Brasil e China, irmãos de alma

“A maior alegria da vida vem de encontrar almas afins” 1

Brasil e China são nações que compartilham uma afinidade profunda – não apenas por estarem hoje diante de desafios semelhantes no plano internacional, mas por enfrentarem, historicamente, questões estruturais comuns: territórios de dimensões continentais, sociedades marcadas por pluralidade étnico-cultural e o desafio constante de integrar regiões, povos e tempos históricos distintos sob um mesmo projeto nacional. Ambas buscam afirmar sua soberania num mundo ainda regido por lógicas coloniais – seja no campo da economia, da cultura ou do conhecimento. A China soube transformar tradições milenares em força nacional, articulando sua herança filosófica com projetos de modernização soberana. O Brasil, por sua vez, ainda precisa reconciliar-se com sua própria história e libertar-se das dominações externas que persistem até hoje, para caminhar adiante com soberania e cabeça erguida. Mas nenhuma modernização se constrói sem o alicerce da educação e da cultura. A força de uma nação começa na formação de seu povo – na capacidade de pensar criticamente, com lucidez, e de participar ativamente da construção do próprio destino. Essa transformação só se concretiza por meio do acesso universal a uma educação de qualidade e a livros que ampliem horizontes. A primeira modernização que o Brasil precisa empreender é no campo do conhecimento: escolas que formem cidadãos críticos, bibliotecas atualizadas e instituições voltadas à oferta de cultura de excelência. O modelo chinês, que combina tradição e inovação em seus projetos educacionais, pode inspirar o Brasil no resgate de sua riqueza cultural e na construção de um projeto enraizado em valores próprios. Só assim poderemos nos tornar, de fato, altivos – não apenas economicamente, mas espiritualmente soberanos, valorizando nosso imenso patrimônio material e imaterial, como faz com brilhantismo a China.

Desde muito cedo, para mim, as palavras “estado de arte”, “harmonia” e “equilíbrio” estiveram associadas à China. Graças à minha avó – uma mulher à frente do seu tempo, pianista clássica – ganhei, nos anos 1970, um livro intitulado Museo de Pekín2, publicado em espanhol pela editora Labor. Um volume robusto, de capa dura e grande formato, com reproduções primorosas da arte tradicional chinesa, que até hoje considero um verdadeiro tesouro. Naquela época, eu era um jovem típico da classe média carioca, mas fiquei profundamente impactado pelas paisagens envoltas em brumas, pelas árvores retorcidas, pela relação quase espiritual entre os artistas e a natureza. Muitas vezes, sonhava com aqueles cenários. O livro abriu meu espírito à poética chinesa e à sua tradição. Mesmo quando, ao longo do anos 1990, se repetiam no Brasil os clichês sobre a suposta baixa qualidade dos produtos “made China”, minha percepção permanecia intacta e plena de admiração. Como pôde aquela China – ainda tão distante e inatingível – impactar tão profundamente a vida de uma criança brasileira? Isso se deu graças ao acesso que tive à mais potente, perene e transformadora das tecnologias, inventada pelos chineses muito antes de Gutenberg3: o livro impresso.

Esse invento, que chegaria a mim como um objeto fascinante de acervo familiar, tem raízes que remontam ao século XI, quando Bi Sheng4 desenvolveu os tipos móveis de cerâmica, num feito notável frequentemente negligenciado nas narrativas ocidentais. Cabe lembrar que séculos antes disso, já havia sido na China que se inventou o papel, oferecendo ao mundo o suporte leve, durável e acessível que tornaria possível a difusão do conhecimento escrito. Em a adoção dos tipos móveis em larga escala tenha sido limitada na época pelo sistema ideográfico chinês, a ideia central – a reprodução mecânica de textos para circulação ampliada – firmou-se como umas das tecnologias mais poderosas da história humana. Foi graças a esse princípio de reprodutibilidade que, quase mil anos depois, eu ainda criança, tive acesso a livros de altíssima qualidade gráfica e sensível conteúdo visual. A durabilidade dessa tecnologia – continuamente aprimorada, mas essencialmente preservada – impressiona: ela segue mediando encontros entre culturas, gerações e imaginários.

Essa experiência me marcou profundamente e moldou minha trajetória profissional: tornei-me editor de publicações de arte, buscando unir forma e conteúdo com o mesmo rigor e delicadeza que reconheci nos livros da minha infância. As artes gráficas, mais do que um meio técnico, tornou-se para mim uma forma de descoberta do mundo e de auto descoberta – e um modo de transformar percepção em criação. Em 2009, publiquei a terceira edição da Santa Art Magazine5, dedicada a artistas contemporâneos de diversas partes do mundo. Um dos destaques foi o chinês Cai Guo-Qiang6, cuja obra – feita de pólvora – expressa, de modo visceral e poético, a convergência entre tradição e energia transformadora. O texto sobre a sua obra, assinado por Alexandra Munroe7, curadora do Guggenheim, reafirmava, naquelas páginas, a vitalidade da arte chinesa como linguagem universal. Aprendi na prática que publicações dessa natureza se transformam em objetos atemporais e colecionáveis, capazes de levar a cultura de um país a outro como veículos de diplomacia cultural. Ao articularem imagem, pensamento e projeto gráfico esmerado, instauram um espaço de intercâmbio entre diferentes tradições visuais e ampliam, com profundidade, o campo do entendimento entre culturas. A publicação Santa Art Magazine, recebeu em 2013 o Benny Award8, concedido em Chicago, que celebra realizações de máxima excelência na produção editorial mundial. Hoje, diante das novas possibilidades abertas pela modernização chinesa, imagino com entusiasmo a criação de programas editoriais bilaterais que promovam o intercâmbio relevante e atemporal entre as nossas culturas. Levar a arte chinesa ao Brasil e apresentar a riqueza da arte brasileira aos leitores chineses é um projeto inspirador e que faz sentido – e no qual eu adoraria contribuir ativamente, com a experiência de quem acredita, há décadas, no poder transformador e duradouro do livro de arte.

A China transformou-se, nas últimas décadas, em uma potência gráfica global, fundindo tradição e inovação em sua produção editorial. Isso se reflete não apenas em editoras e impressões de alta qualidade, mas também em políticas de estímulo à leitura e à circulação do livro. Iniciativas como o The Library Project9, campanhas públicas de doação de livros, programas de alfabetização em áreas rurais e a modernização de sistemas de bibliotecas em dezenas de cidades mostram um esforço contínuo para expandir o acesso ao conhecimento. Além disso, iniciativas como campanhas nacionais de leitura, promovidas pelo governo e incentivadas pelo presidente Xi Jinping, têm estimulado o hábito da leitura como meio de adquirir conhecimento, desenvolver a moral e fortalecer a identidade nacional. O sistema de bibliotecas públicas foi modernizado com serviços digitais, salas multimídia, empréstimos automatizados e plataformas online que permitem o acesso ampliado ao conhecimento – tecnologia sofisticada, mas sempre em sinergia com o suporte físico do livro e da biblioteca.

No Brasil, porém, o potencial transformador do livro ainda não se traduziu em uma política de cultura que alcance com equidade os diferentes territórios e públicos. Temos hoje menos de três mil livrarias ativas em todo o país, e pouco mais de cinco mil bibliotecas públicas espalhadas de forma desigual, com perda de mais de setecentas unidades nos últimos anos – um cenário preocupante que exige ação urgente. Modernizar o livro não significa apenas substituí-lo por plataformas digitais, mas, também, buscar formas de produção e distribuição que barateiem o acesso, apoiem políticas editoriais públicas e privadas, e revitalizem a cadeia gráfica nacional. É crucial entender o livro – e os espaços de leitura – como eixos civilizatórios que articulam memória, linguagem e soberania cultural. A tecnologia pode – e deve – contribuir com esse processo: a digitalização de acervos, os sistemas de compartilhamento e os recursos de leitura acessível são aliados valiosos. Mas nenhum suporte digital substituirá o gesto tátil, que exige concentração, de abrir um livro. Como bem observou Umberto Eco,10 o livro é uma tecnologia perfeita: não precisa ser recarregado, não se torna obsoleto, resiste ao tempo e oferece algo que nenhum outro meio consegue substituir – o ritual da leitura como presença. Em um momento em que ambas as nações buscam afirmar-se não só como potências econômicas, mas também como civilizações produtoras de cultura, programas editoriais bilaterais poderiam consolidar essa afinidade profunda, promovendo a circulação mútua de obras, autores e visões de mundo. Levar o pensamento chinês às escolas e bibliotecas brasileiras, assim como dar espaço à arte do Brasil na China, seria mais do que uma troca: seria o exercício concreto de tecer um futuro em que a cultura seja o terreno comum de uma modernização enraizada, lúcida e humana.

As trajetórias recentes de Brasil e China revelam posturas distintas diante da cultura e do conhecimento. A China, mesmo diante de enormes desafios históricos, consolidou um modelo que valoriza a educação e reconhece o livro como um vetor estratégico de identidade e soberania. Já o Brasil, apesar de sua impressionante diversidade cultural, ainda hesita em assumir a centralidade do livro como ferramenta de formação e integração nacional. Valorizar as artes gráficas, nesse contexto, não é um gesto nostálgico, mas uma escolha política com implicações de longo alcance: trata-se de apostar na memória, na linguagem e na imaginação como fundamentos de um projeto de país. A afinidade profunda entre Brasil e China – que vai além de semelhanças geográficas ou econômicas – pode encontrar o no intercâmbio editorial um campo fértil de cooperação, capaz de promover um diálogo entre visões de mundo e experiências históricas. Publicações de arte, em especial, têm a potência de condensar pensamento e sensibilidade em objetos que circulam entre culturas, tornam-se acervos, fomentam debates e inspiram gerações.

Se podemos dizer que Brasil e China são, verdadeiramente, irmãos de alma, não é apenas por interesses que geram afinidade no presente, mas por carregarem, em suas histórias, feridas profundas e, ainda assim, uma imensa capacidade de regeneração. O livro de arte, nesse contexto, não é apenas um objeto, mas um porta voz da cultura de um país – capaz de atravessar fronteiras, transmitir valores, aproximar nações. Foi por meio de um livro que, ainda menino, conheci a China. E é por meio dos livros que, hoje, podemos estreitar laços entre as culturas, os imaginários e os projetos civilizatórios de nossos
países. Que este século, enfim, seja nosso – não por imposição, mas pelo soft power11, pela diplomacia cultural e por visões compartilhadas que se imprimem, página a página, com coragem, sensibilidade e imaginação.

  1. Trecho do discurso do Presidente da República Popular da China Xi Jinping na abertura da quarta reunião ministerial do Fórum China-CELAC (Comunidade de Estados Latino- Americanos e Caribenhos), maio de 2025. ↩︎
  2. Título original da obra: Le Mussée de Pékin, publicada pela Éditions de Cercle D’ Art, Paris. Versão Espanhola publicada pela Editorial Labor, S.A. em abril de 1968 ↩︎
  3. Johannes Gutenberg (c. 1400-1468), inventor alemão, é tradicionalmente creditado no Ocidente pela criação da imprensa de tipos móveis por volta de 1440. No entanto, sistemas semelhantes de impressão já existiam na China desde o século IX. ↩︎
  4. Bi Sheng (990-1051), inventor chinês da dinastia Song, é creditado como o criador da impressão por tipos móveis – feita com caracteres de cerâmica – por volta do ano 1040. ↩︎
  5. Santa Art Magazine foi uma revista fine art brasileira, impressa em gráfica plana, de arte contemporânea, editada por Sergio Mauricio Manon entre 2008 e 2013. Com dez edições, tornou-se referência entre publicações de alto padrão gráfico e editorial. Em 2013, recebeu o Benny Award em Chicago como a melhor revista de arte do mundo. ↩︎
  6. Cai Guo-Qiang (n.1957) artista contemporâneo chinês internacionalmente reconhecido por suas obras que utilizam pólvora e fogos de artificio como meio expressivo. Representou a China na Bienal de Veneza em 1999 e foi curador da primeira Bienal de Xangai. ↩︎
  7. Munroe, Alexandra, é curadora, historiadora da arte e uma das principais especialistas ocidentais em arte asiática contemporânea. Atua como curadora sênior do Guggenheim Museum (Nova York). ↩︎
  8. O Benny Award é a mais alta distinção concedida pela Printing Industries of America no concurso internacional Premier Print Awards, reconhecendo excelência em qualidade gráfica e design editorial em escala global. ↩︎
  9. The Library Project é uma iniciativa sem fins lucrativos fundada na China em 2006, dedicada a promover o acesso à educação e à leitura em comunidades rurais da Ásia. O projeto doa bibliotecas completas com livros, estantes e materiais pedagógicos – para escolas e orfanatos, com foco especial em regiões desfavorecidas da China e de países vizinhos. ↩︎
  10. Eco, Umberto; Carriére, Jean-Claude. “Não contem com o fim do livro”. Tradução André Telles. Rio de Janeiro, Record, 2010. ↩︎
  11. Soft power é um conceito das relações internacionais cunhado por Joseph Nye na década de 1990, que se refere à capacidade de um país influenciar outros por meios não coercitivos, como cultura, valores, educação e diplomacia, em contraste com o uso da força militar ou econômica (Hard power). ↩︎
Sergio Mauricio Pinto Martins
Sergio Mauricio Pinto Martins
Artigos: 54

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