Lumpemproletariado e Marginalidade: Do socialismo clássico ao progressismo francês contemporâneo

No contexto contemporâneo, observa-se que alas progressistas, e em certa medida até organizações e indivíduos de filiação marxista têm se solidarizado com determinados grupos criminosos, adotando discursos contrários às operações estatais e tentando enquadrá-las como chacinas indiscriminadas contra populações vulneráveis. Este artigo, porém, não se propõe a avaliar a legitimidade ou realizar qualquer análise técnica sobre tais operações, mas sim a examinar a construção dessa mentalidade dentro da esquerda progressista contemporânea, além de compará-la com as construções socialistas do século passado e suas inspirações originais.

Antes de tudo, é fundamental apresentar alguns conceitos-chave para a formulação das análises deste artigo, especialmente a distinção entre proletariado e lumpemproletariado. Essa diferenciação é indispensável para compreender tanto as abordagens socialistas do século XX quanto às construções progressistas contemporâneas sobre criminalidade e marginalidade. O proletariado, segundo Marx e Engels, é a classe social formada pelos trabalhadores assalariados que não possuem os meios de produção e, portanto, vendem sua força de trabalho para sobreviver, é a classe histórica com potencial revolucionário, capaz de derrubar o capitalismo e instaurar o socialismo. Como afirmam Marx e Engels:

“O proletariado, enquanto classe, só pode libertar-se emancipando-se de toda exploração, abolindo a propriedade privada dos meios de produção.”

Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848.

Em contrapartida, o lumpemproletariado é composto por elementos marginalizados da sociedade — criminosos, mendigos, vagabundos, prostitutas e outros indivíduos socialmente desorganizados — que não possuem integração econômica ou política com a classe trabalhadora organizada. Marx e Engels o consideravam, em geral, como uma camada social não revolucionária e potencialmente reacionária. Marx descreve:

“Essa escória do proletariado, composta de vagabundos, criminosos e aventureiros, pode tornar-se o exército pronto para todas as aventuras reacionárias.”

Karl Marx, O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, 1852.

“O lumpemproletariado é o reservatório social que, em tempos de crise, pode ser mobilizado pelos adversários da classe operária.”

Friedrich Engels, carta a Marx, 1869.

Portanto, ao analisarmos o discurso contemporâneo da esquerda progressista em relação a grupos criminosos e marginais, é crucial compreender como essas categorias sociais foram historicamente concebidas e utilizadas como instrumentos teóricos para diferenciar sujeitos revolucionários de elementos considerados parasitários ou reacionários dentro da lógica marxista. Cabe esclarecer que, neste artigo, o termo “esquerda” refere-se a grupos vinculados a partidos de origem comunista ou a indivíduos que expressam abertamente sua filiação ideológica ou intelectual a tais doutrinas. O objetivo, no entanto, é destacar que muitos desses atores não se configuram verdadeiramente como socialistas ou marxistas, conforme afirmam, mas representam, na prática, produtos do sistema liberal vigente.

Por mais que reconheçamos que alguns teóricos marxistas tenham desenvolvido análises com viés parcialmente semelhante ao do progressismo francês das décadas de 1960 a 1980 — como, por exemplo, Antonio Gramsci, que enfatizava a importância da hegemonia cultural e da influência das ideias na transformação social —, observa-se que, na prática, os regimes socialistas do século XX aplicaram um modelo muito mais nacionalista e ortodoxo em relação a questões como a criminalidade e a marginalidade. Vamos exemplificar.

Na URSS de Stalin, os criminosos eram tratados como ameaça à ordem social e enviados aos GULAGs para “reeducação pelo trabalho”:

“O trabalho é a melhor escola de disciplina social. O trabalho corrige, educa e transforma.”

Joseph Stalin, discurso de 1933.

Na China de Mao Zedong, traficantes e bandidos eram considerados “elementos podres” da sociedade, devendo ser eliminados ou enviados aos campos de trabalho (Laogai):

“Devemos eliminar os bandidos, os contrarrevolucionários e os parasitas sociais. Só assim o novo homem poderá florescer.”

Mao Zedong, 1951.

Em Cuba, sob Fidel Castro, a criminalidade era entendida como consequência do capitalismo e combatida com leis severas, prisões e programas de reeducação:

“O crime é filho da sociedade capitalista. Nós o combateremos com justiça, com trabalho e com educação.”

Fidel Castro, 1961.

Na Iugoslávia de Tito, a abordagem combinava repressão e reintegração social, com trabalho obrigatório e disciplina rigorosa para os criminosos:

“A sociedade socialista não tem lugar para parasitas e especuladores. O trabalho é o dever e o direito de cada cidadão.”

Josip Broz Tito, 1950.

Esses exemplos evidenciam que, apesar de certas aproximações teóricas com pensadores como Gramsci, a prática socialista histórica demonstrou medidas enérgicas e coercitivas frente ao crime organizado e a indivíduos marginalizados, distinguindo-se claramente da perspectiva mais permissiva ou simbólica observada em correntes progressistas francesas pós-1968.

Tendo isso em mente, surge a questão: como discursos inversos, que colocam o lumpemproletariado e o proletariado na mesma posição de sujeito político ou revolucionário, passaram a ganhar espaço? De onde vem essa mentalidade? Como já foi citado, pensadores marxistas como Antonio Gramsci anteciparam algumas dessas ideias ao propor a necessidade de uma hegemonia cultural capaz de transformar não apenas a economia, mas também os valores e a moral da sociedade. Gramsci defendia que a luta política não se restringia ao aparato do Estado, mas deveria penetrar na cultura, na educação e nas instituições civis, reconhecendo que setores tradicionalmente marginalizados poderiam desempenhar um papel político:

“É essencial cultivar novas formas de consciência nos setores menos organizados da sociedade, de modo a expandir o campo da hegemonia socialista.”

Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, 1929–1935.

No entanto, foi a partir das décadas de 1960, 1970 e 1980 que essa ideia ganhou formulação mais ampla e propulsão teórica, especialmente por filósofos franceses, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jean-Paul Sartre, Herbert Marcuse e Guy Debord. Esses autores deslocaram a análise da política do eixo econômico-trabalhista para questões de poder, cultura e subjetividade, reinterpretando a marginalidade como forma de resistência ao sistema.

A lógica subjacente era a seguinte: com o início do Estado de bem-estar social na Europa, a classe operária tradicional já não se via compelida a lutar por mudanças radicais — muitas de suas demandas econômicas e sociais já haviam sido parcialmente atendidas. Nesse contexto, os pensadores progressistas passaram a olhar para o lumpemproletariado — indivíduos marginalizados, excluídos e sem perspectivas, mesmo em sociedades relativamente mais prósperas — como um sujeito político capaz de manter viva a lógica da luta social e contestatória. Podemos perceber exemplos de formulação dessa ideia pelos filósofos franceses. Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1975), analisa o criminoso como produto das instituições de poder, deslocando a culpa do indivíduo para o sistema disciplinar:

“O delinquente é o produto das próprias instituições que o pretendem corrigir.”

Gilles Deleuze e Félix Guattari, em O Anti-Édipo (1972), propõem que a marginalidade e o desejo reprimido podem ser forças revolucionárias, subvertendo a ordem social:

“O delinquente é o homem que, sob o império de uma sociedade neurótica, conserva o desejo vivo.”

Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo (1967), vê na recusa à ordem produtiva e no comportamento desviante uma forma de resistência ao sistema de consumo e alienação:

“Na recusa do papel de espectador e na negação das regras do espetáculo, o marginal descobre o último ato verdadeiramente revolucionário.”

Herbert Marcuse, em O Homem Unidimensional (1964), identifica nas minorias marginalizadas e nos excluídos sociais um potencial de ruptura que o proletariado industrial havia perdido:

“Os grupos marginalizados, desprovidos de integração e utilidade no sistema, podem tornar-se os verdadeiros portadores da negatividade histórica.”

Essas formulações foram a base para que o lumpem, antes considerado socialmente “inútil” ou reacionário na tradição marxista clássica, passa a ser reinterpretado como sujeito capaz de expressão política e contestação, mantendo a lógica de luta de classes sob novas formas, culturais e simbólicas, em vez de puramente econômicas. A mudança de perspectiva construída pelos autores anteriormente citados influenciou decisivamente a esquerda progressista contemporânea, que passou a reinterpretar a criminalidade, a marginalidade e a exclusão social como formas de opressão estrutural e não como desvios de caráter ou de classe. O discurso que iguala lumpemproletariado e proletariado reflete essa herança intelectual francesa, que prioriza a crítica às instituições e à moral vigente, muitas vezes em detrimento da análise tradicional de classe e de trabalho produtivo. Assim, percebe-se que a evolução conceitual proposta pelos filósofos franceses mudou profundamente a forma como setores da esquerda progressista e liberal abordam a criminalidade, deslocando o foco da repressão estatal para o reconhecimento e valorização da marginalidade como agente de contestação social.

Em síntese, o contraste entre a aplicação prática do socialismo clássico e a teorização progressista francesa evidencia uma transformação central no pensamento político contemporâneo: enquanto os regimes socialistas buscavam disciplinar, reeducar e integrar os marginalizados ao projeto coletivo, o progressismo moderno reinterpretou esses sujeitos como protagonistas de resistência e questionamento, redefinindo os conceitos de justiça, crime e agência política. Esse legado filosófico explica a mentalidade atual da esquerda progressista e liberal, que muitas vezes se coloca contra operações estatais e enquadramentos penais, posicionando-se em defesa da marginalidade e da inclusão simbólica como expressão de uma “luta social” contínua.

Referências Bibliográficas

CASTRO, Fidel. Discurso na Praça da Revolução. Havana, 1961.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005 [original 1967].

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012 [original 1972].

ENGELS, Friedrich. Carta a Karl Marx, 1869.

FERRARI, Anderson. História é aula de pergunta. São Paulo: Contexto, 2014.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2012 [original 1975].

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011 [escritos 1929–1935].

MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 [original 1964].

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1983 [original 1848].

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Abril Cultural, 1983 [original 1852].

STALIN, Joseph. Discurso sobre o trabalho e disciplina social. Moscou, 1933.

MAO, Zedong. Discurso sobre eliminação de bandidos e parasitas sociais. Pequim, 1951.

TITO, Josip Broz. Discurso sobre parasitas sociais e dever do trabalho. Belgrado, 1950.

Leonardo Kohls
Leonardo Kohls

Membro da Nova Resistência, analista internacional e estudante de História.

Artigos: 54

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *