Após mais um atentado escolar é necessário refletir sobre as causas da difusão desse fenômeno no Brasil.
A proliferação de casos de atentados armados a escolas cometidos por adolescentes não é senão um dos sintomas sociais mais evidentes da “americanização” da sociedade brasileira.
Aconteceu, como vocês sabem, mais um, na região nordeste do país, em que uma menina levou uma arma para a escola para tentar cometer um massacre, mas foi impedida antes de efetivamente cumprir o seu desígnio. Sempre que casos assim ocorrem é perfeitamente natural que se busquem soluções, mas como costuma ocorrer, o padrão é que grupos de interesses busquem soluções fáceis que confluam em suas próprias pautas e trabalhos.
Ocorre da seguinte forma: um “grupo de trabalho” ou ONG dedicado ao “combate à misoginia” (por exemplo), se aproveita de algum evento do tipo que tenha vitimado mulheres para produzir um “relatório” extremamente amador e ideologizado cuja função será inflar o “perigo” dos “canais” e “perfis” misóginos em redes sociais. Para isso, se traça relações de associação com casos de violência, por mais que os vínculos sejam frágeis: 1 like, ou 1 amigo em comum, entre milhares, já é suficiente para falar em “rede” ou “bolha”.
Esse tipo de estratégia, por um lado, serve para que setores específicos incitem à perseguição judicial contra seus inimigos ideológicos. Por outro lado, é um ótimo mecanismo de arrecadação do complexo industrial sem fins lucrativos. O Estado repassa verbas para “iniciativas” de ONGs visando “enfrentar” o tal problema fictício em questão.
Os políticos se satisfazem também com esse tipo de solução porque políticos gostam de soluções fáceis, rápidas e diretas para questões polêmicas. Nenhum político vai querer ir fundo nas causas de qualquer problema, afinal, a sua existência está adstrita a ciclos de quatro anos. Ele vive para as próximas eleições e não quer ouvir falar de “questões civilizacionais” ou “crises de identidade”.
O problema, porém, da “americanização” se dá precisamente nesse âmbito.
Em primeiro lugar, os fluxos informacionais mais céleres fortaleceram os aspectos mais imediatistas e disfuncionais da sociedade do espetáculo. Agora, qualquer idiota num interiorzinho do Brasil tem à disposição conteúdo audiovisual que romantiza, normaliza e humaniza serial killers ou outros criminosos em geral. A depender das condições psicológicas do consumidor, é um salto passar de “admirador” a efetivamente se identificar com assassinos e outros elementos perigosos.
Como diz Guy Debord: “Quanto mais ele se identifica com as imagens dominantes de necessidade, menos ele entende sua própria vida e seus próprios desejos. O distanciamento do espetáculo em relação ao sujeito atuante é expresso pelo fato de que os gestos do indivíduo não são mais seus; são os gestos de outra pessoa que os representa para ele.”
Para o jovem disfuncional, o serial killer e monstro vira subitamente o proverbial “literalmente eu”, que estaria encenando (na ficção ou na realidade) o drama da própria vida culminando em um êxtase sangrento (que na vida real é sempre “adiado” pelas convenções sociais e pelo medo) até o ponto em que o consumidor eventualmente passa a querer, como um espelho, representar a representação.
Mas é necessário, aqui, aprofundar num tema que vai além da representação midiática glamourosa e que jaz por trás dela: o fato de que a própria fascinação por serial killers é típica e praticamente exclusiva da sociedade estadunidense.
Apenas nos EUA serial killers como Bundy, Dahmer e Ramirez se tornaram ícones “pop” e figuras “contraculturais”. O motivo para isso é difícil de explicar.
Em um texto de décadas atrás chamado “Metafísica do Crime”, Alexander Dugin comenta que a fascinação pelo crime violento, brutal e grotesco derivaria de uma ressonância inconsciente. Haveria um “monstro” interior em nós que se identificaria com essas figuras bizarras. Poderíamos, aqui, inclusive retornar a cosmogonias e mitos criacionistas que envolvem um “assassinato ritual” em seus atos inaugurais (como o desmembramento de Ymir, a canibalização dos titãs por Urano e dos olimpianos por Crono ou o assassinato de Abel por Caim). Haveria algo de primordial no assassinato, nesse sentido.
Mas se essa “ressonância” da brutalidade é universal, haveria aí algo de particular com os estadunidenses, porque a obsessão deles por serial killers tornou-se um traço cultural específico e, agora, com a sociedade do espetáculo, verdadeiramente um produto de exportação. Alguns psiquiatras examinam o tema a partir da perspectiva da “perversão”. Ou seja, de que haveria alguma íntima perversão na psique estadunidense que encontraria um espelho nessas figuras e, por isso, os elevaria quase ao status de “reis”, elogiando-os com filmes, séries, músicas, e, pior, trivializando-os ao ponto da anedota.
Se trata-se de uma perversão, então, infelizmente, estamos absorvendo essa disfuncionalidade psíquica em escala massificada. Basta ver a popularidade de livros de serial killers e canais de “true crime” no Brasil.
É claro que, em um nível mais profundo, estamos lidando com um problema de niilismo.
Niilismo porque no vazio civilizacional brasileiro todas as perversões e disfuncionalidades do hegemon cultural conseguem fincar raízes por aqui. A civilização ibero-americana sofre de pseudomorfose, tendo tido o seu florescimento interrompido e abortado por coincidir com a ascensão hegemônica da cultura ocidental. Ficamos, portanto, na gambiarra cultural. Temos alguns improvisos, uns arroubos de genialidade, mas de resto é tudo um grande deserto pronto para ser terraformado por Hollywood.
E niilismo, de fato, porque nesse deserto os principais afetados são, obviamente, adolescentes e jovens em geral, completamente privados da possibilidade de crescer em uma sociedade tradicional, abandonados para encontrar seu caminho nos labirintos de uma politeia que nem alcançou seu auge mas já está em decadência – porque absorveu os sintomas de civilizações mais avançadas e maduras e, por isso, compreensivelmente decadentes. Nenhum jovem hoje cresce tutelado por uma rigorosa disciplina social iniciática em que tudo tem o seu lugar e todo mundo tem um caminho a seguir. Tudo é caos, decepção e traição, e tem muita gente que simplesmente não consegue aguentar a pressão.
Esse aí é o iceberg sob a superfície das águas.
Quem acha, portanto, que será possível resolver o problema proibindo as armas, o ódio, a internet, a misoginia, o incelismo, ou o que quer que seja, estará simplesmente enxugando gelo.