“De que modo poderá o Homem moderno superar a sua condição caótica atual? Tal exige o abandono da modernidade e uma reintegração no tempo sagrado. O Homem moderno deve compreender que não existe enquanto mero degrau na marcha arbitrária do progresso, mas que constitui antes uma anomalia inorgânica incapaz de existir plenamente.”
A modernidade, tal como se desenvolveu no Ocidente, caracteriza-se, em larga medida, por uma visão dessacralizada do mundo e do tempo, o que conduz o ser humano à perda de contacto com as dimensões fundamentais da existência, nomeadamente com a estrutura antropológica que, até então, sempre definira o Homem como um ser religioso. Esta rutura não se limita ao plano cultural, nem pode ser reduzida a interpretações meramente psicossociais; pelo contrário, possui uma profundidade ontológica, afetando o próprio modo de ser-no-mundo, para utilizar a expressão heideggeriana, do Homem moderno.
Esta transformação é amplamente documentada e analisada por Mircea Eliade ao longo da sua obra, mas assume particular relevo em O Mito do Eterno Retorno, livro que, sob muitos aspetos, pode ser lido como uma introdução à filosofia da história1. Nele, Eliade expõe a oposição fundamental entre o Homem moderno, que vive num tempo histórico, linear e irreversível, e o Homem das comunidades tradicionais, cuja existência se estrutura em torno de uma experiência sagrada do tempo.
Torna-se, assim, fundamental analisar de que modo numerosas comunidades arcaicas – designação frequentemente utilizada por Eliade – não atribuíram centralidade à história enquanto sucessão linear de acontecimentos. Pelo contrário, manifestaram uma profunda nostalgia pelo retorno periódico ao tempo mítico das origens, a uma Idade do Ouro primordial. Consequentemente, organizaram-se segundo uma conceção cíclica do tempo, na qual os rituais e os mitos permitiam a reatualização constante do momento fundador, restaurando simbolicamente a ordem e o sentido da existência. Esta perspetiva torna-se particularmente evidente no primeiro capítulo da obra mencionada, Arquétipos e Repetição, onde se torna claro que estas comunidades revelavam uma forte inclinação para rejeitar o tempo histórico concreto, chegando mesmo a manifestar hostilidade face a qualquer tentativa de constituir uma história autónoma, isto é, uma história desprovida de regulação arquetípica e sem referência a um momento fundador transcendente, situado fora da própria história.
É precisamente neste ponto que reside o cerne do problema e uma das principais causas do declínio do pensamento ocidental, segundo Eliade. Sem referência a um episódio original, o Homem vê-se privado do acesso a um arquétipo extramundano – algo que pode ser concebido como um plano, uma imagem ou uma forma existente num plano cósmico superior – que lhe permita compreender e ordenar o plano físico segundo um modelo mítico. A perda desta mediação simbólica implica uma transformação radical da experiência do mundo e do tempo, conduzindo a uma existência cada vez mais confinada à imanência histórica.
Desta rutura decorre, segundo o autor romeno, a negação de qualquer via superior por parte do pensamento moderno ocidental. Tal negação torna-se particularmente visível em certas correntes pós-hegelianas, nomeadamente o marxismo e o fascismo, cuja abordagem se centra no Homem histórico, concebido como existindo apenas na medida em que se produz a si próprio no e através dos processos históricos. Contudo, a crítica de Eliade não se limita a um ataque às influências hegelianas; estende-se ao próprio establishment intelectual ocidental, sobretudo ao longo dos últimos dois séculos. Logo no início da obra – na Introdução escrita em Portugal, em 1945 — Eliade observa que a filosofia ocidental se confina quase exclusivamente à sua própria tradição, ignorando, por exemplo, os problemas e soluções elaborados pelo pensamento oriental. Assim, desde os primórdios da filosofia, o pensamento privilegiou o Homem da civilização histórica em detrimento do Homem religioso das comunidades arcaicas.
Mais tarde, em O Sagrado e o Profano, Eliade sustenta que o Homem moderno ocidental experimenta uma espécie de indisposição perante qualquer manifestação do sagrado, deixando de estar sintonizado com o processo de hierofania. Embora reconheça sinais anteriores desta deterioração do pensamento e do processo de dessacralização, Eliade considera que é a modernidade que inflige o golpe decisivo. Consequentemente, um Ocidente que encarna plenamente o elemento profano surge como um fenómeno relativamente recente na história do espírito humano. Com efeito, no capítulo A Dessacralização da Natureza, Eliade sublinha que a secularização total constitui precisamente uma característica nova que veio a definir toda a experiência do Homem não religioso, que passa a habitar apenas um cosmos percecionado como caótico. Este caos emerge precisamente porque, ao adotar exclusivamente uma conceção linear e não cíclica do tempo, associada a noções ilusórias de progresso, o Homem se vê privado tanto da noção de destruição como da sua subsequente recriação periódica, elementos que definem fundamentalmente grande parte da prática ritual.
Que fazer, então? De que modo poderá o Homem moderno superar a sua condição caótica atual? Tal exige o abandono da modernidade e uma reintegração no tempo sagrado. O Homem moderno deve compreender que não existe enquanto mero degrau na marcha arbitrária do progresso, mas que constitui antes uma anomalia inorgânica incapaz de existir plenamente. O impacto do pensamento de Eliade no pós-modernismo é tal que impele o Homem a redescobrir o seu modo originário de ser: a compreender-se enquanto microcosmo2. O existencialismo do Homem enquanto “simplesmente” Homem aguarda a sua consumação no mito arcaico. Tal realiza-se mediante a reintegração do elemento transcendente, através do qual ao Homem é conferido um sentido e um propósito provenientes de um plano superior de existência. O Homem escapa à sua própria condição e ao tempo histórico pela participação nos mitos. Essa participação introdu-lo no illo tempore, o tempo mítico dos deuses, justificando assim a sua existência.
Eliade defende, deste modo, a “reabertura” do Homem ao mundo3. O Homem moderno, tal como se apresenta, encontra-se fechado ao mundo porque rejeitou quaisquer valores metafísicos superiores aos que ele próprio produz. O que se revelou, após a dissipação do incenso oferecido no altar do Progresso, é que o Homem não consegue gerar valor metafísico de forma plenamente autónoma. Existe uma abertura do ser, na qual o Homem arcaico vivia em dois planos: num primeiro, o mundo material, informado pelas suas circunstâncias imediatas; num segundo, o plano religioso, no qual o Homem e o seu mundo recebiam sentido e valor a partir do transcendente. Conhecer o mundo enquanto pleno de significado religioso é saber o que significa ser plenamente humano. Eis o retorno ao microcosmo, a rejeição do profano e a aceitação do sagrado.
Para ilustrar este ponto, consideremos a condição do Homem moderno. Quantas das suas ações são essencialmente profanas? Quantos atos quotidianos são realizados sem qualquer significado ou relevância religiosa? Se a humanidade se realiza plenamente quando está aberta ao sagrado e ao transcendente, então o que é um Homem fechado? O que é o Homem moderno? O Homem moderno não é plenamente humano. Esta é, talvez, uma das conclusões mais significativas a retirar da vida e da obra de Mircea Eliade. Ele oferece uma visão alternativa: uma visão para um Homem pós-moderno, plenamente integrado na humanidade arcaica. Este Homem não proclamará a morte dos deuses, mas o seu regresso.
Notas
- Já na introdução da obra, o próprio Eliade afirma que é este o sentido que pretende conferir ao seu projeto sempre que empreende uma investigação das conceções fundamentais das chamadas comunidades primitivas. Contudo, abstém-se de intitular O Mito do Eterno Retorno com o subtítulo Uma Introdução a uma Filosofia da História, por considerar que tal designação revelaria uma ambição e uma presunção excessivas. ↩︎
- Mircea Eliade, The Sacred and the Profane: The Nature of Religion, New York: 1961, p. 165 ↩︎
- Mircea Eliade, The Sacred and the Profane: The Nature of Religion, New York: 1961, p. 167 ↩︎








