Um deus nórdico entre os tupis

“Dizem elles que Santo Thomé, a quem elles chamam Zomé, passou por aqui. E isto lhes ficou por dito de seus passados e que suas pisadas estão signaladas junto de um rio, as quaes eu fui ver por mais certeza da verdade e vi com os proprios olhos quatro pisadas mui signaladas com seus dedos, as quaes algumas vezes cobre o rio quando enche.

Dizem também que quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos índios, que o queriam frechar, e chegando alli se lhe abrira o rio e passara pelo meio á outra parte sem se molhar e d’alli foi para a índia. Assim mesmo contam que quando o queriam frechar os índios, as frechas se tornavam para elles e os matos lhe faziam caminho por onde passasse. Dizem também que lhes prometteu que liavia de tornar outra vez a vel-os.”

Padre Manuel Nóbrega, em suas Cartas do Brasil, escritas entre 1549 e 1560.

Entre os Tupinambás, havia uma lenda sobre uma figura divina, um tipo de legislador branco, vindo do mar, chamado Sumé/Sommay, reza a lenda que ele encontrou os indígenas vivendo como caçadores coletores, e não apenas transformou as restingas em terras férteis e aráveis, como ensinou os indígenas do ramo Tupi, a cultivarem mandioca, a produzir fogo, produzir ferramentas, além de (segundo alguns jesuítas) ter ensinado aos índios a ética e a moral, proibindo endogamia e canibalismo, e introduzindo leis mais rígidas entre as tribos.

Toda o imaginário a cerca de Sumé é messiânico, em parte isso se deve a lenda ter sido transmitida a nós através de antropólogos e historiadores de viés cristão, além é claro de jesuítas, digo isso pois há lendas que contam que Sumé veio milênios antes dos colonos, para avisar que os índios deveriam aprender a “entrar na força” sem a necessidade do uso de plantas de poder, pois um dia essas plantas lhes seriam tomadas por um invasor de além mar, e alguns antropólogos, com base nos ensinamentos indígenas, o interpretavam como um tipo de salvador que era uma emanação do deus primordial Maire Monã, e ele desaparece prometendo um dia retornar para salvar os índios novamente.

Mas aqui vamos explorar um pouco do seu mito à luz da religião indo-europeia.

Pra começar, é interessante ressaltar que os índios descreviam Sumé como um Caraíba (nome dado aos homens brancos, pelo ramo tupi), de cabelo e barba branca longa, que veio do mar flutuando sobre as águas para ensinar cultivo aos homens, e dele surgiu uma linhagem de heróis tupis.

Temos diversos paralelos interessantes na mitologia nórdica sobre o um civilizador vindo do mar, que ensinou os homens a cultivar.

O primeiro paralelo que gostaria de apontar de herói civilizador vindo do mar, e criando uma linhagem heroica, é a história de Sceafa, que é encontrado ainda criança, boiando em um barquinho, carregando um feixe de trigo (símbolo que o associa Freyr, deus agricultor, que também é um patriarca vindo do mar), é coroado rei e sua linhagem é traçada até o rei Æthelwulf de Wessex.

O segundo paralelo que lembra levemente essa história, é o da concepção do Rei Meroveu, que ocorre após uma criatura mítica emergir das águas e possuir uma princesa que estava distraída no litoral, e dessa concepção surge uma dinastia lendária de reis francos.

E por último e mais profundo exemplo comparativo, está Freyr, um deus que veio do mar, sendo ele filho do próprio do deus do mar Njord, que também surgiu no mar, pois como é dito no Poema Rúnico Anglo-Saxão:

“Ing foi o primeiro a ser visto pelos homens entre os dinamarqueses orientais , até que ele partiu para o leste, sobre o mar; sua carroça correu atrás. Assim os Heardings nomearam aquele herói”

Mas as comparações entre Sumé e Freyr não param por aí, pois Freyr também era dotado de uma atmosfera messiânica, visto que segundo a Edda em Prosa, no reinado de Freyr ocorre um período chamado Paz de Frodi, no qual todo o Norte era próspero e nenhuma espada deixava sua bainha, que bate exatamente com a Pax Romana e a Primeira Vinda de Jesus, e esse período se estende após o final de seu reinado e sua morte, pois ele é velado em um Kurgan (uma colina artificial, oca por dentro, com uma câmara mortuária velando um rei), porém seus súditos permaneceram acreditando que ele está vivo e um dia voltará, e continuaram depositando impostos e oferendas em ouro na sua colina, e enquanto essa atividade permaneceu, a paz, prosperidade e fertilidade desse período também permaneceram.

Oferenda de barba, incenso, cera de abelha e âmbar, feitos aos pés do trono de Sumé

Esse conceito de um rei sepultado em uma colina mortuária (King Asleep In Mountain), prometendo um dia voltar em períodos de dificuldades, como por exemplo Arthur, Dom Sebastião, Genghis Khan, é algo muito recorrente na cultura indo-europeia e até mesmo em culturas não europeias mas associadas, como os mongóis por exemplo, e ele nos leva novamente para Sumé.

Acontece que, também temos um tipo primitivo de colina mortuária aqui no Brasil, que são os sambaquis; dunas e colinas feitas do acúmulo de conchas e ossos de peixes, de povos pescadores-coletores do litoral, nos quais algumas tribos sepultavam seus reis, e as próprias colinas mortuárias nórdicas das quais falei no penúltimo parágrafo, possivelmente são evoluções dos sambaquis nórdicos (kjökkenmodding), produzidos por povos paleo europeus que habitavam o litoral do norte europeu.

Curiosamente, apesar do mito de Sumé não ser DIRETAMENTE associado aos sambaquis pelos antropólogos que o destrincharam, as povoações tupinambás que relatam o mito de Sumé de forma mais completa, são exatamente povoações que se instalaram em territórios que pertenceram aos sambaquis anteriormente, e como foi comentado acima na referência às cartas do Padre Manuel Nóbrega, os tupinambás associavam petróglifos e amoladores líticos (monólitos sambaquieiros, dos quais falarei logo mais) a Sumé e os Caraíbas (o povo branco “sobrenatural” do qual veio Sumé), assim como os nórdicos e indo europeus no geral, associavam monumentos líticos paleo europeus, a povos míticos que já haviam sumido no tempo (como na Irlanda, na qual os dólmens e kurgans são associados ao povo das fadas).

O mito de Sumé se encerra exatamente na cidade de Cabo Frio, na qual os caciques se tornam invejosos com a autoridade que Sumé acumulava, decidem matá-lo e o perseguem atirando-lhe flechas, que imediatamente voltam pros seus atiradores, assim como em alguns mitos nórdicos, com o poder das runas, Odin parava flechas no ar (por exemplo no Havamal, no qual é citado “Eu conheço uma quinta: se eu vir atirada com malignidade uma lança passar em meio à hoste, ela não voa tão forte que eu não possa pará-la, se eu vir sinal dela.”), e assim ele atravessa o canal do Itajuru com um único salto, cai do outro lado e corre até o mar, desaparecendo entre as ondas, e prometendo que um dia ele e seus caraíbas voltariam para salvar os indígenas, em um momento de crise.

Trono de Sumé a direita e capela do Morro da Guia ao centro

Em Cabo Frio, há um local chamado Morro da Guia, que acredita-se ter sido inicialmente um templo sambaqui, posteriormente um templo e observatório tupinambá, e mais a frente durante o período colonial, foi construída um convento aos pés do Morro, mas toda noite a imagem de Nossa Senhora da Guia, que ficava no Convento, sumia e aparecia no alto do morro (sobre o templo), e a solução dos frades foi construir uma capela sobre o solo sagrado indigena, em volta da imagem. Ao lado dessa capela, há uma rocha talhada em formato de trono, que os antigos índios chamavam de trono de Sumé, e ao longo do Morro, há diversas pedras sulcadas, que os arqueólogos chamam de amoladores líticos e a teoria mais aceita era de que os sulcos eram usados para amolar ferramentas e armas, e curiosamente esses sulcos eram dispostos exatamente cercando um local sagrado, uma das evidências que atesta a sacralidade dessas amoladeiras, é o relato do Frade André Thevet, sobre ter sido levado junto a sua expedição de franceses, por um cacique em Cabo Frio, até uma rocha sulcada, a qual o cacique disse ter sido marcada por Sumé, um grande herói civilizador daquele povo.

Pedras sulcadas em Cabo Frio

O interessante nesse fato de supostamente existir algum tipo de valor sagrado nas amoladeiras, é de que isso é relativamente comum entre povos indo-europeus litorâneos (e eu particularmente não conheço nenhum outro ramo cultural que sacralize as pedras de amolar),  como por exemplo, entre os nórdicos há a superstição de que uma pedra de amolar nunca pode ser retirada de dentro de casa, as amoladeiras do mundo surgem de um combate entre Thor e o gigante Hrungnir, havia uma certa associação entre as amoladeiras e o deus rei celestial nórdico, sendo o próprio Mjolnir uma amoladeira (os antigos nórdicos usavam de amoladeira, os objetos arqueológicos hoje chamados de boat-axe, utilizados pelos invasores indo-europeus no fim do neolítico e início da idade do bronze nórdica), objetos esses que eram desenterrados, e que as lendas afirmavam terem vindo do céu, e até hoje há uma associação entre essas pedras de amolar e a esfera celeste/divina, pois ainda hoje na escandinávia, tais objetos são considerados amuletos vindos do céu, e mesmo mais ao sul da Europa, em Portugal, existe a crença de antigos objetos líticos são “pedras de raio”, rochas que vem dos céus e podem ser usadas como amuletos e objetos de feitiçaria, e durante a colonização essa crença encontrou certo sincretismo, pois machado lunares e amoladeiras de origem tupi, foram tidos por fazendeiros colonos como pedras de raio também.

Homenagem feita ao nosso camarada Elizeu Gasparini, as portas da capela
Homenagem pra Daria Dugina feita no morro da guia

Mas não apenas isso, como também os amoladores líticos são facilmente encontrados em sítios arqueológicos ao longo do Caminho de Peabiru, uma rota transcontinental que ligava o Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico, passando por países como o Brasil, Paraguai, Bolívia e Peru, e sendo utilizada como rota comercial entre os indígenas brasileiros e os Incas.
Os índios Guaranis afirmavam que essa rota não tinha sido construída por eles, mas sim por Sumé e seus Caraíbas, e é interessante notar o fato disso envolver os Incas, pois isso atestaria as comparações feitas pelo polêmico jornalista e explorador chileno, Miguel Serrano, em seu também extremamente controverso livro “Não Celebraremos A Morte Dos Deuses Brancos”, o qual relata diversos deuses brancos vindos do mar, liderando povos ameríndios, criando linhagens, e jurando um dia retornar para salvar aqueles mesmos povos, mito esse que fez com que os conquistadores europeus fossem enxergados pelos povos nativos, como o retorno dessas entidades benevolentes.

Alguns exemplos citados por Serrano são; Bochica, Viracocha, Kukulkan, Quetzalcoatl e por fim, Sumé, que poderiam ser tanto invasores indo europeus, quanto uma única divindade com características de viajante (como Odin ou Freyr), que usou o Caminho de Peabiru para visitar e civilizar diversas tribos de caçadores coletores, e também é interessante que no mesmo livro, o jornalista afirma que Colombo e os jesuítas vieram com a missão de apagar a vinda desses deuses para cá (consequentemente apagando ou sincretizando lendas indígenas), e sem querer afirmar a historicidade do livro ou negar o quanto o livro é tendecioso as ideologias problemáticas de Serrano, é curioso que o templo de Sumé em Cabo Frio tenha sido coberto pela construção de uma capela, pois a Santa exigia que a capela fosse erguida naquele exato local.

Além de todas essas interessantíssimas evidências históricas e arqueológicas que atestam semelhança entre a cultura nórdica e alguns mitos tupis, e a associação entre Sumé e os povos megalíticos paleo-europeus, também é interessante ressaltar que a figura divina que pode ser tida como o primeiro dos homens entre os tupinambás, se chama Monã, que é curiosamente semelhante ao primeiro homem dos indo europeus Manu, a quem os hindus chamam de Manu, os celtas de Mannanán, e os nórdicos de Mannu, de quem vieram os primeiros patriarcas das tribos, e deles surgem a humanidade (mankind = povo de Mannu).

Além disso, encontramos registros de mitos tupi e guarani, muito semelhantes a mitos nórdicos, como é o caso do Yaguareté-abá, um bruxo que veste uma pele de onça e se torna uma onça humanóide, tal como os berserkers e ulfhednars.

Temos também o mito já citado aqui, da Onça Celeste, destinada a devorar o sol e a lua quando o fim do mundo for consumado, assim como os lobos Skoll e Hati na mitologia nórdica, são destinado a executarem o mesmo, para darem conclusão a Ragnarok.

Ambos os povos adotaram uma postura combativa quanto a esse processo (que era manifesto nos eclipses), acendendo fogueiras e fazendo ritos barulhentos, a fim de impedir que a grande besta celestial devorasse os astros.

Tendo chegado ao fim desse estudo acerca das semelhanças entre a cultura tupi e a indo-europeia, e como seu mito civilizador é exatamente uma divindade branca vinda do além mar, fica a dúvida se os mitos que conhecemos são vindos de um tipo de imaginário coletivo que todo humano partilha, ou se de fato (levando em conta todas essas histórias e coincidências bizarras) uma divindade nórdica esteve aqui no Brasil para civilizar os caçadores coletores, e dar origem ao ramo cultural mais combativo e guerreiro entre os indígenas brasileiros.

Independente do que o leitor acredite, é importante que todos conheçam a lenda de Sumé, e compreendam a importância dele como herói civilizador, como ponte entre dois povos, para a identidade brasileira.

Referências bibliográficas:

Cartas do Brasil (1549-1560), Padre Manuel Nóbrega.

La Cosmographie Universelle (1502-1590), André Thevet.

Les singularitez de la France Antarctique, (1558), André Thevet

Religião dos Tupinambás e Suas Relações com as das Demais Tribos Tupi-guaranis (1950), Alfred Metraux.

Saga Ynglinga (Heimskringla, 1225), Snorri Sturlurson

Edda em Prosa (1220), Snorri Sturlurson

Gesta Regum Anglorum(?), William de Malmesbury

Os Amoladores Polidores Fixos, Revista Arqueologia (2003), Maria Cristina Tenório

As Pedras Sulcadas do Morro da Guia, Cabo Frio, RJ: registros de atividade mineira no período colonial (2020), Soraya Almeida

Thor, estrelas e mitos: uma interpretação etnoastronômica da narrativa de Aurvandil (2018), Johnni Langer

Não Celebraremos A Morte Dos Deuses Brancos (1992), Miguel Serrano.

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João Vicente (Sotz)

Professor de História e Militante da Nova Resistência

Artigos: 54

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