A construção do mundo multipolar avança a passos largos, mas também se depara com barreiras e conhece tropeços ao longo do caminho.
A construção do mundo multipolar avança a passos largos, mas também se depara com barreiras e conhece tropeços ao longo do caminho. Um dos aspectos que preocupa particularmente os cidadãos conscientes do espaço latino-americano é a impressão, que se torna cada vez mais forte, de que os EUA tentarão compensar as possíveis suas derrotas geopolíticas na Europa, Oriente Médio, Extremo Oriente e África com um esforço redobrado aqui.
De fato, aos 200 anos da Doutrina Monroe – recém-cumpridos no final de 2023 – chama a atenção aquilo que parece ser um impulso renovado dos EUA, particularmente na direção da América do Sul.
Esse impulso parece ser multinível, apoiando-se nas embaixadas dos EUA de cada país, na “diplomacia militar” do SOUTHCOM, nas atuações do Departamento de Estado dos EUA, e também parece contar com o apoio da CIA e de uma pluralidade de ONGs.
Geopoliticamente, não é inútil apontar que a lógica por trás da renovada projeção latino-americana dos EUA remonta à geopolítica atlantista de Alfred Mahan. As “Américas”, como um todo, são pensadas como uma espécie de “grande ilha”, uma plataforma marítima a ser hegemonizada pelos EUA. Atualizando a linha talassocrática da geopolítica para as condições objetivas atuais, com essa hegemonia pan-americana, os EUA parecem contar que terão consigo uma ampla riqueza em termos de recursos naturais estratégicos e recursos humanos para, alternativamente: 1) Impedir a perda de sua hegemonia unipolar, adiando a transição multipolar, ou; 2) Iniciar o seu “jogo” na multipolaridade em condições suficientemente vantajosas para tentar disputar, uma vez mais, a hegemonia mundial.
Considerando as ricas reservas de matérias-primas como petróleo, lítio, água, solos férteis, prata, cobre, estanho e ferro, entre outros recursos naturais, a hegemonia sobre o mundo latino-americano daria aos EUA uma vantagem comparativa considerável perante outras potências ascendentes, ditas “revisionistas”.
E nessa disputa pela América Latina (de onde os EUA buscam, aliás, deslocar Rússia e China) salta aos olhos a surpreendente virada atlantista do Equador.
De fato, já chamava a atenção a postura de Lenín Moreno em contraste com Rafael Correa (expressa, por exemplo, na entrega de Julian Assange às autoridades britânicas). Mas as relações entre Equador e EUA tornaram-se muito mais profundas sob o governo de Guillerme Lasso, aprofundando-se ainda mais sob Daniel Noboa.
O Equador, que aliás tem uma economia dolarizada que careca da própria moeda nacional e do controle soberano sobre a emissão de moeda, é um dos únicos países da América do Sul que ainda tem nos EUA o seu principal parceiro comercial, com os EUA correspondendo a 28% das suas exportações (principalmente petróleo, camarões, bananas, atum, cacau) e 23% das suas importações (principalmente minérios, combustível, máquinas e comida processada), com o valor total desse comércio em aproximadamente 18 bilhões de dólares.
Essas relações comerciais “preferenciais” que não só se mantem firmes em meio à projeção chinesa na América Latina, mas de fato crescem e se solidificam, são auxiliadas não apenas pela dolarização econômica, mas também por um trabalho preparatório de longa data que aponta para o estabelecimento de um acordo de livre-comércio entre os dois países, desde o Acordo do Conselho de Comércio e Investimentos, em 1990, o qual foi atualizado e reativado nos últimos anos, prevendo a facilitação das relações comerciais entre os países, incluindo a redução de tarefas – o que, como sabemos, sempre favorece as economias mais fortes e mais industrializadas.
Mas maior ainda que no âmbito econômico tem sido a integração nos âmbitos militar, policial e securitário entre EUA e Equador. Apenas nos períodos Moreno/Lasso, o Equador assinou cerca de uma dúzia de acordos bilaterais nesses âmbitos, com destaque para o Acordo de Cooperação de Defesa, de 2019, a Estratégia Integrada de País, de 2022, e o Memorando de Entendimento de 2023.
Esses e outros acordos, além da participação do Equador em exercícios militares como o UNITAS, dirigido pelo SOUTHCOM, e sua integração em iniciativas de financiamento como o Financiamento Militar Estrangeiro e o Educação e Treinamento Militares Internacional, foram as ferramentas por cujo meio os EUA foram costurando o treinamento das forças militares e policiais equatorianas, a sua equipagem (e, portanto, a dependência tecnológica de suas forças), bem como a sua abertura no âmbito cibernético e de inteligência.
Menos de 1 ano de governo Noboa, porém, já indicam que estamos diante de uma aceleração desse processo, com a assinatura de pelo menos 3 acordos importantes que possuem repercussões no âmbito da segurança e, consequentemente, da soberania: o Acordo sobre Status das Forças, o Acordo sobre Operações contra Atividades Marítimas Transnacionais Ilícitas e o Acordo de Assistência em Interceptação Aérea. Enquanto o segundo e o terceiro, dizem respeito respectivamente à cooperação no combate marítimo ao narcotráfico e à pesca ilegal (implicando permissão para uso do território equatoriano por aeronaves estadunidenses), e o compartilhamento de inteligência e dados de radar para fins de controle aéreo, o primeiro representa, de fato, uma cessão sem precedentes de soberania: ele concede a militares e a funcionários do Departamento de Defesa dos EUA (incluindo aí terceirizados privados) imunidade diplomática, competência penal exclusiva, e libera o livro trânsito e uso do território nacional por veículos, navios e aeronaves operadas pelo Departamento de Defesa estadunidense.
Esse aumento da presença dos EUA no Equador, bem como da dependência do Equador em relação aos EUA acompanhou em paralelo os resultados de um referendo constitucional, realizado em abril de 2024, e que entre outras coisas (e com o destaque importante da decisão popular de rejeitar a pauta da reforma trabalhista neoliberal incluída no referendo), deu às Forças Armadas atribuições típicas da polícia, aumentando a sua utilização pelo Estado equatoriano.
Ora, na medida em que as Forças Armadas do Equador são, hoje, armadas e treinadas pelos EUA, bem como orientadas por dados e informações da inteligência estadunidense, o aumento no seu uso significa, também, um uso mais intensivo dessas relações com os EUA, implicando maiores lucros para o complexo militar-industrial dos EUA e uma maior ingerência dos EUA nos assuntos equatorianos.
Essa aceleração na “atlanticização” do Equador não aparece, porém, em um vácuo e mesmo os precedentes do período Moreno/Lasso são insuficientes para dar conta da rapidez dessa transformação. Mas só precisamos recordar dos eventos de janeiro deste ano para entender como foi tão fácil para os EUA conquistarem o Equador.
Desde janeiro até agora, o Equador tem vivido o que só pode ser considerado como uma imensa “crise de segurança”, com as principais organizações narcotraficantes, Los Lobos e Los Choneros, se engajando em atos de narcoterrorismo contra o Estado e cidadãos privados, em um contexto de disputa pelo controle das principais rotas do narcotráfico internacional no Equador, país situado entre os grandes produtores Colômbia e Peru.
Essa crise, que já ceifou a vida de 21 civis e 6 funcionários públicos (de policiais a um prefeito), parece ter sido tratada pela mídia equatoriana como de maneira oportunista visando uma aproximação no âmbito da segurança com os EUA, e caiu como uma luva para Noboa que, então, afirmou que o país se encontrava em uma situação de “conflito armado interno” e em “estado de guerra”.
Como todo discurso de “crise” e de “emergência” (vimos muitos desse tipo nos últimos anos) também esse serviu para convencer as pessoas a baixarem as suas desconfianças naturais e o seu ceticismo e confiar nas “boas intenções” do governo, bem como facilitou para Noboa a implementação de medidas e a realização de acordos que, pelos meios ordinários da democracia legalista, seriam difíceis, demoradas e negociadas.
Naturalmente, a eclosão desse conflito armado, à luz do histórico de colaboração de agências estadunidenses no narcotráfico internacional (do empoderamento da Cosa Nostra após a ocupação da Sicília na Segunda Guerra Mundial até o caso Irã-Contras, passando por uma miríade de outros escândalos), lançou inúmeros questionamentos e desconfianças em relação às verdadeiras origens da onda de violência.
Qualquer que seja a verdade por trás desse impulso repentino dos Lobos e dos Choneros, a realidade é que, passo a passo, e tirando proveito de cada oportunidade, o Equador tornou-se um dos países mais submissos aos EUA em todo o nosso continente.
Fonte: Cultura Estratégica.