A Crise Georgiana

Em meio a interferências externas e à recusa da presidente do país de deixar o poder após o término do seu mandato, a crise política georgiana se aprofunda.

A ex-república soviética da Geórgia está no meio de uma longa crise política orquestrada por seus supostos aliados ocidentais, os Estados Unidos, a OTAN e a UE. A presidente Salome Zourabichvili, que nasceu na França e trabalhou em seu Ministério das Relações Exteriores, se recusa a deixar o poder após o novo Parlamento ter acabado de votar seu sucessor. Ela apoiou os distúrbios incentivados pelo Ocidente nos últimos dois anos, que começaram com os protestos da primavera de 2023 contra a lei de agentes estrangeiros proposta pelo governo do partido Sonho Georgiano.

O Sonho Georgiano é um movimento populista conservador-nacionalista que busca proteger a cultura tradicional e a soberania do país contra todas as influências estrangeiras prejudiciais. Para isso, promulgou uma versão muito mais branda da Lei de Registro de Agentes Estrangeiros (FARA) dos Estados Unidos, com o objetivo de rotular determinados materiais informativos como financiados por fundos estrangeiros ou produzidos por indivíduos ou grupos ligados ao exterior. O objetivo é informar a população para que não seja enganada e possa tomar decisões mais conscientes.

Essa medida serviu como um gatilho para que essas mesmas pessoas e grupos ligados ao exterior tentassem uma Revolução Colorida na primavera de 2023, que, em retrospecto, tinha como objetivo derrubar o partido pragmático Sonho Georgiano e substituí-lo por fantoches ocidentais que abririam uma “segunda frente” contra a Rússia. O Sonho Georgiano se recusou a sacrificar os interesses econômicos objetivos do país ao sancionar a Rússia, assim como não queria arriscar transformar a Geórgia em uma nova Ucrânia provocando uma guerra com a Rússia pela Abkházia ou Ossétia do Sul.

Os leitores devem lembrar que isso aconteceu no período anterior à contraofensiva da Ucrânia, que acabou fracassando; daí a urgência do Ocidente em derrubar o Sonho Georgiano para que a Geórgia pudesse trabalhar em conjunto com a Ucrânia para desestabilizar ao máximo a Rússia. O Ocidente, portanto, nunca perdoou o Sonho Georgiano por permanecer neutro na Nova Guerra Fria durante um de seus momentos mais cruciais. Isso explica por que, no início deste ano, a campanha para a troca de regime foi retomada.

Na época, a tática do Sonho Georgiano para reduzir as tensões foi adiar a promulgação da lei de agentes estrangeiros; os distúrbios voltaram, como era previsível, após a aprovação dessa lei. Zourabichvili se encontrou com seus patrocinadores ocidentais e até convidou alguns de seus representantes mais importantes a Tbilisi para apoiar os manifestantes, que tentaram invadir o parlamento em uma releitura do incidente de 6 de janeiro nos Estados Unidos. A propósito, as eleições parlamentares de outubro foram outro gatilho para distúrbios ainda mais graves.

Isso deveria ter representado o auge da campanha de mudança de regime, que já dura quase 18 meses, mas não teve o impacto esperado, já que o Sonho Georgiano conquistou a maioria dos assentos, como observadores objetivos previam. Os serviços de segurança também evitaram sabiamente o uso de força desproporcional para não fornecer aos agentes estrangeiros e seus patronos imagens descontextualizadas que pudessem radicalizar ainda mais alguns dos manifestantes. A situação permanece tensa, mas, por enquanto, está em grande parte sob controle, embora tudo possa mudar a qualquer momento.

Os eventos recentes levaram à ruptura formal das relações da Geórgia com o Ocidente. O partido Sonho Georgiano congelou as negociações de adesão à UE até 2028 como um ato de respeito próprio, já que não faz sentido continuar tentando ingressar em uma organização que não reconhece o resultado das eleições parlamentares democráticas do país. Em resposta, os Estados Unidos suspenderam sua parceria estratégica com a Geórgia. No entanto, ambas as ações são puramente simbólicas, pois nunca houve uma chance real de que o Sonho Georgiano conseguisse levar a Geórgia à UE ou à OTAN.

Essas duas organizações exigem lealdade ideológica total ao seu hegemônico comum, os Estados Unidos. As únicas exceções são Hungria e Eslováquia, mas isso porque os conservadores nacionalistas populistas chegaram ao poder depois que esses países já haviam aderido. Eles nunca teriam sido admitidos se seus líderes contemporâneos estivessem no comando durante os respectivos processos de adesão. Agora que estão no poder, seus países são isolados dentro dessas organizações e nenhum dos dois representa uma ameaça para os Estados Unidos.

No máximo, são pequenos incômodos políticos, assim como seria o Sonho Georgiano se a Geórgia já tivesse sido aceita na UE e na OTAN quando o partido chegou ao poder e começou a defender os interesses nacionais. No entanto, o desafio do Sonho Georgiano às exigências ocidentais de sacrificar os interesses objetivos do país pelos interesses dos Estados Unidos é uma ofensa imperdoável. Por essa altura, já deveriam ter se rendido ou sido depostos, e não conquistado a maioria parlamentar, apesar de todos os esforços ocidentais.

A importância da Geórgia para o Ocidente vai além da Rússia e dos chamados “valores ocidentais”, pois acredita-se que o país possa desempenhar um papel crucial em ajudar esse bloco a afastar a Armênia da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC). Este país sem saída para o mar tem se distanciado da Rússia nos últimos anos sob a liderança de seu primeiro-ministro pró-Ocidente, que chegou ao poder através de uma Revolução Colorida. A derrota da Armênia na última guerra do Carabaque foi usada como pretexto para acelerar a guinada pró-Ocidente do país, culpando falsamente a Rússia.

A Armênia suspendeu sua adesão à OTSC e cultivou laços militares com a OTAN, especialmente com os Estados Unidos e a França, onde reside parte da diáspora armênia mais ultranacionalista e russófoba. A única maneira de aproximar a Armênia da OTAN é através da logística militar via Geórgia, cujo governo atual pode não querer alimentar as chamas de outra guerra regional. O governo pode optar por fazer concessões temporárias ao Ocidente, permitindo que isso aconteça, ou criar obstáculos a esses planos.

No momento, não está claro qual será sua abordagem para essa questão, mas, a julgar pelo pragmatismo demonstrado ao não sancionar a Rússia e ao não abrir outra frente contra ela, espera-se que o Sonho Georgiano seja, no mínimo, muito cauteloso quanto à ideia de a OTAN transformar a Armênia em um bastião de influência regional. Afinal, os georgianos se opõem a qualquer coisa que possa perturbar o comércio e a segurança do país, e outra guerra motivada pelas reivindicações irredentistas da Armênia poderia causar um duplo impacto nos interesses da Geórgia.

Com o agravamento das tensões entre a Geórgia e o Ocidente, não se pode descartar que o Ocidente ordene aos seus proxies da chamada “Legião Georgiana” que iniciem uma guerra híbrida no país. Esta organização é designada como grupo terrorista pela Rússia devido aos seus crimes de guerra no Donbass. Seus membros possuem vasta experiência, uma vez que estão envolvidos no conflito desde o início, há mais de dez anos. O eventual envolvimento deles nesta crise pode trazer consequências inesperadas.

Em meio a toda essa negatividade, pelo menos há um ponto positivo: o Sonho Georgiano se comprometeu a melhorar as relações com suas antigas regiões da Abecásia e da Ossétia do Sul, com vistas a uma reconciliação, desde que haja vontade política de todas as partes. A Rússia elogiou essa intenção alguns meses atrás, quando foi expressa pela primeira vez, e se ofereceu para facilitar os diálogos na medida do possível. É prematuro prever o que acontecerá, mas certamente este é um sinal positivo.

A Geórgia aprendeu com a experiência da Ucrânia durante a operação especial que a reconciliação é melhor do que a punição, especialmente quando as antigas regiões contra as quais se busca vingança estão protegidas pela Rússia. De fato, uma das campanhas midiáticas do Sonho Georgiano foi contrapor imagens do país às da Ucrânia para enfatizar que o partido quer evitar que a Geórgia siga esse caminho. Será uma jornada longa e de desfecho incerto, mas é nobre que a Geórgia deseje a reconciliação.

Esse é outro motivo pelo qual o Ocidente quer derrubar o governo georgiano, pois qualquer progresso tangível nessa política reforçaria o fato de que o destino da Ucrânia poderia ter sido completamente diferente se tivesse praticado a reconciliação com o Donbass em vez de ser obcecada pela punição, incentivada pelos Estados Unidos. Olhando para o futuro, a Geórgia deve se preparar para mais instabilidade fomentada pelo Ocidente, mas espera-se que continue firme e sirva de exemplo que possa, mais tarde, inspirar outros na esfera de influência ocidental.

Fonte: Katehon

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Katehon
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