A geopolítica nunca deixou o palco mundial, apesar da hipocrisia das potências ocidentais, que tentaram expulsá-la para longe.
É uma grande ironia que, mais de trinta anos após ter sido decretado o “fim da geopolítica”, seja justamente a geopolítica que hoje ameace a globalização e a possibilidade de construção de uma ordem internacional.
Isso demonstra que os voluntarismos têm pouco efeito diante das regularidades da história; e nos lembra, de certa forma, o momento em que, no final da década de 1920, foi assinado o Pacto Briand-Kellog ou Tratado de Renúncia à Guerra, um acordo que, segundo o polemólogo francês Gastón Bouthoul, equivaleria a médicos firmando e proclamando o fim das doenças.
Os excessos de idealismo na política internacional frequentemente levam a esse tipo de declarações ou aspirações, até que o robusto muro da realidade se interpõe, restabelecendo o equilíbrio.
A geopolítica nunca teve uma boa reputação, pois foi associada à anexação de territórios, captura de regiões ricas em recursos, esferas ou blocos de influência, “fronteiras vivas”, intenções ou ambições ocultas por parte dos Estados para crescerem à custa da segurança de outros, entre outros aspectos.
Esse desprestígio da disciplina foi amplificado pelo fato de o regime alemão nos anos 1930, revolucionário do ponto de vista geopolítico, tê-la transformado em um método baseado em solo e raça, voltado para a guerra. Sem dúvida, foi nesse contexto que a geopolítica ficou manchada.
Após a Segunda Guerra Mundial, o termo foi abandonado, mas não sua prática. Afinal, o que foi a Guerra Fria, senão uma disputa global por espaços entre blocos ideológicos e geoestratégicos rígidos?
Com o fim do bipolarismo, parecia que a geopolítica havia desaparecido junto com esse conflito que dominou boa parte do século XX. Além disso, a globalização rapidamente “geoeconomizou” as relações internacionais, deixando pouco espaço para fenômenos disruptivos. A geopolítica não desapareceu, é claro, mas adquiriu um significado quase “sob medida”. Tudo, então, passou a ser geopolítica: desde o panorama financeiro até os fenômenos climáticos. Chegou-se, por exemplo, a falar da “geopolítica do Katrina”, como se o furacão obedecesse às lógicas político-territoriais dos Estados.
No entanto, naquele mundo, ocorriam fatos nos quais a interação entre interesses políticos, territórios e poder — ou seja, os componentes que definem e movimentam a geopolítica — era categórica.
Foi necessário um evento profundamente geopolítico, envolvendo diretamente um ator de poder com um histórico nitidamente territorial (a Rússia), para que especialistas autorizados começassem a falar sobre o “retorno da geopolítica”.
De fato, a anexação da península ucraniana da Crimeia pela Rússia, em 2014, trouxe a geopolítica de volta ao centro das discussões. Desde então, proliferaram estudos sobre a disciplina. A geopolítica havia “retornado”.
No entanto, a rigor, a geopolítica nunca havia realmente desaparecido. Se analisarmos com mais criticidade e reflexão os eventos ocorridos desde os anos 1990, perceberemos que a geopolítica esteve presente em todos eles. Por exemplo, a expansão da OTAN e o ataque perpetrado pelo terrorismo transnacional ao território mais seguro do mundo, o fatídico 11 de setembro, são fatos em que a relação entre interesse político e território é evidente. Enquanto o primeiro representou um deslocamento de países e ativos militares para zonas russas cada vez mais estratégicas, o segundo foi consequência de uma orientação territorial global do terrorismo de nova geração.
Além disso, não apenas a geopolítica nunca se foi, como também muitas das novas temáticas contribuíram para sua pluralização. Um exemplo é o segmento ou plano digital, uma das “novas territorialidades” que se soma às antigas, embora, diferentemente destas, seja um campo imensurável. Sua utilização para fins perniciosos permite, eventualmente, que Estados evitem responsabilidades por ações realizadas contra outros, devido à proliferação de hackers patrióticos, globais e “soberanos”.
Outro território “novo, mas antigo” é o espaço exterior. A novidade em relação a esse “campo”, como destacam os especialistas norte-americanos Dave Baiocchi e William Welser, é a sua “democratização”. Isso significa que, além da proliferação de missões espaciais, a atual corrida espacial não é protagonizada apenas por Estados. A tecnologia tornou o espaço mais acessível do que nunca, permitindo a entrada de novos atores.
Paralelamente a essas realidades, o vitalismo geopolítico é evidente em muitas outras situações: desde os movimentos das potências no oceano Ártico e no continente Antártico, até a projeção regional, continental e global da China. Também inclui a aquisição de espaços ambientais limpos por potências que quase esgotaram os seus próprios, a abertura de novas rotas comerciais (como a do Ártico), o desenvolvimento de políticas de preservação em áreas marítimas — que, na prática, refletem lógicas de poder e controle por parte das potências, algo conhecido como “diplomacia de defesa” —, a projeção para regiões ricas em minerais antigos e novos (como o lítio e as terras raras), a contenção multidimensional dos Estados Unidos em relação à China, a possível configuração de blocos tecnológicos ou de inter-inteligência artificial (BI-IA), a possível revitalização territorial do terrorismo (considerando, por exemplo, um cenário de caos na Síria), o renovado “navalismo” e a “geopolítica submarina”.
Por fim, nas “duas guerras e meia” que estão em curso no mundo — Ucrânia, Oriente Médio e a placa do Pacífico-Índico (esta última centrada na crescente rivalidade entre China e Estados Unidos) —, a preeminência da geopolítica e, até mesmo, as causas dessas guerras têm raízes político-territoriais.
Assim como ocorre com a guerra e outros fenômenos, a geopolítica não retorna porque, na verdade, nunca foi embora. Portanto, além dos processos de interação social e do aparente declínio da anarquia internacional como consequência do surgimento de novos atores e do avanço quase imparável da tecnologia, é imperativo pensar o mundo a partir dos interesses, territórios e do poder — especialmente de um “país-continente” como a Argentina, um ator com vasta extensão terrestre, marítima, aérea e digital, mas que ainda carece do poder nacional necessário para proteger esse status privilegiado.
Fonte: Nomos