O Declínio da Razão e a Agonia da Europa em María Zambrano

No livro “Agonía de Europa”, datado de 1945, María Zambrano manifesta a sua inquietação perante a decadência da Europa, a qual, no seu entender, se configura como uma verdadeira extinção do mundo – entendendo-se esse mundo como circunscrito ao homem europeu.

A Agonia da Europa e o Declínio:

No livro “Agonía de Europa”, datado de 1945, María Zambrano manifesta a sua inquietação perante a decadência da Europa, a qual, no seu entender, se configura como uma verdadeira extinção do mundo – entendendo-se esse mundo como circunscrito ao homem europeu. O texto surge num momento crítico da história: o continente acabava de sair da Segunda Guerra Mundial, devastado materialmente, economicamente e espiritualmente, enquanto a Espanha caía na ditadura franquista, após a vitória nacionalista na Guerra Civil. É neste cenário que Zambrano escreve, e logo na introdução deixa ao leitor um aviso: “o mundo desapareceu, mas o sentir que nos enraíza nele não”1.

Impõe-se, assim, a questão: como se manifesta esse desaparecimento? Quais os seus sintomas e em que se fundamenta este diagnóstico? Em resposta a essa interrogação, é essencial assinalar que, na linguagem zambraniana, tal desaparecimento pode ser interpretado como a perda, por parte da Europa, do seu lugar geofilosoficamente central. A Europa já não é, nesse sentido, “Mitte” – o centro, o coração do mundo -, e com essa deslocação, o mundo, enquanto estrutura de sentido, torna-se mais empobrecido, mais rarefeito.

Esta ideia, embora não referida de forma explícita, revela a influência indiscreta da filosofia de Martin Heidegger, razão pela qual recorri aqui à expressão germânica “mitte”. Com efeito, a filósofa espanhola deixa entrever uma conceção da história de feição eurocêntrica, com claras ressonâncias do idealismo alemão e do romantismo filosófico2, espelhando, inclusive, uma construção histórico-filosófica que traz à superfície marcas do pensamento heideggeriano.

Se, na conceção de Heidegger, a história da Europa poderia ser pensada, em larga medida, como a história do niilismo – tal como o próprio a afirma nas suas lições sobre Nietzsche -, Zambrano apropriá-la-á criticamente, reconfigurando-a à luz da sua sensibilidade singular. Essa apropriação, todavia, mantém-se fiel a uma visão assumidamente eurocêntrica, na qual a agonia da Europa se converte num sintoma de um colapso mais vasto: o da civilização enquanto morada do sentido.

Nesta perspectiva proposta por Zambrano, a centralidade da Europa não se limita a um mero posicionamento geográfico, enquanto ponte entre o Ocidente e o Oriente, mas exprime antes uma posição ontológica: a Europa como lugar originário da pergunta pelo Ser. Este acontecimento inaugural, que emerge com os gregos, é, segundo a autora, progressivamente traído ao longo da história da metafísica ocidental, culminando, na modernidade, no seu esvaziamento mais radical: o niilismo.

Deste modo, ao conceber-se a Europa como uma entidade viva3, que sofre, que se interroga e que se debate com o seu próprio destino, a agonia europeia delineada por Zambrano inscreve-se numa dimensão que transcende o domínio da economia ou da geopolítica. Estes são, para ela, efeitos derradeiros, sintomas visíveis de uma crise mais funda, de ordem espiritual e existencial.

Contudo, neste estádio da análise, os sintomas permanecem ainda difusos, inseridos numa esfera abstrata. Não obstante, Zambrano depressa desvela com precisão o cerne do problema: a decadência da Europa inicia-se com o predomínio de uma razão exclusivamente discursiva e analítica, uma racionalidade fragmentária e objetivante, em detrimento da razão poética, aquela que, desde a aurora helénica, havia fecundado o nascimento da civilização europeia. Assim, aquela que é definida como a história do niilismo, e que é, ao mesmo tempo, a história do Ocidente4, constitui, no entendimento de Zambrano, aquilo a que poderíamos chamar uma história do declínio da razão. Contudo, o que a autora propõe como caminho para a superação deste processo não é, como sugerira o seu mestre Ortega y Gasset nas suas últimas lições, uma simples “reforma da razão”. Antes pelo contrário: o que Zambrano advoga é um retorno ao sentir originário.

A Razão Poética Enquanto Superação do Niilismo:

É de suma importância compreender aquilo que, no entendimento de María Zambrano, conduziu ao declínio da razão. Este tema, que já se inscreve em “Agonía de Europa” (1945), adquire maior centralidade em outros dois textos, nos quais se podem colher algumas conclusões decisivas.

Em primeiro lugar, numa carta dirigida ao escritor Rafael Dieste, a filósofa confessa que não propõe uma simples “reforma da razão”, tal como fora antes sugerido por Ortega y Gasset. Pelo contrário, o seu desígnio consiste em estabelecer uma via interior mais profunda, assinalando: “Razón poética… es lo que vengo buscando. Y ella no es como la otra, tiene, ha de tener muchas formas, será la misma en géneros diferentes”.5

Mais tarde, essa problemática é retomada num ensaio fulcral intitulado “Poema y Sistema”, onde Zambrano explora as duas formas de pensamento e a tensão originária que delas advém: por um lado, o pensamento poético, compreendido como via de revelação, de natureza intuitiva e íntima; por outro, o pensamento sistemático, próprio da racionalidade filosófica edificada ao longo da tradição ocidental. É precisamente dessa cisão – entre o poético e o racional, entre mito e logos – que, segundo Zambrano, nasce a filosofia ocidental. Esta rutura, que inaugura uma nova relação com o real, tem já o seu prenúncio em Platão6.

Embora não se possa afirmar que Zambrano tenha sido, em sentido estrito, uma anti-platónica, é inegável que a influência de Nietzsche se inscreve de forma profunda no seu pensamento. Tal influência revelar-se-á decisiva na construção da filosofia que ela procura instaurar: uma filosofia que recupere o instante perdido da revelação poética, sem renunciar à lucidez da crítica; uma razão transfigurada, enfim, pela força do sentir originário.

Dessa forma, o declínio da razão não é apenas um colapso dos valores supremos que estiveram na origem da Europa, não entendido, porém, como mero processo genealógico, à maneira de Nietzsche, onde a crítica incide sobre o esvaziamento interno dos valores. Também não se apresenta como uma leitura exclusivamente ontológica, centrada de forma reiterativa na problemática do niilismo e no esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit), conforme exposto por Heidegger, em detrimento dos entes e da técnica.

A leitura de Maria Zambrano propõe, antes, uma instância mais profunda e existencial, em que se consuma o exílio do sagrado, consequência do declínio de uma razão que se converte em pura lógica e cálculo, ou seja, numa razão instrumental, tal como configurada pelo pensamento moderno. É essa razão – desprovida de interioridade – que inaugura um modelo de racionalidade que expulsa a alma da experiência filosófica. O cogito ergo sum, no entendimento de Zambrano, representa precisamente esta razão autorreferencial, fundada na dúvida e na abstração, e não na vida vivida ou nos modos concretos de existência.

A partir desta caracterização, o pensamento cartesiano revela-se como um processo técnico, redutor e dualista: o pensamento separa-se da natureza, do corpo e da sensibilidade, instaurando uma cisão que afasta, ou mesmo expulsa, a totalidade da experiência humana. Perde-se, assim, qualquer possibilidade de comunhão com o real, pois a razão assume-se como um instrumento de domínio e controlo, diante de objectos de conhecimento que se tornam disponíveis, manipuláveis, e desprovidos de mistério.

A questão que agora se impõe é saber de que modo se poderá retornar a esse sentido originário. Se, no que concerne à análise do declínio da razão, se reconhecem as influências decisivas de Nietzsche e Heidegger, já no que respeita à possibilidade de restauração, María Zambrano aproxima-se sobretudo dos filósofos pré-socráticos7, cuja filosofia ainda não se encontrava separada da dimensão poética e sagrada.

Cumpre, contudo, assinalar que Zambrano não opera esse retorno a partir do vazio: há também uma continuidade com o impulso reformador que atravessa o pensamento espanhol contemporâneo, em particular com o Regeneracionismo do final do século XIX, cuja influência se prolonga pela primeira década do século XX. Movimento este que procurava diagnosticar as causas do atraso histórico e civilizacional de Espanha, propondo reformas de índole educativa, política e económica. Ainda que Zambrano partilhe essa inquietação face à decadência do panorama cultural e espiritual espanhol, a sua proposta distingue-se profundamente quanto aos meios e aos fins da regeneração necessária. Com efeito, o Regeneracionismo espanhol ainda depositava a sua esperança numa razão técnico-científica e no progresso institucional8. Ora, Zambrano afasta-se desse paradigma ao procurar uma razão reencontrada na sua vertente mais íntima e originária, uma razão encarnada e poética, que não operasse unicamente no domínio político (ou, pelo menos, que não começasse por aí), mas que, antes de tudo, atuasse a nível existencial, capaz de reintegrar o mistério, a revelação, a mística e todos os elementos que a modernidade cartesiana expulsara.

É, então, em 1956, com o escrito “Diotima de Mantinea”, que Zambrano propõe o regresso à razão poética, personificando-a através de diversos símbolos, destacando especialmente o de Diotima, a qual assume como símbolo da sabedoria esquecida. Este princípio visa unir os elementos que, com o advento da modernidade, se dispersaram: o conhecimento ao amor, o pensamento à vida, a razão à poesia. Tais circunstâncias estavam, até à cisão moderna, intimamente unidas. Essa união permitirá restabelecer um saber da alma e, subsequente a este, um saber do corpo, sendo este, sobretudo, o encontro da alma com a terra – o que torna evidente, mais uma vez, a influência nietzscheana na sua abordagem. O simbolismo que acompanha este movimento é de tal forma profundo que a razão poética passa a ser também designada como razão simbólica, ou, de certa forma, pode assumir essa denominação.

O ponto crucial, no entanto, é que todo esse simbolismo se concentra no coração, que, para a filósofa, se torna o ponto de conexão onde se dá a união do mundo, da terra e da alma. É aqui que a matriz poética de Zambrano se revela, pois o coração é o centro da integração de todos esses elementos. Muitos dos seus últimos escritos, em particular os poemas líricos mais tardios, incorporam esta hermenêutica simbólica, como exemplificado em “La tumba de Antígona” (1967) e no seu penúltimo livro, “Los Bienaventurados” (1990)9.

Neste ponto do seu percurso filosófico, María Zambrano configura uma verdadeira poética do pensamento, onde a filosofia interliga-se com o mistério e o saber emerge não enquanto simples sistema fechado, mas como desvelamento à verdade vivida. Esta nova razão poética, não ambiciona substituir a razão discursiva, mas reintegrá-la num plano mais amplo, onde o humano, na sua totalidade, possa novamente habitar o sentido. É, portanto, por intermédio desta perspetiva que a razão poética se revela não apenas como uma instância alternativa, mas como um novo modo de ser e de relação. A sua vocação é ontológica como visto anteriormente: não se limita a conhecer o real (não é cartesiana), mas visa coabitar com ele, desvelando-o.

Ora, esta proposta conduz assim a uma revalorização do mito, não enquanto narrativa primitiva, retrograda, a ser superada, mas como forma primordial de relação com o mistério. O mito é assim interpretado por Zambrano enquanto “saber” que antecede a cisão entre sujeito e objeto, Por isso, é na mitologia que a razão poética reencontra o seu lugar: não como explicação racionalizante, mas como participação simbólica no real. Neste contexto, a figura de Antígona passa, mais tarde, a assumir uma relevância decisiva. Vejamos em “La tumba de Antígona”, Zambrano reinterpreta a tragédia sofocliana à luz da sua filosofia, fazendo da Antígona um símbolo da consciência sacrificada pela razão de Estado e pela racionalidade instrumental. Antígona é, neste sentido, a grande mártir da razão poética; a sua morte representa o exílio, a expulsão do sagrado.

A filósofa, ao longo de todas as suas últimas obras, insiste nesta ideia que tenho vindo a referir: a linguagem poética é a única capaz de aceder à verdade última, precisamente devido a não ser exclusivamente retórica, é êxtase; não é manipulação, é revelação. A sua origem está agregada a movimentos existenciais que a razão técnica não consegue sequer conceber.

Notas

1 María Zambrano, A Agonia da Europa, trad. João Maria Lourenço, Lisboa: A Bela e o Monstro, 2022, p. 21.

2 Embora Zambrano tenha sido também bastante crítica do romantismo, especialmente quando, sob a influência de Heidegger, dirige severas críticas ao idealismo de Hegel e a Herder, ambos, figuras de capital importância no romantismo alemão.

3 É importante sublinhar que não se encontra, na obra de Zambrano, pelo menos de forma ostensiva, qualquer apelo a um vitalismo exacerbado. Embora seja evidente a influência de Nietzsche, nomeadamente em certas instâncias relacionadas com o conceito de ‘vontade de poder’, não há qualquer proclamação de uma vitalidade redentora que pudesse facilmente legitimar formas de violência.

4 A história do niilismo enquanto história do Ocidente é uma clara influência heideggeriana, embora não tenha sido transmitida diretamente a Zambrano, já que não existem registos de correspondência entre ambos. No entanto, tal influência chega-lhe mediada através de Ortega y Gasset, que seguiu a linhagem do pensamento heideggeriano.

5 Jesús Moreno Sanz, “La Razón Condescendiente: Historia, Alma, Símbolo y Acorde”, Em Torno de María Zambrano, Câmara Municipal de Lisboa, 1999, p. 20.

6 Confesso que a crítica a Platão me soa sempre obscura, tanto em Zambrano quanto em Nietzsche e Heidegger. É claro em Platão que existem duas formas de razão: a dianoética e a noética, sendo esta última superior e a que possibilita a apreensão intuitiva. Assim, ela assume uma direccionalidade espiritual, distinguindo-se da dianoética, que é meramente funcionalista e voltada para os saberes práticos. Transparece sempre que a crítica desses autores a Platão procura ignorar esse princípio.

7 Os filósofos pré-socráticos que influenciaram Zambrano incluem Heráclito e Empédocles, especialmente pela sua conceção de Logos.

8 Não consegui encontrar fontes claras sobre o pensamento de Zambrano relativamente ao liberalismo, no entanto, parece-me que ela considera as doutrinas liberais como mais um meio de alienação do espírito. Sabe-se, contudo, que Ortega y Gasset se assumiu várias vezes como liberal, não apenas nos seus escritos de juventude, mas também posteriormente. No entanto, era um liberal com fortes determinações pessoais e um certo reacionarismo, como é amplamente reconhecido.

9 Todos estes escritos seguem uma via poética, marcados por um certo abstracionismo. No entanto, é difícil extrair uma práxis, ou um método que transforme essa via intelectual numa via operativa. Contudo, para compreender a razão poética, esses textos são de extrema importância.

Bibliografia

Jesús Moreno Sanz, “La Razón Condescendiente: Historia, Alma, Símbolo y Acorde”, Em Torno de María Zambrano, Câmara Municipal de Lisboa, 1999, p. 20.

Zambrano, María, A Agonia da Europa, trad. João Maria Lourenço, Lisboa: A Bela e o Monstro, 2022, p. 21.

Zambrano, María. Poema y Sistema. Barcelona: Editorial Losada, 1982.

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Guilherme José
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