Francisco, enquanto Papa, pode ser considerado um renovador da Doutrina Social da Igreja, atualizando, através de suas encíclicas, o espírito da Rerum Novarum.


Rejeição da “cultura do descarte”, condenação do lucro como fim em si mesmo, críticas abertas à ilusão da inutilidade da intervenção pública na economia, defesa dos últimos, dos pobres, dos deficientes e marginalizados, duras condenações à “especulação financeira com o lucro fácil como objetivo fundamental”, definida como “massacre”, e rejeição total aos dogmas dominantes da ideologia neoliberal, como o mito da autorregulação dos mercados e o dos benefícios do individualismo. Ao longo de seu pontificado, o Papa Francisco avançou a doutrina social da Igreja, ampliando uma crítica aos excessos do capitalismo que seus predecessores – de João XXIII a Bento XVI, passando por Paulo VI e João Paulo II – estabeleceram como pedra angular da doutrina social da Igreja. Com o Papa vindo “do fim do mundo”, essa crítica transformou-se numa verdadeira excomunhão de uma economia que oprime a humanidade, asfixiando a pessoa. O Pontífice o escreveu em suas últimas meditações da Via Sacra da Sexta-Feira Santa e o reafirmou durante todo o seu pontificado.
“Fratelli tutti”, a encíclica para curar um mundo doente
A encíclica Fratelli tutti, assinada pelo Papa Francisco em Assis em 2020, e a exortação apostólica Laudate Deum de 2023 contêm esses importantes elementos de crítica à ideologia econômica dominante e inserem-se, reforçando os conceitos elaborados nas últimas décadas, numa tradição pluridecenal de elaboração da doutrina social que levou a Igreja a criticar duramente os excessos da ideologia neoliberal e do crescente predomínio da economia e das finanças sobre os povos, seus direitos e seus destinos.
Na encíclica – para cuja análise precisa e pontual remetemos a um interessante estudo do jovem teólogo Piotr Zygulski publicado pela Kritica Economica -, Bergoglio interveio no auge do debate econômico e político sobre a crise da globalização e seus mecanismos de governança, no qual, além do aumento das oportunidades de investimento, crescimento e desenvolvimento da produção e do comércio, as nações também enfrentaram riscos sistêmicos ligados à crescente competitividade entre países e à gradual marginalização dos últimos, dos derrotados, vítimas de desigualdades crescentes, pobreza e cortes nos serviços sociais.
Percebe-se na encíclica o eco de um posicionamento cada vez mais firme do mundo católico contra o neoliberalismo, agravado pela pandemia de coronavírus: próximo à Páscoa, dois economistas muito respeitados no âmbito católico – o presidente da Pontifícia Academia de Ciências Sociais, Stefano Zamagni, e o francês Gaël Giraud – deram forma concreta ao alerta do Papa sobre a impossibilidade de “viver saudáveis num mundo doente” nos tempos da Covid-19, destacando, respectivamente, como nos anos seguintes “o inimigo número um será o neoliberalismo” e seria necessário iniciar a recuperação pós-crise no caminho do fortalecimento do welfare, da proteção ao trabalho e da ênfase nos gastos públicos. Advertências que, quando seguidas (como na Espanha), criaram as bases para uma efetiva recuperação.
“Laudate Deum”, a exortação contra o liberalismo
Três anos depois, o Papa Francisco voltou à carga com a “Laudate Deum”, na qual denunciou a mortificação do homem dentro do sistema social. A exortação é direta. Desmonta, como escrito na True-News, os mitos do liberalismo e da tecnocracia. Defende uma profunda desconfiança em relação às ideologias que acreditam que “a realidade, o bem e a verdade brotem espontaneamente do próprio poder da tecnologia e da economia”, pois “daí passa-se facilmente à ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que tanto entusiasmou economistas, teóricos das finanças e da tecnologia”.
Com um profundo apelo ao justo meio e à superação do mito do crescimento infinito, Francisco advertiu na exortação que não se deve pensar que se possa “aumentar além de qualquer imaginação o poder do homem, para o qual a realidade não humana é mero recurso a seu serviço. Tudo o que existe deixa de ser um dom a ser apreciado, valorizado e cuidado, e torna-se escravo, vítima de qualquer capricho da mente humana e de suas capacidades”.
O Papa Francisco foi o pontífice que olhou além do desencanto do capitalismo contemporâneo, especialmente de seus excessos. Sobretudo, Bergoglio pôde contemplar um caminho consolidado de aprofundamento doutrinal e cultural traçado por seus predecessores. Visionários ao revitalizar a doutrina social da Igreja após o Concílio Vaticano II e o gradual avanço da globalização, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI marcaram grandes progressos nesse sentido, consolidando no mundo católico a rejeição do lucro como fim em si mesmo, a proteção do trabalho e dos bens públicos e a recusa do individualismo de matriz evangélico-protestante inerente à ideologia econômica dominante.
A Populorum Progressio de Paulo VI, neste contexto, abriu o caminho. O papa bresciano, na encíclica de 1967, lançou um severo alerta contra as desigualdades, difundindo cada vez mais o conceito de desenvolvimento humano integral. Para Montini, “o desenvolvimento não se reduz ao simples crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, ou seja, voltado à promoção de cada homem e de todo o homem. […] No desígnio de Deus, cada homem é chamado a um desenvolvimento, porque cada vida é vocação”. Uma chave de leitura que levou ao gradual fortalecimento de uma reflexão sobre um “novo humanismo”, capaz de colocar a pessoa em sua integralidade – e não apenas o consumidor – no centro do discurso econômico, denunciando a exploração, a desvalorização do trabalho e a submissão à lógica do lucro de bens públicos e instituições comuns.
Esboçada no brevíssimo pontificado “de medietate lunae” de João Paulo I, essa visão foi ampliada e sistematizada por João Paulo II e Bento XVI, em dois pontificados que tiveram como elo justamente a grande influência teológica, doutrinal e cultural de Joseph Ratzinger. João Paulo II, conhecido por suas duras críticas à ideologia do socialismo real, também dirigiu palavras incendiárias à submissão de povos e nações à ideologia de mercado. Na encíclica Sollicitudo Rei Socialis (1987), Wojtyla “sacralizou” a doutrina social: o Papa polaco recordou ao povo cristão que ela “não pertence ao campo da ideologia, mas da teologia e, especialmente, da teologia moral”. Diante do crescente predomínio das finanças, João Paulo II respondeu com a Laborem Exercens (1981), rejeitando a transformação do trabalho em mercadoria e valorizando-o como fonte de glorificação do homem; no plano internacional, condenou a crescente submissão dos países em desenvolvimento à dívida externa e, em 1993, numa entrevista ao La Stampa, foi radical: “Na minha opinião, na origem de muitos graves problemas sociais e humanos que hoje atormentam a Europa e o mundo estão também as manifestações degeneradas do capitalismo”.
Bento XVI amplificou, de forma proativa, a crítica da Igreja Católica, vinculando a necessidade do “novo humanismo” a uma rejeição dos excessos da sociedade de mercado – que ele via intimamente ligados à ascensão de uma ideologia considerada perigosa, por dar ao homem a ilusão de poder viver sem Deus. Na Caritas in Veritate (2009), Ratzinger expressa esses conceitos, valorizando a ideia de que ao individualismo, à lógica do lucro e à atomização social podem e devem se opor visões de longo prazo mais complexas e articuladas. Na encíclica, como observou Giulio Sapelli, Ratzinger “denunciou a finança como fim em si mesma, a especulação, o desemprego. A Caritas in Veritate é animada por um verdadeiro ato de acusação contra a acumulação capitalista e o lucro como fim em si mesmo”. Ao mesmo tempo, Bento XVI defendeu a ideia de empresa social, tão cara a estudiosos como Zamagni, lembrou a centralidade da figura do empresário e suas responsabilidades sociais, protegendo a Igreja daqueles que, superficialmente, viam a crítica econômica da doutrina social como inspirada em reminiscências de uma ideologia pauperista sem propósito.
O fio vermelho que liga Paulo VI a Francisco, passando pelos pontífices do último meio século, é, portanto, a necessidade de fazer prevalecer o interesse social na ação econômica sobre o cálculo utilitarista e o conceito de uma sociedade competitiva e atomizada. Promove-se, assim, a ideia de que é a cooperação entre homens, povos e nações que deve servir como contraponto ideal aos apetites predatórios inerentes às versões mais extremas e vorazes do capitalismo.
Bergoglio abordou essas questões com uma abordagem distinta, fundamentada na figura do “pobre”, herança de sua formação cultural argentina moldada pela elaboração teórico-política peronista, e acrescentando uma forte sensibilidade ambiental. Mas o cerne de sua crítica é consolidado: de “terceira via” entre capitalismo e socialismo, a doutrina social da Igreja posicionou-se hoje como voz crítica por um capitalismo com rosto humano. Um capitalismo “católico”, oposto ao neoliberal, moldado pelo ethos evangélico-protestante de matriz anglo-saxônica.
Para sua elaboração no Ocidente, faltam, até agora, forças políticas capazes de sistematizar uma energia intelectual, cultural e humana que soube olhar com lucidez para os erros e exageros que produziram, nas últimas décadas, crises e instabilidades sistêmicas. A história recente deu razão ao Pontífice recentemente falecido e convida a pensar que o rumo da doutrina social cristã como voz crítica do capitalismo globalizado está, agora, traçado.
Fonte: InsideOver