“O «Reino dos Céus» é um estado do coração – não algo que vem «para além da Terra» ou «após a morte». No Evangelho, falta o conceito global da morte natural: a morte não é uma ponte, uma passagem; ela falta porque se inscreve num mundo de aparências, totalmente diferentes, apenas útil para os signos. A «hora da morte» não é um conceito cristão – a hora, o tempo, a vida física e as suas crises não existem sequer para o mestre da «Boa Nova»… O «Reino de Deus» não é algo que se espere; não tem um ontem e um depois de amanhã, não vem dentro de «mil anos» – é uma experiência num coração; está em toda a parte, e não está em parte alguma…”
– Friedrich Nietzsche (O Anticristo §34).
Questiona-se sobre a possibilidade de um cristão ser nietzscheano, ou de haver alguma dimensão cristã no pensamento de Nietzsche, ou mesmo sobre a possibilidade de reconciliar Nietzsche e o Cristianismo.
Bem, em primeiro lugar, provavelmente nunca houve um pensador mais virulentamente crítico do Cristianismo do que Nietzsche. Nietzsche vê no Cristianismo um impulso de ressentimento que amaldiçoou o mundo com uma transferência de todas as expectativas para um “além-mundo”, na moral cristã uma vingança dos fracos contra tudo que é forte e belo, enfim, como um definitivo “não” à vida, e precisamente por tudo isso, o autêntico precursor do niilismo europeu contemporâneo.
Mas o próprio Nietzsche foi um pensador complexo e multifacetado, que construiu sua visão de mundo dialeticamente. Ademais, é possível ler Nietzsche contra Nietzsche, identificando nele influências e elementos que ele jamais ousaria admitir. Ou seja, Nietzsche precisa ser lido de forma madura, e não de forma dogmática aceitando simplesmente aforismos dele como “sentenças”.
Em primeiro lugar, Nietzsche considera que os séculos de Cristianismo impuseram ao homem europeu um tipo de disciplina que refinou seu intelecto. A luta contra a tirania da Igreja gerou incontáveis gênios europeus – gênios que não existiriam sem o pano de fundo cristão e sem a permanente tensão intelectual com a Igreja. É importante levar em consideração a dimensão agonística do pensamento nietzscheano: o inimigo é o seu melhor amigo. Um bom inimigo faz um grande homem. O tipo do “intelectual europeu” seria impensável sem o “amor pela verdade” e o rigor intelectual na busca por essa “verdade”, inspirados pela cultura europeia moldada pela Igreja Católica.
A “nova aristocracia”, portanto, os “nobres” pensados por Nietzsche serão fundamentalmente pós-cristãos, ou seja, terão sido moldados pelo Cristianismo na mesma medida em que se rebelarão contra a sua moralidade de rebanho.
Interessante, ainda, é o papel atribuído por Nietzsche ao sofrimento. Ao mesmo tempo que critica o ressentimento e a moralidade de rebanho, Nietzsche pensa a nova aristocracia como formada por homens que sabem sofrer, que querem o sofrimento e que impõem a si mesmos um grande sofrimento. O sofrimento, para Nietzsche, é uma grande disciplina, e aqueles que almejam dar fim a todo sofrimento humano (como certo gênero de socialista) são, na verdade, inimigos da humanidade.
“Vocês querem, se possível – e não há mais louco ‘possível’ – abolir o sofrimento; e quanto a nós? – parece mesmo que nós o queremos ainda mais, maior e pior do que jamais foi! Bem-estar, tal como vocês o entendem – isso não é um objetivo, isso nos parece um fim! Um estado que em breve torna o homem ridículo e desprezível – que faz desejar o seu ocaso! A disciplina do sofrer, do grande sofrer – não sabem vocês que até agora foi essa disciplina que criou toda excelência humana? A tensão da alma na infelicidade, que lhe cultiva a força, seu tremor ao contemplar a grande ruína, sua inventividade e valentia no suportar, persistir, interpretar, utilizar a desventura, e o que só então lhe foi dado de mistério, profundidade, espírito, máscara, astúcia, grandeza – não lhe foi dado em meio ao sofrimento, sob a disciplina do grande sofrimento?”
(Friedrich Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal, §225)
O que Nietzsche conclama aqui é a que os homens que almejam se tornar essa “nova aristocracia” tomem suas cruzes, e avancem. E com quem Nietzsche aprendeu sobre o valor do sofrimento na forja de homens senão com o Cristianismo? Certamente não foi com Epicuro.
E o que dizer do valor atribuído por Nietzsche à compaixão, à bondade e ao amor? Para Nietzsche, como se lê no Zaratustra, o infligir dor a outrem é ainda um sinal de carência de pleno domínio de si mesmo. O super-homem é abundante em amor, em generosidade, em compaixão. É, segundo o próprio Nietzsche, “César com a alma de Cristo”, o que permitiu a Karl Jaspers dizer que Nietzsche havia “quase” chegado até Jesus. O homem nobre do Zaratustra é, de fato, um virtuoso, mas ele o é de forma espontânea e autêntica e presta contas disso apenas a seus pares. Ainda assim, o “aristocrata” de Nietzsche não seria simplesmente o cavaleiro cristão, mas privado de todo ressentimento, de toda moral de rebanho, de toda negação da vida?
Há claramente em Nietzsche um desprezo pelo Cristianismo, ao mesmo tempo que um certo reconhecimento cauteloso do valor de Jesus Cristo. Nesse sentido, é como se o desprezo de Nietzsche pelo Cristianismo tivesse sido um rechaço pelo fato de que essa religião, ao longo de sua história, não esteve simplesmente muito aquém de seu fundador. É o desprezo de quem reconhece potencial desperdiçado.
Num sentido ainda mais interessante, é necessário recordar que o próprio Nietzsche era um profundo conhecedor do Cristianismo católico e protestante, incluindo Mestre Eckhart, que ele menciona algumas vezes. Há ecos de Eckhart em várias releituras que Nietzsche faz do Cristianismo, como na citação que abre esses comentários, em que Nietzsche interpreta o “Reino dos Céus” como um “estado do coração”, na linha do misticismo cristão de Mestre Eckhart e do hesicasmo palamita. Nesse sentido, ocasionalmente a crítica nietzscheana pode ser interpretada como uma crítica da vulgarização e plebeização do Cristianismo – em suas sutilezas e complexidades originais – tornada inevitável por sua ampla difusão.
Em alguma medida é como Seraphim Rose interpreta Friedrich Nietzsche e sua percepção do niilismo. Para Rose, Nietzsche era um autêntico buscador de Deus, o que é demonstrado por seu entendimento da perda da significância de Deus para os homens e da ascensão do niilismo.
Concluindo, é necessário abandonar a noção de que os pensadores só podem ser tomados em sua totalidade ou rejeitados em sua totalidade. Diferentes autores cristãos abraçaram aspectos do pensamento de Nietzsche, como seu diagnóstico do presente, ao mesmo tempo que recusando outros elementos, como a ideia do super-homem. Simone Weil, por exemplo, é inspirada pelo “eterno retorno” e pela “afirmação da vida”, Léon Bloy concorda com a descrição nietzscheana do fenômeno do niilismo, Miguel de Unamuno abraça o sentido trágico da vida – todos esses, enquanto cristãos, rejeitam o Übermensch e outras formulações nietzscheanas.
Uma leitura cristã positiva de Nietzsche, incluindo a aceitação parcial de sua crítica da história do desenvolvimento do Cristianismo na Europa, não só é possível, como é necessária e algo que já tem sido feito há algumas décadas.