“Pois é um fato que toda a vida de um ser humano é uma luta e todo ser humano é simbolicamente um combatente. O amigo, o inimigo e os conceitos do combate recebem o seu verdadeiro significado precisamente porque se referem à possibilidade real de morte física. A guerra se segue da inimizade. A guerra é a negação existencial do inimigo”. Estas são as famosas palavras de Carl Schmitt em um de seus clássicos essenciais, “O Conceito do Político”. Já examinamos a distinção amigo-inimigo de Schmitt e sua crítica ao liberalismo dentro das páginas desse famoso texto, mas agora nos voltamos para uma compreensão mais completa da natureza humana dentro desse trabalho de profundo discernimento, confusão e zombaria.
Como mencionado na primeira parte, Schmitt vê o homem como um animal político, significando que ele é um animal social que busca comunidade e se entende em contraste dialético com o Outro. O impulso do homem para o conflito, a negação do inimigo, é sobre a sua vontade de sobreviver. Schmitt, influenciado por Santo Agostinho, foi um voluntarista político. Ou seja, a vida ou a morte da comunidade estava baseada na sua vontade de sacrificar, de lutar, de até morrer e de matar. “Conceitos recebem o seu verdadeiro significado precisamente porque se referem à possibilidade real de morte física”. Para Schmitt, o conflito é essencial à natureza e à compreensão de nós mesmos, pois sem o confronto – a possibilidade muito real de confronto mortal – nós não somos nada (somos niilistas).
Isto se conecta à crítica de Schmitt ao liberalismo, que examinamos na segunda parte. Parte da fachada do liberalismo é que ele retrata a paz universal, afirma ser racional, procura não ferir, mas na realidade o liberalismo precisa erradicar toda oposição para alcançar seu objetivo. Para a paz universal todos devem concordar em cumprir as mesmas leis ou autoridade governante, eliminando assim todas as outras formas de lei e autoridades soberanas que surgiram ao longo de milhares de anos. A pretensão do liberalismo à racionalidade é um estratagema linguístico e sofístico para se apresentar como a alternativa moral e racionalmente superior aos seus concorrentes. E para alcançar o não dano, todos devem concordar em jogar pelas mesmas regras que efetivamente neutralizam todas as diferenças. Como resultado, a homogeneização é o que se segue. Os liberais falam de “diversidade”, o que eles realmente buscam é a homogeneização. Os liberais falam de paz universal, no que eles estão realmente engajados é no conflito por qualquer outro nome. A natureza humana está baseada no conflito porque o homem é uma criatura caída e pecadora, lutando para sobreviver num mundo duro, e constantemente ameaçado por outras tribos (comunidades) e pelo ambiente em que se encontra. Sem a luta, o homem aceita a morte. Assim, toda luta é mortal. Toda luta é inevitável.
A afirmação mais pertinente da concepção que Schmitt faz da natureza humana, porém, é como a própria natureza humana é definida pelo inimigo (o Outro). Para Schmitt, o agon pode ser uma metafísica fundacional para a vida, mas os humanos só estão existencialmente conscientes de si mesmos dentro do contexto do Outro. “Nós” vs. “Eles”. “Amigo vs. Inimigo.” “Alemão vs. Inglês.” “Católico vs. Muçulmano.” E assim por diante. O oposto é o que dá um entendimento e sentido à vida. Sem o Outro eu não entendo completamente quem sou. Pois é através do Outro que eu conheço mais completamente quem, e o que, eu sou (em relação ao Outro que não é eu).
O humano de Schmitt enquadra-se na tradição do existencialismo, que se estende de volta ao Cristianismo e avança através do Romantismo alemão. Parte do esforço humano é compreender-se a si mesmo. Quem sou eu? O que eu estou fazendo? Para onde estou indo?
A essência do existencialismo comunitário de Schmitt é o resultado lógico da sua herança hegeliana (por exemplo, o conhecimento de mim mesmo através do Outro é profunda e essencialmente dialético). Para Hegel, na Filosofia do Direito, a síntese do conflito produz o abstrato universal da ética que depois se torna particularizado e concretizado na vida comunitária (ou nacional). O vínculo ético com os deveres da cidadania é a manifestação concreta da ética. Assim, a ética é, antes de mais nada, distribuída aos meus concidadãos, acima de todas as outras pessoas.
Este é o entendimento mais imediato do homem em Schmitt. Ao ser um animal social e comunitário, o homem é definido e compreendido e compreende-se a si próprio em contraste com o Outro. Assim como há belo e feio, bom e mau, e assim por diante, também o homem só começa a compreender a si mesmo através de uma ontologia de opostos. Essa distinção amigo-inimigo, necessária para que o ser humano compreenda a si mesmo, significa também que a natureza do ser humano é predicada no conflito e na dialética.
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Além disso, Schmitt estende a sua análise da política à própria natureza humana: a velha questão sobre se os seres humanos são maus ou bons. “Pode-se testar todas as teorias de Estado e ideias políticas de acordo com sua antropologia e assim classificá-las quanto a se elas pressupõem consciente ou inconscientemente que o homem seja por natureza mau ou por natureza bom”. Como Schmitt deixa claro, os liberais são aqueles que acreditam que o homem é bom (ou pode ser formado em um estado de bondade). Esta antropologia leva a uma universalidade ilimitada, pois o homem, benigno em sua natureza, não deve ser restringido em suas ações porque o homem pode ser confiado em sua bondade. A visão de que o homem é bom leva-o pelo caminho do niilismo atomístico. Nega a relação homem-Estado e, portanto, o homem não tem nada maior pelo que viver do que por si mesmo.
Como tal, o homem acaba por ser incapaz de se comprometer com o sacrifício, porque só se preocupa (ama) consigo mesmo e com mais ninguém: nem com o próximo, nem com os seus compatriotas, nem com a sua comunidade, nem com a sua pátria. Qualquer sacrifício de si mesmo é um dano imposto a si mesmo. E qualquer dano desse tipo é mau.
O inverso é encontrado em teorias políticas autoritárias em que o homem é visto como mau ou visto com tremenda desconfiança e, portanto, precisa de limitações impostas a ele para não prejudicar a si mesmo e aos outros. Essas limitações e leis ajudam a governar ou orientar o homem de modo a não ser mau nas suas ações que ameaçam a comunidade ordenada, tanto quanto as suas ações más também ameaçam a si mesmo. Embora autoritária, a visão de que o homem é mau também conduz a perspectivas antipositivistas no que diz respeito à teoria do Estado. O Estado não pode transformar a natureza humana ou direcionar os humanos para o que de outra forma o Estado poderia decidir para nós. O autoritarismo de ver o homem como o mau é na verdade bastante benigno – o homem precisa de estrutura e governo, isto é verdade, mas o homem permanece perpetuamente cético em relação à grande engenharia social e a ideologias políticas positivistas que de fato concedem muito mais poder ao Estado para alcançar o sonho dos seus fins positivistas ou utópicos. A visão autoritária não se impõe ao homem e lhe diz para fazer X, Y ou Z. É o estabelecimento de leis e de estruturas de orientação que se imporá ao homem se ele violar as restrições que são estabelecidas para manter o bem público e a ordem comum que é necessária para que a sociedade floresça.
Isto é um pouco contra intuitivo para os liberais que foram alimentados com propaganda liberal. Se a natureza do homem é maleável ou formável, então o que impede o Estado, ou qualquer organização, de engendrar socialmente o “homem perfeito” e, como resultado, a “sociedade perfeita”? Se o homem tem uma natureza definitiva, nenhum Estado ou organização, ou outros homens, pode mudar essa natureza. Se o homem não tem natureza definitiva, então tudo é possível, e se tudo é possível – e a natureza do homem é realmente má mesmo que os liberais estejam cegos para esta realidade – então o pior resultado possível será provavelmente o caminho em que nos lançamos.
O resultado final da visão de que o homem é bom, observa Schmitt, é a completa despolitização do homem, o seu desenraizamento da comunidade e o seu ser sem rumo na vida. O resultado da ideia da bondade humana universal é o fim da pluralidade, o fim do “ser nacional” e o fim do próprio conflito. Os homens se afundam no abismo do hedonismo e do niilismo, porque não tem nada com que lutar ou pelo que lutar. Eles vivem apenas para si mesmos e veem todos os outros como eles mesmos (a moi commun de Rousseau). Para Schmitt, num momento de ironia filosófica adequada, o “homem bom” não é sequer um homem ético. Pois a verdadeira manifestação da ética está na cidadania que se define em oposição a não ter comunalidade com pessoas que não compartilham o ser nacional (cidadania) com você. Ao separar todos uns dos outros, o bom homem acaba por se ocupar dos seus próprios assuntos e pouco faz para ajudar o seu próximo ou concidadão de qualquer forma concreta.
Schmitt toma como dado que o homem é mau, ou tem a propensão para o mal. A propensão para o mal é a visão própria de Schmitt, como ele nos diz na nota 33, citando Santo Irineu. Schmitt segue o entendimento católico do homem. O homem é livre em sua racionalidade para se alinhar com o bem (Deus) ou com o mal (negação do bem) em seu estado decaído. Como tal, o homem não é, por natureza, bom ou mau. Mas o homem tem sempre a capacidade de escolher o mal. Assim, quando os filósofos afirmam que o homem é mau, o que eles realmente querem dizer é que o homem tem sempre a capacidade de se tornar mau ou de fazer o mal. É contra isso que devemos estar sempre em guarda.
E porque o homem é fraco, o homem precisa de autoridade. Porque o homem precisa de autoridade e é fraco, ele precisa de uma comunidade para proteção e orientação. A manifestação mais elevada desta comunidade é o Estado-nação.
Por isso: (1) O homem é bom, não precisa de orientação ou estruturas na vida; (2) o homem é mau ou pode sempre escolher o mal, portanto precisa de orientação e estruturas na sua vida para evitar o mal. (1) O homem sem guia vive para nada, exceto para si mesmo; (2) o homem guiado vive para algo mais do que para si mesmo. (1) A ideia de que o homem é bom inevitavelmente provocará a destruição de uma comunidade que se infectou com essa ideia porque a natureza humana é o oposto – está enraizada no conflito e na capacidade de matar e o homem mata; (2) assim, o homem guiado que vive numa comunidade guiada é a comunidade que tem mais probabilidade de sobreviver, o que significa que o indivíduo também sobrevive através da sobrevivência da comunidade.
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Para encerrar com o Conceito do Político de Schmitt, especialmente no que diz respeito à natureza humana, é o seguinte: primeiro, o homem é um animal social e, portanto, comunitário. Segundo, o homem compreende a si mesmo e seus deveres e responsabilidades através do Outro (esta é uma necessidade lógica se o homem é um animal comunitário porque outros homens se associam em suas comunidades e sua comunidade não é a mesma que a comunidade do Outro). Terceiro, o homem tem a propensão para o mal e, portanto, precisa de orientação e estrutura na sua vida. A manifestação mais elevada da comunidade em que o homem se coloca, e se encontra guiado, é a comunidade e as constituições (leis) de um determinado Estado-nação. As manifestações mais imediatas e concretas das nossas vidas, e da natureza humana, desdobram-se dentro destes Estados-nação.
Resumindo os destaques do trabalho clássico de Schmitt sobre teoria política e natureza política do homem, podemos identificar várias análises perspicazes e frias que sustentam a sua visão da política com a qual devemos necessariamente lutar. Primeiro é a sua afirmação de que toda a política é necessariamente dialética: Amigo-Inimigo. A distinção entre amigo e inimigo existe tanto dentro como fora da ordem política. A política é necessariamente tribal. Segundo, é como os humanos entendem a si mesmos através do Outro. Isto é especialmente verdade em assuntos políticos (confrontacionais); “americano contra chinês”, “britânico contra alemão”, “cristão contra muçulmano”, “ateu contra religioso”, etc. Nós realmente nos entendemos em contraste com os não-eu. (Estes dois primeiros pontos são resíduos do hegelianismo de Schmitt.) Terceiro, é como a estrutura de governo é legítima e necessária, dada a tendência do homem para cometer o mal ou se envolver em ações vulgares sem ordem jurídica. Para os céticos quanto a este ponto, ou talvez não querendo aceitar esta afirmação, basta olhar para a natureza dos picos de revolta em ataques violentos e outros crimes em zonas de anarquia, quando a lei e a ordem se dissipam. Quarto, é a sua análise do liberalismo como uma força despolitizadora que suprime a natureza humana e encobre a sua própria busca bélica pela dominação (dentro da distinção entre amigos e inimigos) que estilhaça a vontade de sobrevivência do homem (por exemplo, lutar pela sua sobrevivência e continuação). O liberalismo, tornando os homens suaves e fracos, não fornece nada para reunir as tropas – por assim dizer – quando encontra uma ameaça à sua existência (especialmente ameaças externas). Em outras palavras, o liberalismo não pode enfrentar eficazmente os problemas que as nações e comunidades enfrentam, porque as pessoas se tornaram materialmente obcecadas e avessas ao risco. Quinto, e isto segue da análise de Schmitt sobre o liberalismo, é como o liberalismo é uma força totalizante, homogeneizadora e universal que deve superar os laços de nacionalidade, cultura, história, religião, etc., a fim de se consumar. Portanto, o liberalismo é fundamentalmente incompatível com o pluralismo autêntico, ou seja, com as diferenças e distinções reais entre povos e nações.
Esta é a última parte de uma série.
[…] Paul Krause – Carl Schmitt et la nature humaine (Partie III) […]