A Questão Curda

No coração da região autônoma curda do Iraque, a cidade de Erbil foi recentemente palco de violentos confrontos que evidenciam as crescentes fragilidades do sistema político curdo.

Em Khabat, a oeste da capital, uma disputa territorial e sobre a gestão de recursos hídricos entre a tribo Harki e as forças do Governo Regional Curdo (KRG) deu origem a um conflito armado com bloqueios de estradas, incêndios e tiroteios. A tentativa de prender um chefe tribal, Khursheed Harki, desencadeou uma reação violenta que provocou vítimas mortais e feridos entre civis e forças de segurança[1]. Este episódio, embora circunscrito, revelou as fissuras profundas no interior do sistema político curdo: as tensões entre clãs, o autoritarismo da família Barzani e a crescente pressão externa por parte de atores regionais como o Irã[2]. A complicar ainda mais a situação está o envolvimento indireto das milícias xiitas Hashd al-Shaabi e a proximidade dos jazigos estratégicos de gás, tornando evidente o quanto a estabilidade da região curda depende de frágeis equilíbrios internos e influências geopolíticas externas.

Estes eventos não representam uma mera exceção, mas sim o sintoma de uma crise mais ampla e profunda que afeta todo o espaço curdo, fragmentado entre diferentes Estados nacionais e marcado por uma multiplicidade de atores políticos e sociais em conflito entre si. No entanto, no discurso público de muitos setores progressistas ocidentais, a causa curda continua a ser interpretada numa chave quase mitológica, como símbolo absoluto de resistência, emancipação e autodeterminação. Esta narrativa, frequentemente sustentada por visões simplificadas e por uma forma de orientalismo benevolente, tende a ignorar ou a minimizar as profundas divisões internas, as dinâmicas de poder de tipo feudal e as contradições de natureza ideológica e social que atravessam os territórios habitados pelos curdos.

A abordagem ocidental à questão curda é, portanto, frequentemente caracterizada por um excesso de emotividade e por uma carência de análise política fundamentada. Parte-se, na maioria dos casos, de um pressuposto ideológico: os Curdos como um povo historicamente oprimido, privado de um Estado e, por isso, legitimamente autorizado a lutar pela sua autodeterminação. Embora haja elementos de verdade nesta leitura, ela torna-se problemática no momento em que é aplicada de forma indiferenciada a contextos diversos como a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irã, ignorando as especificidades locais, as divergências políticas entre as lideranças políticas curdas e a efetiva composição social dos territórios envolvidos. A ideia de uma entidade “curda” homogênea, coesa e progressista não resiste ao teste dos fatos históricos e sociopolíticos.

Este ensaio pretende propor uma leitura crítica e multidimensional da questão curda. A partir de uma análise linguística que evidencie a pluralidade das línguas e dos dialetos curdos, passaremos a examinar as implicações geopolíticas da questão, a natureza das estruturas de poder nos territórios curdos, as ambiguidades do chamado “confederalismo democrático” e as incongruências do apoio ocidental. O objetivo é fornecer um instrumento analítico que permita superar o sentimentalismo dominante e abordar a questão curda pelo que realmente é: uma questão política complexa, interna e externa, carregada de contradições e destinada a permanecer por resolver se for abordada com as lentes da ideologia em vez da realpolitik.

Fragmentação linguística e identitária: uma nação nunca unida

Um dos principais erros conceptuais no discurso ocidental consiste em tratar os curdos como um grupo étnico e linguístico homogêneo. Do ponto de vista linguístico, o chamado “curdo” é na realidade um conjunto de variedades pertencentes ao ramo noroeste das línguas iranianas. Existem pelo menos três grupos principais: kurmanji, falado sobretudo na Turquia, Síria e Armênia; sorani, difundido no Iraque e no Irã; e pehlewani ou xwarîn, menos documentado e presente nas áreas meridionais iranianas. Estas variedades, embora partilhem uma origem iraniana comum, apresentam diferenças fonéticas, gramaticais e lexicais notáveis que comprometem a inteligibilidade mútua. Apesar das tentativas de padronização linguística, ainda não existe hoje uma forma escrita unificada do curdo que possa ser utilizada transversalmente nos vários territórios curdos.

A ausência de uma língua padrão reflete uma identidade fragmentada também a nível cultural, social e político. A esta complexidade somam-se línguas como o zazaki e o gorani, frequentemente consideradas parte do mundo curdo a nível político ou identitário, mas linguisticamente separadas. O zazaki, por exemplo, é uma língua iraniana noroeste que partilha raízes comuns com o curdo, mas que se desenvolveu autonomamente durante séculos. Os falantes de zazaki são frequentemente alvo de curdificação cultural, mas entre eles existem também fortes reivindicações de distinção identitária. O gorani, falado historicamente em algumas zonas do Iraque e do Irã ocidental, é também uma língua separada que teve, no passado, uma produção literária e religiosa própria.

Para além da questão linguística, há uma significativa fragmentação religiosa. Embora os curdos sejam maioritariamente muçulmanos sunitas, existem amplas comunidades xiitas, alevitas, yazidis e cristãs. A religião não é apenas um fator espiritual, mas representa também um elemento de diferenciação identitária, especialmente nos contextos em que as autoridades políticas instrumentalizam a pertença confessional para reforçar ou enfraquecer o sentido de pertença nacional. Os curdos yazidis, por exemplo, embora falem maioritariamente kurmanji, consideram-se uma comunidade distinta, vítima tanto do ISIS como das milícias curdas que nem sempre lhes garantiram proteção.

A sociedade curda está além disso estruturada de modo fortemente tribal, sobretudo nas áreas rurais do leste da Turquia, do norte do Iraque e do oeste do Irão. As estruturas clânicas (aşiret) dominam a vida social e política local, com chefes tribais que detêm autoridade sobre centenas ou milhares de famílias. Estas estruturas alimentam divisões e rivalidades que se refletem nas dinâmicas políticas e nos conflitos armados. Em algumas áreas, os clãs curdos colaboram com o Estado central, enquanto noutras apoiam movimentos separatistas ou autonomistas, dando origem a uma geografia de alianças fluida e contraditória.

As divisões não terminam aqui. No âmbito político, os principais partidos curdos, como o PKK na Turquia, o KDP e o PUK no Iraque, têm visões do mundo, estratégias e alianças internacionais muito diferentes entre si. Por várias ocasiões, confrontaram-se mesmo militarmente. A luta pelo controle do território e dos recursos, assim como a concorrência pela direção simbólica do movimento curdo, produziu uma realidade fragmentada e frequentemente conflituosa.

À luz destas considerações, falar de um povo curdo como sujeito unitário parece mais uma operação retórica do que uma realidade historicamente e sociologicamente fundamentada. A variedade linguística, as fraturas religiosas, o tribalismo enraizado, a pluralidade de visões políticas e a diferente distribuição socioeconómica das populações curdas sugerem antes a presença de uma multiplicidade de comunidades curdas, conectadas por alguns elementos comuns mas também profundamente diferenciadas. A identidade curda, longe de ser unitária, é um mosaico complexo e em contínua evolução, influenciado por dinâmicas internas e externas, locais e globais.

A questão curda na Turquia: negação, repressão e sobrevivência cultural

A história da questão curda na Turquia está indissociavelmente ligada ao nascimento da República e à construção ideológica do kemalismo. Após a queda do Império Otomano, a República Turca foi fundada em 1923 sob a liderança de Mustafa Kemal Atatürk. O novo Estado republicano adotou um modelo fortemente centralista, laico e nacionalista, que impunha uma visão monolítica da identidade nacional turca fundada na unidade linguística e cultural. Neste contexto, as diferenças étnicas, linguísticas e religiosas não só não foram reconhecidas, como foram ativamente negadas. A homogeneização forçada foi justificada como necessária à modernização e à sobrevivência da jovem República num contexto regional e internacional instável.

Os curdos, que durante o período otomano tinham gozado de uma certa autonomia através do sistema dos millet e das autonomias tribais, encontraram-se subitamente transformados numa população invisível. A expressão “Dağ Türkleri” (turcos das montanhas) tornou-se o termo oficial com que o Estado identificava os curdos, negando a sua existência como grupo étnico distinto. A língua curda foi banida do ensino, da mídia e da vida pública, e cada tentativa de reivindicação cultural ou política foi reprimida com extrema dureza. A identidade curda foi tratada como uma patologia a corrigir, um desvio da norma turca que devia ser assimilado ou suprimido.

O primeiro grande sinal de oposição foi a revolta de Şêx Seîd em 1925, uma rebelião de caráter tanto religioso como nacional que foi brutalmente suprimida. Ela nasceu também como reação à supressão das confrarias religiosas e à imposição do laicismo kemalista, que atingia duramente os valores religiosos e tribais das comunidades curdas. A repressão foi impiedosa: mais de 15.000 pessoas foram mortas, e dezenas de milhares foram deportadas. As regiões rebeldes foram submetidas a um rígido controle militar, e muitas autoridades religiosas e tradicionais foram eliminadas.

Nos anos seguintes, a estratégia do Estado tornou-se ainda mais sistemática. Em 1930, a revolta do Monte Ararat foi organizada pelo movimento nacionalista curdo Xoybûn, que tentou estabelecer uma república independente numa área montanhosa do leste da Turquia. Também neste caso a repressão foi total: a aviação turca bombardeou as posições curdas durante semanas, e o movimento foi rapidamente aniquilado. Mas o evento mais trágico foi a revolta de Dersim de 1937-’38. Aí, o Estado levou a cabo uma verdadeira campanha de aniquilamento: aldeias inteiras foram bombardeadas, os chefes tribais foram eliminados, e estima-se que mais de 70.000 pessoas tenham sido mortas ou deportadas. A população alevita e curda da área foi completamente desarticulada, com efeitos duradouros no tecido social e demográfico da região.

A Turquia kemalista, ao longo destas décadas, pôs em prática um projeto coerente de “engenharia social” visando a assimilação forçada dos Curdos. As escolas estatais ensinavam uma única versão da história, na qual os Curdos eram inexistentes ou descritos como selvagens. Os mapas geográficos apagavam os topônimos curdos, substituindo-os por nomes turcos. As famílias que davam aos seus filhos nomes curdos eram penalizadas. As autoridades locais atuavam como agentes de uma cultura dominante que impunha a renúncia à própria identidade como condição para a integração.

Durante os anos da Guerra Fria, o controle estatal intensificou-se ainda mais, com uma militarização massiva do sudeste da Anatólia e a vigilância constante das atividades culturais e políticas dos curdos. A propaganda oficial pintava cada forma de expressão curda como uma ameaça para a unidade do Estado. O golpe de Estado militar de 1980 marcou um ponto de viragem dramático. A nova junta militar impôs um regime autoritário que anulou os partidos políticos, os sindicatos e as associações culturais. A língua curda foi oficialmente proibida não só na mídia e nas escolas, mas mesmo nas conversas privadas e familiares. Cantar em curdo, dar nomes curdos aos filhos ou publicar poesias em língua curda tornou-se um crime punível com a prisão. Milhares de ativistas foram presos, e nas prisões turcas, em particular a de Diyarbakır, foram efetuadas torturas sistemáticas e práticas de humilhação psicológica visando quebrar a vontade de resistência política curda.

Neste clima de terror nasceu e desenvolveu-se o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) fundado por Abdullah Öcalan em 1978, que se tornou rapidamente a principal força armada curda na Turquia. O conflito entre o PKK e o Estado turco degenerou numa guerra de baixa intensidade que causou dezenas de milhares de mortos, a destruição de milhares de aldeias curdas e o deslocamento de milhões de pessoas. As operações militares no sudeste foram acompanhadas por medidas extraordinárias: recolheres obrigatórios prolongados, zonas proibidas, campos militares permanentes, uso de milícias paramilitares (os famigerados “guardas de aldeia”) e amplas zonas sob controle direto dos serviços secretos. Paralelamente, o Estado turco difundia uma narrativa que criminalizava toda a população curda, associando-a ao terrorismo e impedindo-lhe o acesso a uma cidadania plena.

Só a partir dos anos 2000, em parte graças ao processo de adesão à União Europeia e às pressões internacionais, foram dados alguns tímidos passos em frente. As reformas do primeiro governo do AKP incluíram a abolição da proibição da língua curda nos media, a abertura de um canal televisivo curdo (TRT Kurdi) e a possibilidade, ainda que limitada, de ensino da língua curda em escolas privadas. Pela primeira vez após décadas, a língua curda teve um espaço, ainda que controlado, na esfera pública. No entanto, estas reformas foram frequentemente suspensas ou anuladas na sequência de crises políticas, como a de 2015, quando fracassou o processo de paz entre o Estado e o PKK e se reacendeu o conflito armado. As esperanças de uma solução negociada esvaneceram-se, substituídas por uma nova temporada de prisões em massa, nomeação de administradores para municípios liderados por curdos e encerramento das sedes dos partidos pró-curdos.

Hoje, apesar da existência do Partido da Democracia dos Povos (DEM) e de outras iniciativas políticas e culturais, a situação dos curdos na Turquia mantém-se crítica. O uso da língua curda continua a ser obstaculizado, numerosos expoentes políticos curdos estão encarcerados, e o aparelho estatal mantém uma forte presença repressiva nas províncias orientais. A sociedade curda, apesar de décadas de assimilação forçada, conserva uma identidade cultural e política própria, mas esta sobrevivência é o resultado de uma contínua resistência a um projeto estatal que, desde as suas origens, tentou negar a sua própria existência.

O mito da resistência curda: construções ideológicas e realidades contraditórias
No debate ocidental, a resistência curda é frequentemente mitificada como paradigma de luta pela liberdade, autodeterminação e emancipação social. Esta representação reforçou-se em particular com a difusão das imagens das combatentes curdas, as YPJ, durante a guerra contra o ISIS, quando o mundo assistiu com admiração à resistência de Kobanê. A mídia ocidental e muitos intelectuais progressistas projetaram sobre este conflito ideais de emancipação, construindo uma narrativa épica que pintou os curdos como um bloco único coeso, progressista e anti-autoritário, em luta contra as forças do fundamentalismo e da opressão.

Esta narrativa, embora baseada em fatos reais, resulta no entanto parcial e seletiva. Na Síria e no Iraque os curdos experimentaram efetivamente formas de autogoverno, mas em contextos profundamente diferentes. No Rojava sírio, tal experiência emergiu no contexto da guerra civil, apoiada militarmente pelos Estados Unidos na luta contra o ISIS e guiada ideologicamente pelos princípios do chamado “confederalismo democrático”. No Iraque, por outro lado, o Curdistão goza desde 2005 de uma autonomia reconhecida pela Constituição, com instituições políticas próprias, forças armadas (os peshmerga) e uma certa autonomia nas relações internacionais. Ambas as experiências, porém, estão marcadas por contradições internas e mantêm-se fortemente dependentes dos equilíbrios geopolíticos e dos interesses das potências regionais e globais.

A situação na Turquia é muito diferente: aqui os curdos nunca tiveram uma experiência concreta de autogoverno. As suas reivindicações políticas e culturais expressaram-se principalmente através de partidos legalmente constituídos, mas pontualmente dissolvidos ou reprimidos pelas autoridades estatais. Desde o Partido do Trabalho do Povo (HEP) nos anos noventa até ao atual Partido da Democracia dos Povos (DEM), passando por DEP, HADEP, DEHAP e DTP, cada tentativa de representação política e administrativa curda foi obstaculizada, acusada de ligações com o PKK e atingida por encerramentos forçados, prisões em massa e nomeação de administradores.

Em particular, a ideologia do “confederalismo democrático”, formulada por Abdullah Öcalan como alternativa ao nacionalismo estatista, foi aplicada de modo heterogêneo pelas várias forças curdas e frequentemente chocou com a realidade sociopolítica do território: estruturas tribais enraizadas, fortes desigualdades entre as comunidades e redes clientelares. No caso do Rojava, as instituições locais mantiveram muitas das hierarquias existentes e, apesar da retórica da inclusividade e da igualdade, o poder efetivo permaneceu concentrado numa restrita elite próxima do PYD e do PKK.

Além disso, a narrativa ocidental acerca da igualdade de gênero e do protagonismo feminino nos movimentos curdos, por mais eficaz que seja a nível simbólico e comunicativo, arrisca distorcer a realidade social dos territórios de maioria curda. Para além das representações mediáticas, a estrutura social curda permanece em grande parte marcada por fortes elementos conservadores, por esquemas tribais e por costumes patriarcais bem enraizados. Práticas como a poligamia (kuma), a subordinação das mulheres na vida rural e o poder informal dos clãs continuam a moldar as relações sociais e políticas no terreno. Neste contexto, o Partido da Democracia dos Povos (DEM), frequentemente celebrado na Europa como expressão de pluralismo e progressismo, adotou uma abordagem tática, herdada do HDP, que privilegia a cooptação de figuras religiosas ou tradicionalistas para consolidar o consenso local. Candidaturas como as de Hüda Kaya, conhecida pelas suas posições islamistas, ou de Altan Tan, expoente de orientação conservadora, mostram como as escolhas políticas nos territórios curdos são frequentemente condicionadas por lógicas de equilíbrio entre modernização aparente e controle dos notáveis. Esta dissonância entre o discurso progressista adotado nas metrópoles e as práticas adaptativas no terreno reflete um cálculo político funcional à gestão do poder, mais do que a uma real transformação das estruturas sociais existentes.

As acusações de limpeza étnica dirigidas às milícias curdas na Síria, especialmente contra as populações árabes e assírias nas zonas reconquistadas, levantam dúvidas adicionais sobre a coerência entre teoria e prática do “confederalismo democrático”. Diversas fontes independentes e relatórios das Nações Unidas documentaram episódios de expulsão forçada, expropriações e reassentamentos direcionados, em particular nas províncias de Raqqa, Deir ez-Zor e Tal Abyad. Embora estas práticas tenham sido frequentemente justificadas em termos de segurança ou estabilização, elas reforçaram a imagem de um projeto etnopolítico curdo em competição com outras identidades locais.

Também a questão das alianças geopolíticas contribui para complicar a narrativa idealizada. Enquanto o PKK continua a ser classificado como organização terrorista pela Turquia, EUA e UE, as YPG/PYD foram apoiadas militarmente pelos Estados Unidos na guerra ao ISIS, gerando uma ambiguidade estratégica que alimentou a suspeita de uma instrumentalização do projeto autonomista curdo por parte das potências ocidentais. No Iraque, o KDP dos Barzani manteve relações estratégicas com Israel e a Turquia, frequentemente em contraste com outros partidos curdos como o PUK ou com as aspirações das comunidades yazidis e assírias.

Finalmente, a figura de Abdullah Öcalan, frequentemente celebrada em certos ambientes ocidentais como teórico do municipalismo libertário, apresenta traços ideológicos complexos e ambíguos. Fundador do PKK em 1978 e rapidamente tornado seu líder carismático, Öcalan está no centro de uma rede de relações opacas desde as origens do movimento. Como evidenciado pelo jornalista investigativo Uğur Mumcu no Kürt Dosyası (1993), já em 1972 Öcalan foi preso juntamente com outros estudantes por alegadas atividades subversivas ligadas à militância em grupos radicais de esquerda, mas foi libertado pouco depois na sequência de uma intervenção do MİT (os serviços secretos turcos), que informou a procuradoria da presença de um seu colaborador entre os detidos — segundo algumas fontes, o próprio Öcalan. Este episódio, nunca totalmente esclarecido, levanta dúvidas sobre a real autonomia do PKK nas suas fases iniciais e alimenta a suspeita de que o Estado turco tenha de algum modo favorecido o nascimento do movimento como instrumento de controle ou fragmentação das reivindicações curdas. A investigação de Mumcu, interrompida tragicamente pelo seu assassinato, punha já a descoberto as contradições internas e as possíveis conivências que pesam sobre as origens do partido, frequentemente ignoradas no debate internacional.

Um elemento adicional discutido no contexto da ambiguidade inicial é o papel do sogro de Öcalan, Ali Yıldırım, que segundo alguns testemunhos relatados por jornalistas e analistas, teria tido ligações diretas com o MİT[3]. Esta conexão familiar levantou dúvidas adicionais sobre a relação entre o fundador do PKK e certos ambientes estatais durante os anos setenta. A imagem idealizada de Öcalan e do PKK como vanguarda revolucionária é posta em causa por uma realidade bem mais complexa, feita de zonas cinzentas, purgas internas, culto da personalidade e práticas autoritárias. A distância entre a ideologia declarada e a prática real mantém-se, portanto, significativa, e quem quiser analisar com seriedade a questão curda não pode ignorar tais contradições nem as hipóteses inquietantes emergidas de investigações independentes como as de Uğur Mumcu[4].

Em definitivo, o mito da resistência curda como vanguarda progressista do Oriente Próximo, embora construído sobre elementos de verdade e vicissitudes reais, requer uma profunda revisão crítica. Só reconhecendo as suas sombras, as incoerências internas e as ambiguidades políticas será possível elaborar uma visão mais equilibrada e responsável de uma das questões mais complexas da área do Próximo Oriente.

Geopolítica e secessão: riscos de balcanização e interferências regionais

Do ponto de vista geopolítico, a criação de um Estado curdo independente representaria uma mudança radical no equilíbrio de poder do Oriente Próximo, e ao mesmo tempo um fator de forte instabilidade para toda a região. O chamado Curdistão histórico estende-se por quatro Estados soberanos — Turquia, Síria, Iraque e Irã — cada um dos quais considera qualquer hipótese de secessão curda como uma ameaça existencial à sua integridade territorial. Um projeto estatal de base étnica, numa área já marcada por fronteiras artificiais e conflitos intercomunitários, arriscaria desencadear reações violentas não só por parte dos Estados interessados, mas também por parte das minorias locais que vivem nos territórios de maioria curda.

O Curdistão iraquiano, embora seja hoje uma região autônoma reconhecida pela constituição de 2005, é constantemente atravessado por tensões com Bagdade e por pressões económicas, militares e políticas provenientes do Irão e da Turquia. As ambições separatistas de Erbil chocaram por várias vezes com a realidade de uma região etnicamente mista, onde vivem também árabes, turcomanos, assírios, yazidis e outras comunidades que temem ser marginalizadas num eventual Estado curdo. O resultado do referendo pela independência de 2017, acolhido com entusiasmo por alguns setores curdos mas isolado a nível internacional, demonstrou a impossibilidade de proceder unilateralmente sem desencadear represálias e bloqueios econômicos, como os impostos por Bagdá e Ancara.

Na Síria o controle curdo sobre o Rojava consolidou-se com o apoio das forças estadunidenses no quadro da guerra contra o ISIS, mas a presença das forças curdas nas províncias orientais do País é vista com hostilidade tanto por Damasco como pela Turquia. Esta última, em particular, iniciou por várias vezes operações militares transfronteiriças para impedir a formação de uma entidade curda autónoma ao longo da sua fronteira sul. Também neste caso, a pluralidade étnica do norte da Síria — onde vivem árabes, assírios, armênios e turcomanos — torna problemática qualquer forma de estatalidade de base exclusivamente curda.

No Irã, onde as reivindicações curdas foram historicamente geridas com rigor e prudência, cada pedido de autonomia é frequentemente lido como parte de uma estratégia mais ampla de desestabilização promovida por atores externos. Teerã considera a questão curda uma possível alavanca geopolítica empregue pelos Estados Unidos e por Israel para exercer pressão sobre a República Islâmica, em linha com uma prática consolidada de contenção regional. Neste contexto, o reforço da presença militar iraniana nas províncias curdas não aparece apenas como uma medida repressiva, mas também como uma resposta preventiva a riscos percebidos de insurreições armadas e de coordenação transfronteiriça com grupos ativos no Iraque e na Síria.

O risco de balcanização é, portanto, concreto. A fragmentação política do mundo curdo, a sobreposição de interesses étnicos e religiosos, e a interferência das potências regionais e globais — Turquia, Irão, Israel, Estados Unidos, Rússia — criam um ambiente geopolítico extremamente volátil. Um eventual Estado curdo, se nascido através da secessão, poderia representar para muitos um precedente perigoso, capaz de alimentar novos pedidos separatistas por parte de outras minorias regionais, como os turcomanos, os assírios, os sírios e mesmo os yazidis.

Neste quadro, a questão curda não pode ser abordada unicamente como reivindicação de autodeterminação étnica. É necessário avaliar as implicações estratégicas de qualquer solução separatista, que arriscaria aprofundar as divisões e criar novos conflitos. Além disso, a dependência militar e política de muitas forças curdas do apoio externo coloca a dúvida se a autonomia que se tenta construir é efetivamente tal ou se não será, em vez disso, uma forma mascarada de neocolonialismo, funcional aos interesses das potências ocidentais no controlo dos recursos e dos corredores energéticos.

À luz destes elementos, uma solução sustentável da questão curda exigiria uma profunda transformação dos regimes políticos da área, no sentido de uma cidadania inclusiva, que reconheça as identidades curdas sem escorregar em projetos estatalistas exclusivos. As ambições nacionais curdas, se não inseridas num processo de democratização regional, arriscam replicar as mesmas lógicas de exclusão e domínio contra as quais historicamente combateram.

Para além do separatismo: cidadania paritária e pluralismo constitucional

A questão curda não encontrará uma solução duradoura na construção de um Estado nacional etnicamente homogêneo. Um projeto semelhante, para além de ser impraticável a nível geopolítico, resultaria eticamente e politicamente problemático numa região marcada por uma longa história de convivência interétnica e por uma composição social complexa. A via mais sustentável e realista passa pela afirmação de um modelo de cidadania paritária, fundado no reconhecimento efetivo dos direitos linguísticos, culturais e políticos das comunidades curdas, sem negar ou subordinar os das outras minorias presentes nos territórios interessados.

Uma abordagem semelhante requer reformas constitucionais profundas nos Países envolvidos, orientadas para a superação de toda a forma de assimilacionismo étnico-cultural, como o de cariz kemalista levado a cabo na Turquia desde o nascimento da República. Tais reformas deveriam garantir igual dignidade jurídica a todas as identidades linguísticas, religiosas e culturais reconhecidas, prevendo, entre outras coisas, a inserção do ensino do curdo, do zazaki, do laz e das outras línguas minoritárias nos programas escolares públicos, com o respetivo financiamento estatal. Além disso, a mídia pública deveria refletir a pluralidade cultural da população, oferecendo espaços proporcionados e representativos.

No entanto, uma política baseada no pluralismo constitucional não se pode limitar a uma soma formal de direitos. Requer uma transformação da cultura institucional num sentido colaborativo e dialógico, através de instrumentos como a representação parlamentar efetiva, a inclusão linguística nos serviços públicos e a promoção de mecanismos de participação cívica que envolvam ativamente as comunidades minoritárias, sem fragmentar a unidade do Estado.

Nesta perspectiva, qualquer hipótese de autonomia territorial ou política baseada em critérios étnicos deve ser rejeitada com decisão. A experiência da autonomia curda no Iraque, embora juridicamente estruturada, demonstrou que a simples devolução de poderes a nível local não só não resolveu os conflitos, como produziu novas tensões, formas de clientelismo, enfraquecimento institucional e impulso para a secessão. Tais resultados, longe de garantir uma convivência pacífica, alimentam dinâmicas de balcanização que desestabilizam ainda mais a ordem regional.

O objetivo deve, portanto, ser o de uma coexistência juridicamente regulada por princípios constitucionais comuns, capazes de garantir a unidade do Estado num quadro de equidade, legalidade e respeito pelas diferenças. Só uma concepção articulada de cidadania, fundada na responsabilidade institucional e na paridade substancial, pode oferecer uma solução duradoura e justa à questão curda, sem recorrer a perigosos desvios autonomistas que minariam a coesão e a estabilidade dos Estados envolvidos.

Conclusão

A questão curda, na encruzilhada entre reivindicações étnicas, competições geopolíticas e transformações institucionais, não pode ser compreendida nem resolvida através de categorias simplificadas ou visões românticas. É antes uma questão estratégica que toca diretamente os equilíbrios regionais, a soberania dos Estados e os interesses das potências externas. A representação da causa curda como luta unitária pela liberdade oculta a profunda fragmentação interna do mundo curdo e as suas ambiguidades ideológicas, assim como minimiza o impacto das dinâmicas tribais, clientelares e transnacionais que influenciam a política curda.

Neste cenário, qualquer projeto de autonomia étnica ou de criação de um novo Estado curdo parece não só impraticável, como desestabilizador. Ele acabaria por fragmentar ainda mais uma área já marcada por guerras civis, fronteiras arbitrárias e conflitos confessionais. A balcanização do Oriente Próximo – já iniciada com os resultados do colonialismo, do sectarismo e do intervencionismo estrangeiro – não pode ser contrariada incentivando novos micronacionalismos, mas apenas reforçando a integridade dos Estados existentes e a sua capacidade de gerir a diversidade interna com base constitucional sólida.

A questão curda é, portanto, antes de mais uma questão de gestão política e de arquitetura estatal. Os Estados envolvidos, a começar pela Turquia, devem adotar modelos institucionais que integrem as minorias sem ceder a lógicas separatistas. A pluralidade linguística, religiosa e cultural não deve ser negada, mas também não deve ser utilizada como pretexto para a fragmentação. O Oriente Próximo precisa de Estados fortes e legítimos, capazes de absorver as diferenças através do direito, e não de entidades fracas prontas a desagregar-se ao primeiro choque geopolítico.

A promoção seletiva de algumas causas identitárias produziu mais instabilidade do que progresso. Em vez de encorajar soluções etnicamente orientadas, dever-se-iam apoiar formas de cidadania juridicamente garantida, tutela dos direitos individuais, reformas administrativas e construção institucional.

Em síntese, a questão curda representa uma pedra de toque das contradições do Próximo Oriente: quem a interpreta apenas numa chave identitária ou ideológica, perde de vista o quadro estratégico mais amplo. Só uma visão orientada para a estabilidade regional, para a coesão dos Estados e para a neutralidade constitucional poderá evitar que a história da região continue a ser escrita com a linguagem da fragmentação e do conflito.

[1] Shafaq News – “Tribal gunfight: Water dispute turns deadly in Erbil”, https://shafaq.com/en/Kurdistan/Tribal-gunfight-Water-dispute-turns-deadly-in-Erbil

[2] Iran Press – “Tribal dispute sparks fatal armed clashes in Iraqi Kurdistan”, https://iranpress.com/content/307801/tribal-dispute-sparks-fatal-armed-clashes-iraqi-kurdistan

[3] Mehmet Ali Güller – “MIT’ten MİT’e Öcalan”, https://mehmetaliguller.com/2013/04/06/mitten-mite-ocalan/

[4] Em seu livro Kürt Dosyası, o jornalista Uğur Mumcu analisa criticamente as origens do PKK, destacando as ambiguidades ideológicas do movimento e as possíveis ligações, diretas ou indiretas, com o aparato estatal turco. A obra reconstrói o contexto político da Turquia dos anos 70 e 80, examinando as estratégias de manipulação adotadas pelos serviços de segurança em relação às organizações radicais e o uso da questão curda como alavanca para o controle político interno. Mumcu defende que o conflito entre o Estado e o PKK não pode ser interpretado como um simples confronto entre opressores e oprimidos, mas deve ser compreendido à luz de uma trama de interesses, infiltrações e instrumentalizações. Ver: Uğur Mumcu, Kürt Dosyası, Ancara: Tekin Yayınevi, 1993.

Fonte: Eurasia Rivista

Gabriele Repaci
Gabriele Repaci

Colaborador da "Eurasia. Rivista di studi geopolitici". Escreve para a revista científica "Das Andere - L'Altro"; já colaborou com a Associação Político-Cultural Marx XXI e com a Arianna Editrice.

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