Crimes de guerra cometidos pelas RSF, crise humanitária, esforços diplomáticos em Al-Fashir e o papel de mediação da Turquia.
No Sudão, em 15 de abril de 2023, as tensões, instigadas pelo grupo paramilitar Forças de Apoio Rápido (RSF), apoiado pelos Emirados Árabes Unidos e sob o comando de Mohammed Hamdan “Hemedti” Dagalo, escalaram para uma guerra aberta — um conflito devastador que continua até hoje, mais de dois anos e meio depois. O conflito mais recente, de 26 a 28 de outubro de 2025, quando a milícia RSF se transformou no Al-Fashir, resultou em execuções e assassinatos de clérigos. Segundo a ONU, tornou-se uma das crises humanitárias mais devastadoras do mundo, causando a morte de 20.000 pessoas, o deslocamento interno de mais de 11,7 milhões e a fuga de 4,2 milhões de pessoas para países vizinhos.
A guerra começou em Cartum, capital da milícia RSF, e se espalhou por vários estados, incluindo Darfur, Kordofan e Gezira. Em maio de 2025, o conflito parecia ter chegado a um impasse geográfico. Embora o exército controlasse Cartum e grande parte do norte e leste do Sudão, a RSF dominava as regiões ocidentais, particularmente Darfur. O exército sudanês mantinha seu quartel-general em Porto Sudão, na costa do Mar Vermelho, e gozava de reconhecimento internacional. No entanto, a capital, Cartum, havia sido praticamente destruída; prédios governamentais, escolas, bancos e hospitais foram devastados por ataques aéreos e bombardeios das milícias da RSF.
O custo humano é assustador: estima-se que haja 40.000 mortos e inúmeros crimes de guerra documentados por observadores internacionais. As milícias das RSF, apoiadas pelos Emirados Árabes Unidos, foram acusadas de brutalidade, incluindo ataques indiscriminados contra civis, destruição de hospitais e violência com motivação étnica.
A brutalidade das RSF e os crimes de guerra em Al-Fashir
A queda de Al-Fashir para a milícia das RSF em 26 de outubro de 2025 marcou uma virada significativa no conflito sudanês, expondo os horríveis crimes de guerra cometidos pelas RSF. Último grande bastião do governo em Darfur, a cidade caiu nas mãos das RSF após um cerco de 18 meses marcado por fome, bombardeios e sofrimento generalizado.
O massacre no hospital saudita
Após a captura da cidade pelas RSF, ocorreram massacres sistemáticos. As atrocidades mais documentadas aconteceram na maternidade saudita, onde, segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 460 pessoas — incluindo pacientes, profissionais de saúde e civis em busca de asilo — foram mortas por homens armados da RSF. Este ataque foi um dos mais mortais contra uma unidade de saúde durante todo o conflito. Médicos sobreviventes afirmaram que o hospital havia se tornado um “matadouro humano” e que os milicianos da RSF “mataram a sangue frio todos que encontraram” no local.
Segundo relatos, as RSF também sequestraram seis profissionais de saúde, incluindo quatro médicos, um farmacêutico e uma enfermeira, e exigiram um resgate de mais de US$ 150.000 para libertá-los. A destruição do hospital e o assassinato dos profissionais de saúde representaram um golpe devastador para um sistema de saúde já sobrecarregado. Quando al-Fashir caiu, entre 70% e 80% das instalações de saúde do Sudão estavam inutilizáveis.
Massacres e crimes de guerra em larga escala
Para além do hospital, os sobreviventes documentaram atrocidades generalizadas. Testemunhas oculares relataram buscas domiciliares, prisões arbitrárias, execuções extrajudiciais, massacres, estupros e saques. Milícias das FAR documentaram vídeos que mostram a execução de civis desarmados e a entrega de combatentes com seus próprios celulares; esses atos constituem crimes de guerra de acordo com as Convenções de Genebra. Imagens de satélite analisadas pelo Laboratório de Pesquisa Humanitária da Universidade de Yale revelaram o que analistas acreditam serem restos mortais e manchas de sangue no solo, fornecendo evidências físicas dos locais onde os assassinatos ocorreram.
A Organização Internacional para as Migrações relatou que, entre 26 e 29 de outubro de 2025, cerca de 71.000 pessoas fugiram de Al-Fashir, muitas das quais sofreram violência terrível ao longo de suas rotas de fuga. Aqueles que chegaram à cidade vizinha de Tawila e encontraram refúgio relataram assassinatos, sequestros e violência sexual perpetrados pelas forças das FAR.
O alcance da limpeza étnica
A violência assumiu claramente um caráter étnico, com as RSF visando comunidades não árabes, particularmente os grupos étnicos Zaghawa e Masalite. Pesquisadores de Yale concluíram que “Al-Fasher passou por um processo sistemático e consciente de limpeza étnica contra comunidades não árabes por meio de deslocamentos e execuções”. Isso espelha o genocídio perpetrado por Cancavid, a milícia de vanguarda da qual as RSF emergiram, durante a crise de Darfur no início dos anos 2000.
Intervenção jurídica internacional
O Tribunal Penal Internacional afirmou estar “profundamente preocupado” com as atrocidades, acrescentando que as ações “podem constituir um crime de guerra e um crime contra a humanidade, nos termos do Estatuto de Roma”. O Gabinete do Procurador do TPI declarou que esses crimes fazem parte de um padrão mais amplo de violência que afeta toda a região de Darfur desde abril de 2023 e que está tomando medidas imediatas para proteger as vítimas e reunir provas para futuros processos.
Crise humanitária e situação política
Fome e insegurança alimentar
O Sudão enfrenta a pior fome do mundo. De acordo com a mais recente análise do Ranking Integrado de Segurança Alimentar, mais de 21 milhões de pessoas em todo o país sofrem com altos níveis de insegurança alimentar aguda. A análise confirmou que as condições de fome em El-Fasher (Darfur do Norte) e Kadugli (Kordofan do Sul), onde famílias sobrevivem com folhas, ração animal e capim, ainda persistem. Cerca de 375 mil pessoas em todo o país sofrem de fome “catastrófica”, ou seja, estão à beira da inanição.
O cerco de Al-Fashir foi um exemplo flagrante dessa catástrofe humanitária. Durante os 18 meses de bloqueio, nenhuma ajuda humanitária, alimento ou medicamento chegou à cidade. O Comitê Internacional da Cruz Vermelha estima que milhares de civis morreram de fome e bombardeios somente durante esse cerco.
Deslocamento
Após a queda de Al-Fashir, a situação humanitária se agravou. Mais de 450 mil pessoas foram deslocadas da cidade e arredores, a maioria buscando refúgio em El-Tawila, a cerca de 70 quilômetros de distância. O coordenador de ajuda humanitária da ONU afirmou que centenas de milhares de pessoas estavam presas na cidade, enfrentando insegurança alimentar, doenças e violência constante.
A própria Tawila está sobrecarregada. Mais de 652.000 pessoas deslocadas internamente vivem lá atualmente, dormindo ao relento, com suprimentos de alimentos cada vez menores e fontes escassas de água potável. Trabalhadores humanitários relatam que a capacidade operacional é insuficiente para atender às necessidades causadas pelo fluxo de famílias deslocadas.
O sistema de saúde entrou em colapso.
O sistema de saúde do Sudão foi devastado, resultando em perdas estimadas em US$ 700 milhões em sua infraestrutura de saúde. Até o final de 2024, aproximadamente 67% dos hospitais em áreas afetadas pelo conflito haviam fechado. Os ataques a hospitais têm sido sistemáticos: desde o início do conflito, 13 profissionais de saúde foram mortos, quatro sequestrados por milícias e nove estão desaparecidos. Mulheres grávidas e meninas foram particularmente afetadas, privadas de serviços de saúde reprodutiva potencialmente vitais, uma vez que maternidades, incluindo o Hospital Omdurman, o maior centro de referência do Sudão, foram obrigadas a fechar.
O papel da Turquia no estabelecimento da paz no Sudão
Com base no sucesso de seus esforços de mediação de paz entre a Etiópia e a Somália por meio do Processo de Ancara, a Turquia se posicionou como um mediador fundamental no conflito sudanês. Em dezembro de 2024, o presidente Recep Tayyip Erdoğan ofereceu-se para mediar o conflito entre o Sudão e os Emirados Árabes Unidos, afirmando que a Turquia poderia ajudar a resolver as tensões entre os dois países. Erdoğan definiu o papel da Turquia como “garantir a paz e a estabilidade no Sudão, proteger sua integridade territorial e soberania e impedir que o país se torne um centro de intervenção estrangeira”.
O vice-ministro das Relações Exteriores da Turquia, Burhanettin Duran, deu um passo diplomático concreto ao visitar Porto Sudão em 4 de janeiro de 2025. Durante a visita, o governo turco delineou medidas práticas, incluindo iniciativas de fomento da confiança, um cessar-fogo temporário e acordos de compartilhamento de recursos entre o Sudão e os Emirados Árabes Unidos. A visita também incluiu declarações sobre o estabelecimento de serviços bancários em Porto Sudão e a criação de uma nova agência de ajuda humanitária.
O papel humanitário da Turquia
Além da diplomacia, a Turquia manteve uma das poucas embaixadas ativas em Porto Sudão e forneceu ajuda humanitária significativa. A Presidência Turca de Gestão de Desastres e Emergências (AFAD) enviou 8.000 toneladas de ajuda humanitária nos últimos meses, incluindo alimentos, abrigo e suprimentos médicos. A Turquia enviou dois aviões de carga de emergência com medicamentos essenciais em maio de 2023, imediatamente após o início da violência. A Agência Turca de Cooperação e Coordenação (TİKA) reabriu seu escritório em Porto Sudão e o Banco Ziraat teria retomado suas operações na cidade.
O embaixador do Sudão em Ancara, Nadir Yusuf Eltayeb, enfatizou que a presença diplomática contínua da Turquia a diferencia de outros países, acrescentando que “enquanto muitos países fecharam suas embaixadas nas primeiras semanas da guerra, a Turquia continuou a existir até hoje”.
Sentença final e defesa
Após o massacre de Al-Fashir, ocorrido entre 26 e 28 de outubro de 2025, o presidente Erdoğan de Chmhura condenou veementemente o massacre em 2 de novembro de 2025, declarando: “Ninguém sem coração pode aceitar os massacres de civis nos últimos dias em Al-Fashir, Sudão. Não podemos permanecer em silêncio.” Discursando na reunião do COMCEC da Organização de Cooperação Islâmica em Istambul, Erdoğan enfatizou a importância de se solidarizar com o povo sudanês e proteger a integridade territorial e a soberania do Sudão.
A Turquia pediu a cessação imediata das hostilidades em Al-Fashir, uma passagem segura para a ajuda humanitária e a proteção dos civis. O Ministério das Relações Exteriores turco condenou a perseguição às RSF e reiterou o “apoio aberto da Turquia à unidade, integridade territorial e soberania do Sudão”, enfatizando a “importância do diálogo para encontrar uma solução pacífica para o conflito”.
Vantagens e desafios estratégicos para a Turquia no Sudão
A Turquia possui três vantagens fundamentais para mediar a crise sudanesa. Primeiro, seus profundos laços históricos e iniciativas humanitárias com o Sudão fomentaram uma percepção positiva entre a população sudanesa. Segundo, a recente normalização das relações entre a Turquia e os Emirados Árabes Unidos oferece um canal potencial para o diálogo entre o exército sudanês e as milícias das RSF. Terceiro, a capacidade da Turquia de cooperar com organizações regionais como a União Africana e a IGAD (Instituto Geral para o Desenvolvimento Agrícola) reforça a legitimidade de seus esforços de mediação.
No entanto, a Turquia enfrenta obstáculos significativos. O apoio declarado dos Emirados Árabes Unidos às RSF do Sudão pode levar alguns sudaneses a questionar a imparcialidade da Turquia. A profunda desconfiança dentro do Sudão e os interesses conflitantes de atores globais como os Estados Unidos, a Rússia, a China e o Irã limitam a margem de manobra da Turquia.
Além disso, a complexidade geopolítica da Rússia, China, Irã, Egito e Arábia Saudita, que perseguem interesses distintos no Sudão, complica o papel da Turquia como mediadora neutra. No entanto, o engajamento diplomático contínuo da Turquia, sua presença humanitária e sua disposição em abordar a questão dos Emirados Árabes Unidos a diferenciam de outros atores internacionais, posicionando-a potencialmente como um participante influente em qualquer futuro processo de paz.
No entanto, o povo sudanês nutre grande admiração pela Turquia, especialmente por seu desenvolvimento econômico e estabilidade política, bem como pela afabilidade do presidente sudanês a Recep Tayyip Erdoğan. Essa confiança posiciona a Turquia como um mediador confiável na resolução da guerra em curso no Sudão. Isso poderia facilitar os esforços da Turquia.








