Em nome da “luta contra o ódio” tudo se tornou justificável. Silenciar, arruinar economicamente, linchar, até assassinar (para não falar nas ameaças de estupro contra mulheres que não se dobram ao politicamente correto). É a consequência inevitável sempre que uma facção política moralista se arroga o monopólio do bem. A demonização e desumanização do outro segue naturalmente. Mas existe, realmente, algum “ódio” sendo combatido, ou todo esse esforço não passa de uma busca, por parte das elites dominantes, por silenciar toda crítica a seus projetos?
Se quiséssemos nos expressar seguindo Spinoza, teríamos que dizer que o ódio é uma “paixão triste” porque se opõe às paixões eufóricas da alegria e do prazer; da galhardia e do entusiasmo empreendedor. Entretanto, e também seguindo Spinoza, o ódio deve ser entendido em vez de ridicularizado ou demonizado.
Uma coisa é certa e óbvia: o pensamento único; o pensamento politicamente correto e eticamente corrupto que atua como um fundo ideológico permanente de dominação da classe hegemônica cosmopolita, usa sempre a patologia para deslegitimar o corpo saudável. Não por nada para os aedos cosmopolitas[1] da “catequese do verbo único” e do “idem sentir global”, a família (corpo saudável) é, enquanto tal, feminicídio e patriarcado retrógrado (patologia). Até mesmo a pátria, enquanto tal, é nacionalismo beligerante. O non sequitur[2] é flagrante: seria como dizer que o pulmão é, enquanto tal, pneumonia. E que, portanto, para combater a pneumonia, é conveniente combater o pulmão. Prodígios da “nova ordem mental”!
Em termos análogos, poderíamos dizer que o ódio é a variante patológica da crítica e da dissidência. A crítica e a dissidência, por si só, são o corpo saudável: ele deve ser protegido e defendido para que cresça bem e não degenere em possíveis doenças. Entre as quais está precisamente o ódio, que é a dissidência levada à sua figura hiperbólica. O lugar onde a raiva prevalece sobre a razão e a vis[3] destrutiva sobre o confronto crítico.
A moral é que devemos lutar contra o ódio e, ao mesmo tempo, valorizar e proteger a crítica e a dissidência, que são, por outro lado, o sal da democracia. Um regime que em teoria deveria ser o único que protege a crítica e a dissidência baseada no livre confronto entre aqueles que são diferentes.
A operação dos monopolistas do discurso e sua “catequese subcultural” de execução do diagrama das relações de poder assimétricas é fácil de identificar: basta olhar para o modus operandi de Fabio Fazio [apresentador e produtor de TV italiano, N.d.E.], cortês nuncius sidereus[4], bem-humorado e cínico, além de impiedoso, que recentemente lançou sua enésima “campanha contra o ódio”. Uma campanha em que – este é o ponto – “ódio” é simplesmente tudo o que se opõe ao monopólio daquele ódio de classe autorizado pelos senhores do caos sem fronteiras; isto é, o ódio que o próprio Fazio, com seu sorriso tão autêntico quanto o “amor à humanidade” proclamado pelos patrões cosmopolitas, nunca perde uma oportunidade de celebrar no horário nobre.
Mas qual é realmente o ódio ao qual se opõem os apóstolos da sociedade do arco-íris na forma de mercadoria? É o ódio como violência diária, verbal e física contra os outros? Somente na aparência. A esse tipo de ódio diário, escusado será dizer, nós todos nos opomos. É até tautológico repeti-lo. Mas esse ódio é precisamente o ódio que os aedos do classismo no borders[5] usam como ferramenta para atacar outro ódio, aquele que eles realmente se preocupam em erradicar. E o fato é que os senhores do discurso unidirecional têm, na verdade, outro objetivo: usar o nobre rótulo da “luta contra o ódio” para atacar qualquer figura de crítica e dissidência contra a sociedade reificada, a ditadura permanente dos mercados e o cosmo-mercadismo dos detentores da liquidez financeira.
É o habitual non sequitur: usar a patologia do ódio para atacar o corpo saudável da crítica e a dissidência. Com o paradoxo de que eles devem, ao mesmo tempo, identificar como “odiosos” aqueles que apenas criticam as contradições da sociedade mercantil. Desta forma, a luta contra o ódio se torna uma luta contra a liberdade de crítica e dissenso. Esta liberdade será cada vez mais – tenham certeza – caluniada e ostracizada em nome da “luta contra o ódio”. Com a varinha mágica do clero jornalístico habitual, os coletes amarelos e os pensadores não-alinhados tornam-se “odiadores” (haters, segundo a novilíngua mercantilista). E, como tal, “eles devem ser combatidos”.
Desta forma, é gerada a figura paradoxal do ódio contra os odiadores. Ou seja, o ódio do Capital contra aquilo que possa derrubá-lo ou simplesmente apontá-lo como principal conflito se autolegitima ao se apresentar como uma resposta cortês, democrática e limpa aos verdadeiros odiadores; ou seja, àqueles que não estão alinhados com a “nova ordem mundial” no plano socioeconômico, ou com a “nova ordem mental” no plano das superestruturas.
E tudo isso, por outro lado, em um tempo – o tempo da “noite do mundo”, como diria Hölderlin – durante o qual o ódio das classes cosmopolitas contra os estratos nacionais-populares, as classes médias e as classes trabalhadoras já atingiu níveis sem precedentes.
Portanto, se existe um ódio legítimo – o único – é, em minha opinião, aquele com o qual a classe dominante dos globalizados responde ao ódio que as classes dominantes diariamente, de cima, descarregam unidirecionalmente sobre ela. Assim como a única guerra legítima é a guerra de resistência, o único ódio legítimo é o ódio de resistência. Eduardo Sanguinetti disse-o bem em 2007: “Porque eles nos odeiam, devemos responder. Eles são os capitalistas, nós somos os proletários do mundo de hoje”.
Notas
- Os aedos (del griego ἀοιδός, aoidós, «cantor», que por sua vez vem do verbo ἀείδω, aeidoo, «cantar») eram, na Antiga Grécia, artistas que cantavam epopeias acompanhados de um instrumento musical.
- Do latim, literalmente significa “no se segue” e refere usualmente a um tipo de falácia lógica em que a conclusão no se segue das premissas.
- Do latim, “força”, vigor.
- Do latim, “núncio sideral” ou, mais simplesmente, “mensageiro das estrelas”. Trata-se de um jogo de palavras que leva em conta que a pessoa aludida, Fabio Fazio, é uma “estrela” de televisão e um apresentador/representante de outras estrelas.
- Do inglês, “sem fronteiras”.
Fonte: Nomos