Neste texto apresentamos um dos maiores pensadores latino-americanos do começo do século XX: Manuel Ugarte, pensador “maldito” da Pátria Grande. Ugarte foi jornalista, escritor, militante, político: dedicou sua vida ao estudo da América Latina a partir de perspectivas diversas, foi o precursor do socialismo latino-americano e do anti-imperialismo político e cultural. Seu trabalho, desde sempre silenciado pelo pensamento hegemônico e relegado ao esquecimento pela academia, merece hoje mais do que nunca ser revisitado e revalorizado.
Escritor, político, militante, jornalista… Manuel Ugarte foi um dos pensadores mais relevantes da América Latina do começo do século XX. No entanto, quanto dele se conhece na Pátria Grande, tal como ele denominava a região? Ugarte foi autor de mais de 25 livros.
Além disso, foi amigo de Rubén Darío. Trocava cartas com Augusto César Sandino e compartilhava a direção da revista Monde com Albert Einstein, Miguel Unamuno, Henri Barbusse, Máximo Gorki e Upton Sinclair. Único orador não estudantil no ato de criação da FUA (Federación Universitaria Argentina) em 11 de abril de 1918. Embaixador na América Central e Caribe no primeiro mandato do governo de Juan D. Perón. Isso apenas para citar alguns feitos na vida deste personagem.
Mas os grandes jornais lhe fecharam as portas, as academias o ignoraram (e continuam ignorando), o Partido Socialista o expulsou duas vezes por sua posição nacional e os estudantes universitários o esqueceram rapidamente para abraçar a esquerda abstrata. Vejamos então quem é este “maldito”, tal como Arturo Jauretche designava aqueles homens e mulheres excluídos dos panteões da história oficial.
Em pleno auge do semicolonialismo e da presença do imperialismo britânico na América do Sul e dos Estados Unidos na América Central e Caribe, surgiu uma geração que pensou sobre as raízes da identidade “nacional” latino-americana.
Homens nascidos entre 1874 e 1882 começaram a estudar a história regional e a resgatar os fundamentos que permitiam ver a América Latina como uma unidade: a herança hispânica, o idioma comum, a cultura compartilhada e a submissão semicolonial à qual estavam condenados constituíam as bases tópicas dessa união.
Amado Nervo (mexicano), Rubén Darío (nicaraguense), Chocano (Perú), Vargas Vila (colombiano), Gómez Carrillo (guatemalteco), José Ingenieros, Manuel Ugarte (argentinos), Rufino Blanco Fombona (venezuelano) foram alguns dos intelectuais que circularam por Madrid e Paris fomentando discussões sobre a América Latina.
Dentre esse grupo de escritores destacou-se Manuel Ugarte. Nascido em Buenos Aires em 1875, foi o precursor do socialismo latino americano, defendeu ideias anti-imperialistas e defendeu a unidade latino-americana como bandeira política primordial.
Em suas primeiras obras, Ugarte estudou os processos de fragmentação da América Latina, segundo ele, uma nação desmembrada. Afirmou que o único caminho para conseguir o exercício pleno da soberania – frente ao liberalismo dos países centrais – era a unidade.
Ugarte considerava que a existência da Pátria Grande se fundava em diversos fatores. Por um lado, se constituía como um bloco em oposição à outro território do continente: a América Anglo-saxã. Identificava a existência de diferenças originadas desde o momento da colonização e que haviam determinado a construção de duas civilizações distintas.
Além das diferenças culturais, identificou o problema geopolítico que implicava para a América Latina a unidade dos Estados Unidos, que já se constituía como ameaça para o resto do continente em razão da ação expansionista esboçada já cedo pela Doutrina Monroe (1824).
Por outro lado, estudou a problemática da colonização cultural desde cedo, transformando-se em precursor das obras que logo, durante o século XX, iriam denunciar e analisar a colonização pedagógica nos países semicoloniais, tais como os argentinos Arturo Jauretche, José Hernández Arregui, entre tantos outros.
Defendeu que se haviam configurado novas formas de dominação: “a infiltração mental, econômica ou diplomática pode entrar sorrateiramente, sem ser percebida por aqueles que pretende prejudicar”. Já em 1916 alertava que as notícias, as leituras e “até os espetáculos” podem ser ferramentas para minar a autonomia nacional.
Também foi o precursor do nacionalismo econômico, a partir do qual propôs a nacionalização de recursos estratégicos e a intervenção do Estado com o propósito de alcançar o desenvolvimento industrial no marco de um projeto socialista. Mas o socialismo de Ugarte não era internacionalista, mas nacional (em nível latino-americano).
Nas palavras de seu biógrafo, Norberto Galasso, “o socialismo de Ugarte é duplamente nacional: exige analisar profundamente a realidade nacional e formular soluções próprias; por outro lado, vê ao imperialismo como o grande inimigo, o que leva à reivindicar a soberania da pátria ao consolidá-la na união hispano-americana. Esse socialismo para uma semicolônia deve estar à base de todo programa nacional-democrático (Galasso, 1974).
Apesar da importância desse pensador, os ambientes acadêmicos carecem de uma análise profunda das múltiplas contribuições que ele deixou para a compreensão da realidade argentina e latino-americana.
É por isso que, na Universidade Nacional de Lanús (Buenos Aires, Argentina) foi apresentada Manuel Ugarte. Legado, vigencia y porvenir, uma obra coletiva sobre o grande pensador latino-americanista, que recupera, numa época de rupturas, um caminho para avançar na construção de sociedades soberanas e com vocação de unidade regional.
“Somos índios, espanhóis, negros, mas somos o que somos e não queremos ser outra coisa”: com estas palavras Manuel Ugarte resumia a vitalidade mestiça e rebelde de Nossa América, a identidade da região. A vida do pensador foi uma constante luta contra o silenciamento dos poderes hegemônicos e ainda depois de sua morte continua enfrentando a invisibilização da maioria das grandes centrais de pensamento nacional.
A UNLa assumiu a tarefa de recuperar a obra dos “pensadores malditos” da Argentina e América Latina. Desde a criação do Centro de Estudios de Integración Latinoamericana que leva seu nome, a proposta tem sido a difusão de sua obra, mas também a recuperação de um legado de luta pela integração latino-americana a partir da reflexão, investigação, debate e difusão de conteúdos que apontem o caminho para essa integração.
A atualidade da obra de Ugarte nos convida a analisar a partir da realidade presente os desafios das ideias de soberania e unidade latino-americana. O livro é resultado do trabalho coletivo de docentes, investigadores e estudantes da Universidade Nacional de Lanús, após a jornada de palestras “Manuel Ugarte, legado, vigencia y porvenir. Nuestra América como relanzamiento”, de outubro de 2017.
Junto aos mais importantes biógrafos de Manuel Ugarte, Norberto Galasso e Miguel Ángel Barrios, escrevem docentes, investigadores e estudantes que analisaram a figura de Ugarte a partir de diferentes perspectivas em que seu pensamento ainda apresenta desafios para nossos dias.
Desde artigos que abordam seu ideário e vínculos intelectuais, passando por seu pensamento historiográfico e geopolítico, assim como também suas contribuições ao movimento estudantil a nível regional e suas atuações em momentos transcendentais da história latino-americana, como a Revolução Mexicana – este livro reúne as múltiplas facetas do pensamento e ação de Manuel Ugarte.
Elas não aparecem como mero relato de suas ideias, mas como uma análise a partir de uma perspectiva atual que busca expressar a atualidade de suas contribuições para nosso presente e futuro.
Entre os eixos que se destacam se encontra a abordagem de seu legado latino-americanista a partir da recuperação de sua “Campaña Hispanoamericana” e as palestras que levou adiante nos distintos países da região que visitou. A contribuição de Ugarte foi fundamental em processos que marcaram a história dessas nações, semeando a vocação da unidade como ferramenta indispensável para sua verdadeira emancipação.
A obra também enfatiza as propostas políticas de transformação social que formula Manuel Ugarte em torno da ideia de socialismo latino-americano, assim como também seu trabalho em torno da recuperação da questão identitária latino-americana. A valorização do próprio é para Ugarte um caminho de libertação que ainda hoje se mantém como o tema central do debate do nosso querer estar no mundo.