Meses atrás, enquanto o apresentador televisivo Faustão passava por uma série de transplantes de órgãos (depois de já ter feito vários outros nos últimos anos) a primeira coisa que me veio à mente, enquanto eu ria dos memes, era a coincidência do nome.
Apesar da situação médica de Faustão (nascido Fausto Silva) ser grave e, por conseguinte, se desejar o melhor a ele, não deixou de causar espanto a facilidade com a qual o apresentador desenrolava esses transplantes. Afinal, é notório que, no Brasil, qualquer reles plebeu aguarda, usualmente, anos na fila dos transplantes.
Todo mundo chamou atenção para o poder do dinheiro e como os ricos tudo podem, até conseguir sucessivamente dúzias de transplantes caso seja necessário.
Mas o que me chamou a atenção foi o pavor da morte e o quão longe um homem estaria disposto a ir por medo da morte. Faustão, como a maioria dos ricos contemporâneos (cuja riqueza é inversamente proporcional à sua dignidade), coloca toda a sua existência nas mãos da Técnica, disposto a tudo para perpetuar sua existência – mesmo que ela não passe de um arremedo de existência, uma existência “achatada”, dependente de uma parafernália médico-científica e de mil procedimentos de manutenção.
Um outro Fausto também fez uma barganha para adquirir poder sobre a natureza e a vida e a morte através da Técnica, o da literatura europeia, mais famoso pela obra de Goethe, mas que já havia aparecido antes em Marlowe e através da pena de ainda outros autores.
Em praticamente todas as suas encarnações, Fausto é um cientista desesperadamente ávido pelo conhecimento e pelo potencial, garantido pelo conhecimento, de subjugar as leis naturais. O Fausto de Marlowe, por exemplo, é particularmente interessado pela necromancia. Com o domínio desse conhecimento perfeito das leis naturais, Fausto crê que poderá proporcionar um reinado de prosperidade e abundância para o mundo.
Fausto crê ser um agente do progresso através da Técnica. Um análise do personagem e da impressão que ele deixa na cultura europeia explica o porquê de Spengler ter atribuído o epíteto de “faustiana” à Kultur/Zivilisation ocidental – uma cultura-civilização voltada para a busca do ilimitado, a superação de todos os limites, o eterno “plus ultra”.
O cientista, de fato, vende a sua alma e torna-se capaz de pequenos e grandes prodígios, garantidos por artifícios. Mas independentemente da versão, a barganha sempre leva à tragédia e ao arrependimento, como em Goethe, onde ele tenta usar os seus recém-adquiridos dons para seduzir e controlar uma mulher.
As motivações entre o Fausto da lenda e o Fausto brasileiro são distintas, claro. Para um é a obsessão pela dominação, para o outro é o pavor da morte. O ponto em comum é, precisamente, o Mefistófeles como personificação da Técnica.
A Técnica permite a subjugação da natureza e a instrumentalização das leis naturais para os fins do homem, mas desenfreada, ela assume vida própria para além das possíveis “boas intenções” daquele que a põe em movimento. Mais cedo ou mais tarde ela sempre devora aqueles que pretendem cavalgá-la.
Revelada a sua natureza, teríamos que inverter o famoso dito malicioso e pérfido de Mefisfóteles: “[Eu sou] parte daquele Poder que constantemente quer o Mal e constantemente faz o Bem”.
A Técnica desenfreada é parte daquele Poder que constantemente quer o Bem e constantemente faz o Mal.