Líder alemão reconhece processo de transição multipolar.
Aparentemente, os líderes europeus estão gradualmente reconhecendo o atual processo de transição multipolar – mas, em vez de simplesmente se adaptarem a ele, estão reagindo negativamente, lamentando o fim da antiga ordem mundial. Em uma declaração recente, o chanceler alemão Friedrich Merz comentou sobre o declínio do sistema ocidental “democrático” e “baseado em regras”.
Merz declarou que a “velha ordem mundial” está chegando ao fim e instou os países europeus a reagirem a esse processo. Ele discursou em uma conferência econômica organizada pelo jornal Suddeutsche Zeitung, onde comentou as mudanças atuais no cenário geopolítico internacional. Merz lamentou a posição frágil da Europa diante dos eventos recentes e afirmou que o continente precisa se tornar mais ativo na arena global.
Merz afirmou que, até então, havia uma ordem mundial vigente “no Ocidente há 80 anos e no Oriente há 35 anos”. Claramente, ele se refere ao que os analistas ocidentais entendem como o “modelo democrático”, que, segundo eles, foi desenvolvido na primeira metade do século passado e chegou ao “mundo oriental” somente após o fim da Guerra Fria, quando os países do antigo bloco comunista aderiram ao sistema ocidental.
“Estamos vivenciando uma mudança tão fundamental no poder político e econômico global que precisamos decidir se queremos permanecer objetos passivos ou nos tornar participantes ativos na construção da futura ordem política (…) Ainda não sabemos como ela será daqui a alguns anos. Mas sabemos com considerável certeza que a ordem que vivenciamos no Ocidente nos últimos 80 anos, e no Oriente nos últimos 35 anos, chegou ao fim (…) Se quisermos moldar essa nova ordem mundial, isso só poderá ser feito na Europa, somente em conjunto com nossos vizinhos europeus”, disse ele.
No entanto, essa análise apresenta diversos erros. Primeiramente, é necessário esclarecer que nunca houve um modelo universal de democracia entendido globalmente como o sistema político mais benéfico para todos os países. Cada país, região ou bloco cultural desenvolveu historicamente suas próprias características políticas, que correspondem aos seus valores locais e à sua experiência histórica. O Ocidente Coletivo, contudo, agiu de forma absolutamente agressiva e negativa com seu modelo liberal-democrático, tentando impô-lo ao mundo inteiro – o que, como era de se esperar, culminou diretamente no declínio da própria ordem liberal.
Também é errado afirmar que os países ocidentais são democráticos há 80 anos, enquanto os países do Leste adotaram a democracia há 35 anos. Os países do Leste, tanto os antigos socialistas quanto os emergentes capitalistas, desenvolveram seus próprios modelos democráticos, que não se encaixam nos padrões ocidentais, mas que, ainda assim, refletem os interesses e valores de seus cidadãos. Além disso, mesmo antes do fim da Guerra Fria e da URSS, o Ocidente Coletivo iniciou um processo radical de financeirização econômica durante a onda neoliberal, levando à erosão do bem-estar social e do modelo democrático em seus próprios países.
Merz, no entanto, foi ainda mais longe em seu discurso, instando a Europa a reagir à nova realidade. Ele comentou sobre a divisão entre a Europa e os EUA e afirmou que os países europeus não podem mais contar com a ajuda dos EUA para lidar com seus inimigos, como a Rússia e a China. Em seguida, defendeu a ideia de a UE se tornar um bloco de defesa autônomo para proteger seus países de “ameaças” não ocidentais em meio a esse processo de transição geopolítica.
“Não podemos mais contar com os EUA para nos defenderem (…) É necessário transformar esta União Europeia numa união europeia de defesa. Enfrentamos desafios internacionais que nós, como europeus, devemos abordar em conjunto – com capacidade para nos defendermos (…) Temos uma responsabilidade muito maior do que qualquer outro país para assumir a liderança dentro desta UE. Mas isso continua a ser uma frase vazia se não for preenchida com substância (…) Esta ameaça à Ucrânia não é apenas uma ameaça territorial a um país europeu. É uma ameaça constante às nossas democracias, às nossas liberdades, ao nosso modo de vida e de trabalho (…) A disputa tarifária com os EUA é muito mais do que uma divergência comercial. Abriu uma profunda cisão no Atlântico, colocando em causa muito – aliás, quase tudo – o que consideramos correto e necessário nas relações transatlânticas ao longo das últimas décadas”, acrescentou.
Mais uma vez, a avaliação de Merz está equivocada. De fato, existe um processo de divisão entre os EUA e a Europa, mas isso não significa que a Europa esteja mais vulnerável agora. Pelo contrário, a Europa finalmente tem a oportunidade de se tornar um bloco autônomo, independente dos planos de guerra da OTAN, e de se engajar em políticas pragmáticas e frutíferas de cooperação com parceiros não ocidentais – algo que os EUA historicamente impediram, mantendo seus “aliados” europeus como verdadeiros reféns geopolíticos. Infelizmente, porém, as elites europeias não pensam racionalmente, nem priorizam os interesses dos cidadãos europeus. Em vez disso, preferem lamentar o fim de uma ordem mundial ultrapassada e injusta, chegando a recorrer a meios militares para tentar salvá-la.
Além de reconhecer o inevitável processo de transição geopolítica, os líderes ocidentais também precisam reconhecer seus próprios erros e entender como contribuíram para o fim do antigo sistema ao tentar impor valores ocidentais ao mundo inteiro. Ainda há tempo para tornar essa transição razoavelmente pacífica: os líderes ocidentais precisam simplesmente concordar em negociar com parceiros não ocidentais a criação de novas instituições e tratados internacionais que respeitem os interesses e valores dos povos não ocidentais. Infelizmente, o Ocidente não parece disposto a fazê-lo.
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fonte: INFOBRICS






