A pseudomorfose spengleriana e a arqueomodernidade duginiana

O filósofo da história alemão Oswald Spengler – um dos gênios do século XX – é fundamentalmente conhecido como propagador de uma teoria cíclica da história que concebe os complexos cultural-civilizacionais como entes orgânicos que nascem, crescem, amadurecem e morrem. Mas num sentido prático da metodologia histórico-sociológica, é possível que o conceito spengleriano mais influente tenha sido o de pseudomorfose, inclusive no Brasil, onde ele aparece nas obras de Gilberto Freyre, Otto Maria Carpeaux e outros.

O conceito de pseudomorfose é derivado por Spengler da geologia e aparece, em seu uso, pela primeira vez no capítulo VII do Volume II de O Declínio do Ocidente. Originalmente, em sua significação científica, o termo designa o fenômeno de cristais que, em sua forma exterior, assumem a forma de um mineral diferente, por exemplo, por modificações químicas. O uso historicista do termo emerge quando Spengler se debruça sobre a cultura árabe-persa, chamada por ele de “magiana”. A ideia é de que em determinados contextos, uma civilização mais velha pode ser tão hegemônica e estar tão entranhada em um determinado espaço que uma nova cultura emergente torna-se incapaz de alcançar formas de expressão puras e próprias e inclusive de desenvolver uma consciência para si. A jovem cultura se vê direcionada e forçada a se expressar nos termos, moldes e conceitos da velha civilização. É quase como um enxerto. No contexto descrito, Spengler diz que o neoplatonismo, os cultos mistéricos e religiosos tardios, etc., não são continuações da cultura-civilização clássica, mas produções da “alma” magiana, as quais tiveram que assumir as formas do mundo clássico por causa de sua absoluta hegemonia linguístico-cultural.

Agora, o que significa essa hegemonia linguístico-cultural? Por que a cultura magiana teve que se expressar pela linguagem, símbolos, mitos e correntes intelectuais da civilização clássica? Porque apesar do caráter cíclico e quase-determinista da concepção spengleriana da história, o mundo da política é aquele que tem a maior capacidade de elevar ou afundar o futuro de uma cultura encarnada num Estado, e no mundo da política entram elementos mais humanos de virtude, força, vontade e grandeza que concedem um elemento de incerteza à paisagem spengleriana. Para Spengler, o momento definidor que “desviou” o desenvolvimento natural da cultura magiana foi a Batalha de Ácio entre Otaviano, a perfeita culminação da cultura clássica e pai de sua civilização, contra Marco Antônio, romano orientalizado, praticamente um faraó ptolemaico casado com Cleópatra, comandante legiões e forças das províncias asiáticas de Roma.

Se Marco Antônio tivesse sido vitorioso, provavelmente as províncias orientais se tornariam um império independente comandado a partir de Alexandria, e os processos cultural-civilizacionais iniciados outrora com os persas teriam uma continuidade orgânica, de modo que tudo aquilo que entendemos como parte da “Roma Oriental” teria feições ainda mais orientais e bem menos grecorromanas. Para vermos um outro exemplo relativamente antigo, observemos a maneira pela qual a cultura faustiana (ocidental) e a cultura mexicanos (azteca-maia) interagiram. Apesar de Spengler falar diretamente na morte, enquanto tal, da cultura mexicana, teríamos que analisar o fenômeno da irrupção de elementos aztecas-maias sob a roupagem de tradições hispano-faustianas como um fenômeno de pseudomorfose (o que permite interessantes reflexões ulteriores).

Um outro conceito aborda um fenômeno semelhante ou análogo, o de arqueomodernidade, do russo Alexander Dugin. Explicitamente, Dugin considera que o seu conceito de arqueomodernidade é equivalente à pseudomorfose spengleriana, mas num sentido mais rigoroso é possível apontar para algumas diferenças significativas.

A arqueomodernidade se expressa como a pseudomorfose no sentido de que estamos, em ambos casos, falando de um “desenvolvimento orgânico” em uma sociocultura que é interrompido pela sobreposição de um outro processo.

Mas há determinadas especificidades da arqueomodernidade que merecem atenção. Colocando em termos psicológicos, como feito pelo próprio Dugin, a arqueomodernidade descreve um fenômeno de conflituosidade entre a “consciência” (superestrutura) e o “inconsciente” (estrutura) de uma civilização, por causa da sobreposição de um paradigma “alienígena” ao inconsciente civilizacional. Mas num sentido mais específico, se está falando aqui da implantação da “modernidade” e da substituição de superestruturas tradicionais por superestruturas modernas no contexto de sociedades tradicionais em processo de modernização, deixando sob si o “arcaico”, que não se confunde com o “tradicional”, mas é como que o seu “resquício”. Também seria possível, aqui, organizar essa dualidade em termos de logos/mythos, racional/irracional bem como segundo outras oposições semelhantes. O que é determinante, porém, é tratar-se da ideia de que em determinadas culturas-civilizações verifica-se que sob um verniz moderno movem-se profundas correntes de arcaísmo.

Assim, numa busca por especificar ainda mais a arqueomodernidade em relação à pseudomorfose, a arqueomodernidade poderia ser lida como uma espécie de pseudomorfose na qual o que está em jogo é não o choque entre diferentes organismos cultural-civilizacionais enquanto tais, mas o choque entre organismos cultural-civilizacionais em radicalmente diferentes “momentos” do eixo Tradição/Modernidade, e o resultado desse choque. Em outras palavras, um dos resultados possíveis do confronto entre uma sociedade moderna e uma sociedade tradicional é o deslocamento, supressão ou eliminação da superestrutura tradicional, com uma superestrutura moderna entrando em seu lugar, mas com a manutenção não intencional de uma base essencialmente arcaica (que não pode ser considerada tradicional pela perda dos elementos “superiores” de sua ordem). Não raro, segundo Dugin, isso se reflete socialmente na existência de uma elite derivada da sociedade moderna, com uma base social nativa, ou composta de ex-escravos, etc.

Dugin considera que esse condição patológica de arqueomodernidade é típica de países colonizados, ou num sentido mais geral, de países nos quais a Modernidade chegou vinda puramente de fora, e não a partir do próprio desenvolvimento histórico-cultural. O Japão, por exemplo, seria um país arqueomoderno. A Rússia também. O fenômeno, porém, seria fundamentalmente alheio aos EUA, que já viveria na pós-modernidade, e à Europa, onde o choque se dá principalmente entre uma modernidadade tardia e a plenitude da pós-modernidade.

Para a Rússia, a patologia histórico-cultural se inicia com o Cisma do século XVII, que teria levado à apostasia espiritual e cultural da Rússia. É a era da modernização forçada, de Pedro o Grande, da extinção do Patriarcado, da proibição das barbas, da importação do rococó francês, e assim por diante, mas com uma massa russa vivendo no arcaísmo, e com esse arcaísmo expressando-se de tempos em tempos em erupções niilistas e revolucionárias (em seu período nacional-bolchevique, por exemplo, é nesses termos que Dugin lia a Revolução Russa, influenciado pela obra de Mikhail Agursky, ainda que ele não houvesse formulado, então, a teoria da arqueomodernidade).

Na medida em que se trata de uma condição patológica, a arqueomodernidade constitui efetivamente um problema. Por que? Porque a contradição entre as dimensões lógica e mítica de uma sociedade impede o desenvolvimento harmonioso das potencialidades inatas daquele povo. Todas as erupções da estrutura serão sempre incompreendidas pela superestrutura, ou reprimidas, ou distorcidas e desnaturadas, para se adequarem. Enquanto a superestrutura enquanto tal ao se alienar intencionalmente da estrutura constituirá sempre uma capa superficial, privada de raízes.

Dugin leva a psicologização do fenômeno cultural às últimas consequências com a diagnosticação das expressões da patologia arqueomoderna, associando a neurose e a paranoia à superestrutura/logos/racionalidade em sua busca pela repressão de sua contraparte, enquanto associa os vários tipos de psicose, com destaque para a esquizofrenia, à estrutura/mito/irracionalidade do arcaísmo privado da superestrutura tradicional. Em concordância com Deleuze e Guattari, portanto, e na medida em que, no mundo moderno, a superestrutura é sempre ocidental-moderna, ele categoriza o homem ocidental como tipicamente paranoico, e pensa a esquizofrenia como a patologia mental tipicamente russa (e tipicamente não ocidental em geral).

Spengler falou pouco sobre a América Ibérica e praticamente nada especificamente sobre o Brasil, enquanto para Dugin o nosso continente e especialmente o Brasil são usualmente objeto de atenção.

O tema mais geral da pseudomorfose merece uma revisão pela necessidade de especificar (talvez com uma categorização de subtipos de pseudomorfose, para além da arqueomodernidade), por exemplo, (i) o choque entre culturas no qual a perdedora absorve aspectos superestruturais da vencedora, (ii) o choque entre culturas no qual a perdedora desaparece, mas influencia parcialmente a estrutura da cultura vencedora, e (iii) o choque entre culturas no qual não há nem sobreposição nem transplante, mas a criação de uma nova cultura, mas com superestrutura e estrutura se originando de culturas diferentes e conflitantes.

Dugin comenta bastante sobre o Brasil em seu livro dedicado especificamente à reflexão sobre a arqueomodernidade precisamente como um exemplo de sociedade arqueomoderna, tal como a Rússia e o Japão. Na leitura duginiana, o elemento português aparece muito claramente como constituindo a superestrutura de modernização, enquanto os elementos indígena e africano constituiriam a estrutura basilar, com suas superstições, tradições religiosas, folclore, etc. O elemento mestiço constituiria um elo apto a amaciar as contradições entre superestrutura e estrutura.

Enquanto rascunho e aproximação, a leitura duginiana é aceitável. Mas um conhecimento mais profundo, por exemplo, combinando Spengler e Dugin a Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, permitiria matizar essa leitura para aperfeiçoar e especificar a aplicação do conceito da pseudomorfose arqueomoderna ao Brasil.

Em primeiro lugar, porque quanto ao elemento europeu no Brasil seria fundamental distinguir dois momentos: o período colonial e o período imperial-republicano. O elemento português no período colonial não pode ser visto como um elemento modernizador – exceto, naturalmente, no que concerne a imposição de um modo de produção mais complexo a tribos que ainda viviam o paleolítico. Na verdade, se houve no impulso expansionista português um elemento mercantilista de filiação judaico-burguesa, os nobres portugueses assentados no Brasil desenvolveram um modus vivendi muito mais profundamente feudal do que qualquer coisa vista na história portuguesa, que viu um feudalismo muito limitado.

Os portugueses, vindos no esteio das Cruzadas de Reconquista, e movidos mais por sonhos e projeções utopistas e fantasistas sobre Hy-Brazil, o Reino de Preste João, etc., não foram elemento modernizador ou antitradicional. Nos primeiros séculos ainda é incerto qual será o resultado desse contato, e considerando a predominância do elemento indígena no primeiro século do Brasil, até se poderia falar numa pseudomorfose (na qual, em tese, uma cultura tupi passava a ter que se expressar através de um conjunto simbólico, linguístico e técnico português), mas não numa arqueomodernidade.

Ademais, mesmo a dimensão mítico-irracional do Brasil está repleto de “portugalidades”, tanto na feitiçaria, nos elementos dionisíacos da religiosidade católica (as “simpatias” heterodoxas para santos, etc).

Em meados do século XVII certamente já se pode chegar à conclusão de que o mundo tupi, enquanto complexo cultural-civilizacional autônomo, realmente vai morrer, e que aquilo que está nascendo no Brasil é algo potencialmente novo, a depender de processos de etnogênese para se confirmar.

Um Brasil arqueomoderno é um fenômeno do século XIX. Poucos anos antes, ainda no século XVIII, os agentes intelectuais de modernização, maçons iluministas que iam estudar na Europa e voltavam para implementar seus ideais de “liberdade, igualdade e fraternidade” eram tratados ao modo medieval: esquartejamento, com os membros espalhados por cidades importantes.

O século XIX, porém, representa uma virada significativa na história brasileira. Com a vinda da família real portuguesa e, depois, a Independência, o resultado não foi a busca pelo próprio futuro nas raízes nacionais (mesmo as longínquas, portuguesas). No mundo intelectual e político, os olhos não estavam voltados para Lisboa, mas para Paris e, em parte, para Londres. Com a República, os olhos se voltavam para Washington (e/ou Nova Iorque). Na filosofia, na arte, na religião, na política, o Brasil vai tornando-se cada vez mais um importador daquilo que era produzido no eixo Paris-Londres-Washington; isso no âmbito superestrutural, o das elites portuguesas antigas, portuguesas modernas e mestiças (eventualmente, também ítalo-germânicas e sírio-libanesas). A “Revolta da Vacina”, do início do século XX, é o típico conflito sociocultural arqueomoderno, em que uma elite “esclarecida” é incapaz de se fazer entender pela massa irracional e supersticiosa, levando a um conflito violento.

O caráter moderno da superestrutura brasileira, nunca conseguiu absolutizar-se, porque, mesmo assumindo o controle, ela ainda teve que compartilhar espaço com os resquícios de uma superestrutura lusobrasileira feudalista, consolidado no mundo dos “coronéis”, dos “caudilhos” brasileiros. Vistos de fora, hoje indistinguíveis, com seus ternos, de seus colegas “modernos” das capitais, mas profundamente patriarcais e patrimonialistas, não raro dotados, inclusive, de uma carga mística em sua relação com o povo de sua terra.

Apesar dessa necessidade de algumas especificações, porém, a pseudomorfose arqueomoderna permite estruturar muito bem as reflexões sobre as relações entre elite e povo no Brasil, bem como as contradições entre as pretensões modernizantes das elites urbanas e os apegos arcaicos do Brasil Profundo.

Raphael Machado
Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 53

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