de que deve haver algo muito errado com ela: “Perguntaram eles: “Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo” (Mateus, 2:2). É difícil conciliar uma posição dogmática de que os céus são imutáveis, com uma recém-surgida Estrela de Belém do evangelho de Mateus. Ou deveríamos acreditar que Aristóteles mantinha uma posição mais alta na mente medieval do que os evangelhos? Bem, isso realmente não importa, porque qualquer um que conheça a história ocidental, esse tópico cada vez mais esotérico e impopular, verá um problema maior. As ideias de Aristóteles eram quase completamente desconhecidas na Europa Latina em 1054. Somente no século XIII, São Tomás de Aquino e outros pensadores escolásticos tentaram adaptar o pensamento aristotélico pensado para as fundações da teologia cristã, e isso foi recebido com muita suspeita a princípio.

Para continuar a história, perto do fim de meus estudos de pós-graduação na UT, eu passei muito tempo trabalhando na biblioteca, e deparei-me com um livro – acredito que se chame “The Historical Supernovae” – e li um relato da supernova de 1006. Esta era mais brilhante do que a supernova de 1054 e um pouco mais ao sul, e também foi registrada na China e no Japão, e… nos registros de um monastério europeu. Neste ponto, eu tinha visto o suficiente. Copiei a página do livro e trouxe a um dos nossos almoços de grupo semanais. Ao fim da reunião, mostrei-o a um professor que eu ouvi ensinar a versão “mitológica”. Ele era um homem cuja integridade científica eu respeitava. Disse a ele que ele e muitos dos professores estavam ensinando um erro nas aulas de astronomia introdutória. Expliquei tudo o que relatei acima, terminando com um enfático floreio: “E assim, a menos que você tenha uma teoria convincente de que alguma mudança dogmática tenha ocorrido nos 48 anos entre 1006 e 1054, você provavelmente deveria mudar o que ensina sobre a supernova de 1054”. O que você supõe que ele disse? Sua única frase de resposta foi “eu vou continuar ensinando isso do jeito que sempre ensinei”.

Aparentemente, ele valorizava mais o seu mito do que a verdade. E ele não é o único. Encontrei muitas referências interessantes para o mito da supernova de 1054. A mais interessante é de uma publicação de 1998 da revista “Natural History” – escrita pelo diretor do Planetário Hayden (ninguém menos do que Neil deGrasse Tyson) – em um artigo, ironicamente, sobre a importância de checar a evidência antes de acreditar em algo:

Em investigações do mundo natural, a única coisa pior do que um crente cego é um negador que vê. Em 1054 d.C, uma estrela da constelação Taurus aumentou abruptamente seu brilho por um fator de um milhão. Astrônomos chineses escreveram sobre ela. Astrônomos do Oriente Médio escreveram sobre ela. Americanos nativos no que é hoje o sudoeste dos Estados Unidos fizeram gravuras rupestres dela. A estrela tornou-se brilhante o suficiente para ser vista à luz do dia por semanas, e continuou visível no céu da noite por meses. Ainda assim não temos registro de ninguém em toda a Europa que tenha documentado o evento.

A explicação de Tyson: “[Mas] Aristóteles tinha dito que as estrelas não mudam. A Igreja, com sua autoridade sem igual, promulgou a ideia. As pessoas a aceitaram, acreditaram nela: uma ilusão coletiva que era mais forte que seus próprios poderes de observação.” Mais adiante, no mesmo artigo, referindo-se a alguns dos equívocos comumente aceitos sobre astronomia, Tyson lamentou, “Poder-se-ia pensar que em nossa cultura moderna e iluminada, as pessoas seriam imunes a acreditar em falsidades que são facilmente testáveis. Mas não estamos.”

O que se pode dizer, a não ser “que verdadeiro?” Você só tem uma chance de adivinhar aonde Neil deGrasse Tyson conduziu seus estudos de pós-graduação… Na Universidade do Texas. Assim a Mitologia Científica passa para a próxima geração, exceto, com Tyson, que o tamanho do fórum é bem maior. Em uma ironia final, encontrei um artigo de 1999 que afirma ter encontrado evidências de que a supernova de 1054 na verdade foi relatada em registros europeus. Mas mesmo esse artigo não poderia abrir mão da versão mitológica tão facilmente. Ele termina observando que europeus nunca relataram ver a supernova de manhã, como os asiáticos, e então especula que a igreja romana pode ter suprimido apenas as observações matutinas. Certo… Ou talvez eles apenas dormissem mais tarde na Europa?

Há muitos outros exemplos de Mitologia Científica que poderiam ser citados. Muitos deles têm a ver com o caso de Galileu, que envolveu real abuso de autoridade e verdadeira injustiça, embora não tão nitidamente como nas versões mitológicas.

Para ver quão distorcida a história de Galileu se tornou, considere o seguinte fato que muitos historiadores e cientistas se esquecem de mencionar: a evidência que Galileu apresentou para a moção da Terra em seu Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo que tinha a ver com marés oceânicas e está completamente errado. Não sua conclusão, lembre-se – a Terra se move – mas a evidência que ele apresentou. Então, seus críticos na Igreja não estavam errados em insistir em melhores provas antes de seguir seu conselho de reinterpretar as Escrituras à luz da teoria heliocêntrica.

A Mitologia Científica distorce injustamente a história, mas é frequentemente inocente e bastante juvenil. Às vezes, contudo, ela está ligada a algo mais pernicioso, a saber, a ideia de que a ciência e a cristandade estão em oposição fundamental. Isso geralmente toma a forma do que se pode chamar “Triunfalismo Científico”, em que a ciência desloca completamente a teologia, a filosofia, e tudo o mais como sendo o único árbitro para entender nossa existência.

O Triunfalismo Científico é prejudicial tanto à ciência quanto à cristandade, e é tão cheio de erros sutis que eu tenho certeza que não os descobri por completo. Então, deixe-me prosseguir novamente com exemplos. Tomo de empréstimo o primeiro exemplo do falecido Stephen Hawking, que era Cadeira Lucasian de Matemática na Universidade de Cambridge, a própria cadeira de Newton. Em um artigo de 2002 do simpósio de seu 60º aniversário, Hawking descreveu a situação na cosmologia teórica no início de sua carreira. A grande questão em cosmologia naquela época (início dos anos 1960) era se o universo tinha um início temporal, ou seja, um primeiro momento de tempo. Muitos cientistas se opuseram instintivamente a essa ideia, porque sentiram que um primeiro momento poderia ser visto como um “ponto de criação”. Poderia até mesmo ser visto como um lugar onde a ciência se quebrou e poder-se-ia apelar à mão de Deus para estabelecer as “condições iniciais” do universo.

O preconceito amplamente difundido contra a ideia de que o universo teve um começo surgiu das filosofias materialistas do século XIX, e por volta de 1917 teve tanta influência que o próprio Einstein afligiu-se com isso. Quando Einstein melhorou a teoria da gravidade de Newton e usou sua nova teoria para construir as equações gravitacionais que governam o universo, ele descobriu que não havia “solução estática”, isto é, as equações sugeriram que um universo dominado pela gravidade poderia tanto se expandir quanto se contrair. Esta ideia era tão filosoficamente “repugnante” (nas palavras dele) que ele adicionou uma constante, ou “fator de fudge”, se você preferir, as equações para equilibrá-las. Em efeito, ele forçou as equações a descreverem um universo eterno. Ele mais tarde chamou isso de seu “maior erro”. A consequência de seu erro foi que ele não conseguiu prever a expansão cósmica que Edwin Hubble mediria em 1929.

Por acaso, havia um herói menos dogmático nesta história, que levou a sério a possibilidade sugerida pelas equações, que o universo poderia estar se expandindo. Você sabe quem era ele? Sua história está tão fora do padrão da Mitologia Científica que você raramente ouve sobre tal, ou sequer o seu nome. Ele era o físico teórico belga e padre católico Georges Lemaitre. Lemaitre usou as equações de Einstein para construir a teoria que, mais tarde, se tornou conhecida como teoria do Big Bang, e para prever a expansão do universo dois anos antes de Hubble a medir. Aqui está o que Pe. Lemaitre tinha a dizer sobre ciência e religião em sua vida: “Havia duas maneiras de chegar à verdade. Eu decidi seguir as duas.” Ele também disse,

Nada em minha vida profissional, nada do que eu aprendi em meus estudos tanto de ciência e religião jamais me fez mudar essa opinião. Eu não tenho conflito para reconciliar. A ciência não abalou minha fé na religião e a religião nunca me fez questionar as conclusões que eu alcancei por métodos científicos.

Para continuar a história de Lemaitre, a resposta inicial de alguns a sua teoria do universo em expansão com uma idade finita foi a rejeição e até o escárnio. Fred Hoyle, um astrônomo de Cambridge de firmes convicções ateias, aplicou o nome “Big Bang” à teoria como chacota. Hoyle odiou a ideia de um universo com um começo, até mesmo após a descoberta de Hubble de que o universo está se expandindo. Ele não acreditou que a questão estivesse resolvida, mas propôs que, conforme o universo se expandisse, nova matéria estaria constantemente aparecendo para preencher o vazio, para que o Universo ainda pudesse ser eterno. Hoyle ficou mais feliz com a geração espontânea e não observada de nova matéria (que violava o princípio da conservação da energia) do que com um início cósmico.

Felizmente, uma das grandes características da investigação científica é que ela se apoia sobre observações do universo em si para corrigir quaisquer preconceitos que teóricos possam ter. Isso é o que aconteceu no caso da teoria do “Big Bang”. Em 1965, quando a radiação da “bola de fogo primordial” da teoria de Lemaitre foi observada pelos engenheiros da Bell Labs, Arno Penzias e Robert Wilson, mesmo os céticos obstinados foram convencidos, e agora o Big Bang é o modelo padrão que astrônomos e físicos usam para pensar no universo. Quase todos eles concordam que houve algum tipo de começo muito diferente das condições que vemos agora. Felizmente, Pe. Lemaitre está agora começando a receber uma honra maior dos cientistas por suas contribuições. Em 2018, os membros da União Internacional Astronômica votaram em maioria esmagadora para recomendar que a famosa “Lei Hubble” que descreve a expansão do universo deveria de agora em diante se chamar Lei Hubble-Lemaitre. Esta é outra coisa maravilhosa sobre a ciência que deveria nos dar esperança: no fim a verdade tende a vencer sobre o mito e o preconceito.

Meu segundo exemplo de Triunfalismo Científico são as visões radicalmente reducionistas da evolução do tipo promovida por Richard Dawkins e outros. A evolução por seleção natural é uma teoria elegante, porém incompleta, e uma teoria sobre a qual eu gosto muito de pensar. Como teoria científica, ela não é mais problemática para a religião do que o estudo do desenvolvimento fetal. Se eu digo aos meus filhos em um momento que eles foram feitos por Deus e no próximo momento explico como eles cresceram no útero de sua mãe de uma única célula por meio de um conjunto de reações químicas magnificamente orquestradas, eu não estou cometendo quaisquer erros teológicos ou científicos.

Como uma vez expus a uma plateia cristã, “Senhoras e senhores, nenhuma lei da física foi quebrada na criação deste ser humano que você vê aqui na sua frente.” A reprodução me parece uma maneira econômica de criar. Ela ilustra um princípio geral da teologia Católica, que foi citada como segue pelo grande teólogo jesuíta Francisco Suarez (1548-1617): “Deus não interfere diretamente com a ordem natural, onde causas secundárias são suficientes para o efeito pretendido.” É claro, o desenvolvimento fetal não é apenas econômico, ele é também admirável, maravilhoso, e, se você já tentou construir qualquer coisa remotamente complicada, inspirador.

Antes de aplicar a mesma lógica à evolução, é importante ser claro quanto ao significado da palavra. “Evoluir”, no sentido literal da palavra, é “desdobrar”. Se o desdobramento do primeiro homem e da primeira mulher foi por meio da seleção natural agindo nas bem reguladas interações naturais da matéria, então o que há nisso que ameaça a nossa fé? Ao dizer isso, vou sair em um ramo teológico? Bem, ouça o que o grande Santo Agostinho escreveu mais de dezesseis séculos atrás em seu trabalho Interpretação literal do Gênesis:

Mas do início das eras, quando o dia foi criado, se diz que o mundo foi formado, e em seus elementos ao mesmo tempo foram colocadas criaturas que iriam depois brotar com a passagem do tempo, plantas e animais, cada um de acordo com seu tipo.

… Em todas essas coisas, seres já criados receberam em seu próprio tempo sua maneira de ser e agir, que se desenvolveram em formas e naturezas visíveis a partir das razões ocultas e invisíveis que estão latentes na criação como causas.

Essa é uma antecipação da evolução tão boa quanto se poderia imaginar. E Santo Agostinho a propôs por razões teológicas. Então, por que a evolução é considerada tão controversa e problemática, e por que até mesmo alguns católicos sentem um buraco no estômago quando algum biólogo eminente ensina e defende a teoria? Parte da razão é que alguns desses biólogos são como os astrônomos descritos acima. Alguns deles estão interessados não apenas em nos ensinar sobre a evolução, mas também em nos dizer o que ela significa. Sua versão materialista e triunfalista do que ela significa. O que geralmente se traduz como “Deus está finalmente morto”.

Por exemplo, Jacques Monod, biólogo molecular e laureado Nobel em medicina, argumentou em seu livro “Chance and Necessity” que por termos surgido de um processo que envolve eventos aleatórios, não podemos ser o resultado de nenhuma previsão, nem podemos ser o preenchimento de nenhum propósito, divino ou não. “O destino”, ele disse, “é escrito simultaneamente com o evento, não antes dele.” Richard Dawkins, o mais eficiente popularizador da teoria evolucionária, é mais franco: “Todas as aparências ao contrário, o único relojoeiro na natureza são as forças cegas da física… A seleção natural não tem um propósito em mente, ela não tem mente e nem olho da mente. Ela não tem a faculdade de ver, nem previsão, nem visão de qualquer modo.” Juntamente com sua apresentação da teoria evolucionária, ambos destes ateus apresentam, como uma conclusão lógica da teoria, que ela não pode ser o resultado de um projeto.

Minha primeira resposta a isso é que é uma falácia lógica. A presença de aleatoriedade em um processo pode tanto ser evidência de que existe um projeto quanto de que não existe. Nos anos recentes, todo um novo campo de física computacional que conta com os mesmo princípios que encontramos na teoria evolucionária emergiu. Neste novo campo, os programadores constroem “algoritmos genéticos”, que mesclam e aleatoriamente alteram soluções para equações complexas; e então eles usam esses algoritmos para explorar as propriedades dos sistemas físicos. Acontece que essa é a maneira mais eficiente de explorar soluções para alguns problemas complicados, e ainda depende da aleatoriedade e da seleção com base na aptidão. Se encontrássemos um computador executando um desses algoritmos, não seríamos capazes de discernir seu propósito simplesmente observando-o em operação, mas nos enganaríamos se supuséssemos que por seu uso de mutação aleatória ele não tivesse propósito ou projeto.

Para os mais poéticos, uma analogia diferente: assim como poeira polvilhada aleatoriamente em uma superfície pode revelar as impressões deixadas por uma mão, a exploração aleatória de formas físicas revela as criaturas latentes deixadas pelo projeto de Deus nas muitas potencialidades da matéria. Eu não finjo estar provando que isso é verdade, estou apenas mostrando que a aleatoriedade e a seleção por aptidão, intrínsecas à teoria evolucionária, não são evidências prima facie contra Deus, não importa o que alguns biólogos bem conhecidos possam dizer.

Eu também apontaria um paradoxo curioso. No intervalo da história entre Isaac Newton e Werner Heisenberg, materialistas nos disseram que Deus estava morto porque as leis da física eram determinísticas. Uma vez que as condições iniciais foram fixadas, o universo se desenvolveu sem uma chance de livre arbítrio. Na melhor das hipóteses, nós poderíamos ter o Deísmo, em que Deus encerra as coisas e depois se senta para assistir. Mas isso não seria uma mostra muito interessante já que o fim foi fixado no início. Agora nós sabemos melhor, sabemos que todas as interações na natureza estão impregnadas de aleatoriedade intrínseca, incluindo as interações de seres como nós. E o que os materialistas nos dizem que isso significa?… Que Deus está morto!

Um dos problemas com o Triunfalismo Científico, a noção de que a ciência deslocou todas as outras maneiras de chegar à verdade, é que há muitas questões às quais ela não pode fornecer respostas, incluindo a maioria das questões importantes da vida e como deveríamos viver nossas vidas. A ciência moderna, como a conhecemos e praticamos, surge no início do período moderno dentro de uma cultura ocidental cristã. Ela fez muito bem para o florescimento humano. Mas em um ocidente crescentemente secularizado, a ciência como uma metodologia para resolver problemas está em constante perigo de soltar-se de suas amarras religiosas e espirituais. Quando quer que isso aconteça, o resultado será desastroso. Em ética e moralidade a ciência não pode se sustentar. Há duas coisas em particular que ela precisa emprestar de outro lugar, e elas são “compaixão” e “esperança”. Sobre a compaixão, uma maneira de colocar o problema é: “compaixão pelos fracos não é um princípio da ciência”.

Quanto mais você pensa a respeito, mais assustador isso se torna. Para ser justo, todos os cientistas ateus que eu conheci que diziam viver somente pela ciência, na verdade tinham muita compaixão pelos fracos. Se isso surgiu da “lei escrita em seus corações” por Deus (Romanos 2;14-5) ou de respirar o que resta do componente cada vez mais raro da atmosfera da nossa cultura, eu não posso dizer. Mas esta compaixão certamente não era produto de seu materialismo científico. Eu sempre fiquei simultaneamente intrigado e grato pela compaixão dos ateus, mas eu nunca investiguei muito profundamente sobre isso, por medo de que pudesse desencadear o reconhecimento do que acabei de lhes contar: “a compaixão pelos fracos não é um princípio da ciência.”

De fato, a compaixão pelos fracos é a virtude que a ciência mais facilmente esquece. O flerte com a eugenia no último século foi uma tentativa de melhorar a raça humana eliminando os chamados fracos. Nos Estados Unidos isso resultou em esterilizações forçadas e na Europa milhões morreram. No futuro, quando nós tivermos construído mapas genéticos claros o suficiente para escolher precisamente entre os fortes e os fracos, quantos milhões morrerão? A maquinaria já está em seu lugar, e a nossa cultura já declarou sua boa vontade em cooperar em tal “projeto de melhoramento” assentindo o aborto de milhões de crianças.

Além da “compaixão pelos fracos”, a ciência não tem o caminho para outra importante virtude, e essa virtude é a esperança. A partir da observação, nós sabemos não apenas que cada um de nós morrerá, mas que num futuro distante nosso planeta terá o mesmo destino. Mesmo que não haja a colisão catastrófica de um asteroide que aniquile com toda a vida antes disso, em cinco bilhões de anos mais ou menos o sol vai se tornar uma estrela gigante e vermelha, ferver até evaporar os oceanos da Terra e acabar com a atmosfera e deixar uma pedra sem vida. Tudo o que nós já criamos ou criaremos estará perdido para sempre. Mesmo que possamos nos mudar para outro lugar, a crescente expansão do universo terminará por significar que a energia é muito diluída para sustentar a vida. A ciência não nos dá razão para ter esperança face aos medos existenciais.

A perda de esperança tornou-se um problema sério no mundo secular. Qual é a causa principal de mortes violentas ao redor do mundo? É a guerra, o homicídio? Nenhum deles. De acordo com a World Health Organization, a principal causa de mortes violentas é o suicídio, que é aproximadamente duas vezes mais comum que o homicídio e sete vezes mais comum que morte por conflitos violentos. De muitas maneiras nós vivemos nossa própria Idade das Trevas, uma era de desespero. Nunca tantos, com tanto, foram tão infelizes. A ciência pode nos mostrar como viver mais tempo, mas não pode nos mostrar como nós deveríamos viver ou até mesmo se deveríamos viver.

A ciência em si é uma grande bem e um grande presente. Ela não é e nunca foi uma inimiga da religião. O que é prejudicial à religião, e não apenas à religião e à ciência em si, é o que chamei de Mitologia Científica e Triunfalismo Científico. Esses são fenômenos culturais que não provém das descobertas da ciência, mas da vaidade de alguns cientistas que são incapazes de colocar a ciência na perspectiva adequada.

NOTA EDITORIAL: Este artigo é parte de uma colaboração com a Sociedade de Católicos Cientistas.

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