O Monte Rinjani, onde pereceu recentemente Juliana Marins, é um lugar fascinante das regiões mais concretamente tradicionais da Indonésia.
Todo o local é sagrado para a etnia sasak, que habita os seus arredores, especialmente para os praticantes do Wetu Telu, uma religião sincrética que mistura Islã, Hinduísmo e Xamanismo balinês.
Em toda noite de Lua Cheia, os praticantes dessa religião realizam cerimônias perto do lago Segara Anak, que possui um formato de Lua Crescente. Segundo as lendas populares, o próprio Monte Rinjani é um deus e, simultaneamente, um espaço sagrado no qual habitam miríades de deuses e espíritos diversos.
A sua subida, para os sasaks, constitui um evento espiritual que só deve ser empreendido por aqueles que estão preparados…por fora e por dentro. Evidentemente, os próprios sasaks mais modernizados também aderiram à transformação da subida em um percurso na lógica da indústria do turismo.
O encanto do dólar é poderoso em seu poder de tornar excessivamente acessível aquilo que outrora dizia respeito apenas a grupos restritos de pessoas. Me recorda a polêmica do Monte Uluru, na Austrália, por muitos anos rebaixado a “ponto turístico” e “point para aventureiros”, até que a pressão dos anangus fez o governo australiano proibir a escalada do monte.
Nas reflexões sobre a recente tragédia no Monte Rinjani há aqueles que defendem uma visão “espiritualizada” do caso, em que a falecida estava se arriscando em uma aventura perigosa e, com isso, dando à própria vida um valor superior, bem como aqueles que ressaltam o problema de uma excessiva comercialização e democratização do alpinismo – o seu rebaixamento a mero “esporte” ou “busca por experiências” (instragramáveis).
Me inclino para o segundo tipo de perspectiva, sem desprezar o primeiro.
Sobre o alpinismo ou montanhismo em si, me remeto a Domenico Rudatis, ele próprio alpinista e místico, que dizia que toda montanha é sagrada. Ela, ou mais especificamente seu cume (“porta dos Deuses”, segundo Eliade), é o ponto de encontro entre o Céu (Homem, Pai) e a Terra (Mulher, Mãe), em uma simbolização do casamento sagrado de natureza cosmogônica.
Por isso, para Rudatis, uma escalada bem pode ser tomada como ascese mística. O montanhismo possui uma dimensão propriamente espiritual em sua prática, mas quando ele é conduzido de forma gradual e com a disposição interior e concentração adequadas. Desnecessário dizer, Rudatis considerava que quanto mais bugigangas técnicas no montanhismo, menos aberta para a transcendência estaria a experiência da escalada.
“Libertar-se significa, antes de tudo, libertar a mente da massa de falsidades, supérfluos, lixo de todos os tipos com os quais somos diariamente carregados, em nosso detrimento e para o benefício exclusivo dos mercados que já mencionei.
Aqueles que sentem e amam a montanha por si mesma, e não como um meio subordinado a outros interesses, conseguem, quase sem perceber, libertar suas mentes e almas no sentido agora especificado. As consequências são imediatas. Assim como um relógio que está muito sujo para e depois começa a bater novamente quando é limpo, nossa mente, quando é limpa, começa a se mover ativamente de novo e nos mostra qual é a verdade de nosso mundo, que antes não podia ser vista porque estava enterrada sob o lixo cotidiano.
Talvez esse seja o significado mais simples e claro do início da liberação”.
— Domenico Rudatis
Impossível, ademais, ignorar Julius Evola, que em sua juventude foi também entusiasta do alpinismo e que possui alguns dos melhores escritos já produzidos sobre o tema.
Evola distingue a ascese espiritual do montanhismo de três abordagens comuns sobre o tema: 1) A meramente lírica ou poética, típica dos não alpinistas; 2) A naturista, que busca no montanhismo uma reconexão com a natureza em um mundo excessivamente civilizado e aburguesado; 3) A heroica, que pensa o montanhismo de uma perspectiva exclusivamente física.
Evola não nega a validade da abordagem naturista e da abordagem heroica, mas considera que elas não vão longe o bastante no perceber o potencial da escalada. Para o Barão, subir uma montanha é algo a ser encarado como uma experiência interior transfiguradora cuja culminação é a conquista do cume, o qual põe o homem diretamente diante dos símbolos da eternidade, como o infinito céu azul. O homem que passa por essa experiência com a disposição interior correta e retorna à planície nunca mais precisa escalar uma montanha. Ele já porta a montanha dentro de si.
Um outro evoliano, Mario Polia, comenta sobre essa disposição interior como sendo a do “wei-wu-wei”, ou seja, do “agir sem agir”, da ação desinteressada que não é feita para “se provar” ou para “mostrar” o que quer que seja para terceiros. O alpinista deve estar dotado de uma pureza interior privada de orgulho, de paixão ou mesmo de desejo de vitória. A conquista da montanha não deve ser abordada como “sport” para que o seu potencial espiritual possa efetivamente aflorar.
Desnecessário dizer que está fora de cogitação buscar no montanhismo uma dimensão espiritual quando ele está inserido não apenas em um contexto “desportivo”, mas, muito pior, num contexto turístico, em que o alpinismo é visto como “fuga” do tédio burguês, uma aventura paga feita no período de férias. Nesse contexto, o montanhismo não é nada além de uma forma “ativa” de consumismo, o qual quando acoplado à necessidade permanente de exibir a própria “aventura” no TikTok e no Instagram, está imbuído da natureza de espetáculo.
Não obstante, reservo pela falecida o respeito que se deve ter por quem teve uma “bela morte”.
Para mim, excetuando a morte em combate e a morte por martírio, não há morte melhor e mais sublime do que a destruição da própria vida por um dos fenômenos extremos da natureza, expressões violentas do numinoso. Ser morto por um raio, cair num vulcão, ser arrasado por um tsunami ou tragado pelo chão em um terremoto, são mortes dignas e praticamente conseguimos intuir que quem morre dessa forma não tem uma destinação comum.
O Monte Rinjani, lar de deuses e espíritos, nesse sentido, é um lugar perigoso precisamente na medida de sua sacralidade.
Quanto mais perto do divino, mais perto da morte.