Com a reignição do conflito sírio, é necessário revisar o encaixe da Síria nas considerações geopolíticas de outros países.
Com a revolução colorida da Primavera Árabe, uma série de potências regionais, como Turquia, Arábia Saudita e Catar, começaram a financiar a ida de terroristas salafistas de todo o mundo e a armá-los. Era a oportunidade de derrubar o regime ba’athista de Bashar Al-Assad e, com isso, esmagar um dos pilares do Eixo da Resistência liderado por Teerã.
Centenas de milhares de salafistas de todos os continentes foram despejados em hordas intermináveis que forçaram as forças nacionalistas de Assad a recuos permanentes, até ele controlar apenas uma pequena parte do país. Durante este processo, os EUA, que haviam fomentado a Primavera Árabe, também armavam os grupos terroristas e separatistas curdos. Enquanto Israel oferecia apoio logístico, inteligência e tratamento médico.
Eventualmente, com o governo sírio nas cordas no auge da expansão do ISIS, Rússia e Irã intervieram com força total para ajudar Assad a recuperar o controle sobre seu país. Mas o próprio governo sírio recusou compromissos mais profundos tanto com a Rússia quanto com o Irã, e eventualmente um novo equilíbrio foi alcançado, por meio de negociações intermináveis envolvendo todas as potências envolvidas.
Os países árabes restauraram os seus laços com a Síria (com apenas o Catar mantendo-se mais distante), e mesmo a Turquia estendeu a mão para o Irã e a Síria. Em todos esses processos, Rússia e China desempenharam um papel de mediadores, enquanto os EUA se entrincheiraram nas regiões petrolíferas do nordeste sob o controle dos proxies curdos – os quais, não obstante, foram convencidos pelos russos a se reaproximarem de Assad.
Aqui já vemos com clareza que há uma grande quantidade de países com interesses específicos nessa região. Mas não é motivo para surpresa. A região conhecida hoje como Síria sempre foi uma província estratégica para otomanos, mamelucos, abássidas, bizantinos, romanos, retrocedendo até às primeiras civilizações. A região está bem posicionada no Mediterrâneo Oriental e na passagem entre o Oriente Médio e o Egito, para o sul e a Anatólia para o norte.
O status geopolítico relevante da Síria permanece, ainda que a relevância do país varie muito confirme o país em questão.
Para Israel, a Síria constitui um dos alvos primários no Plano Oded Yinon. O Plano Oded Yinon é um projeto israelense que foi exposto nos anos 80, e que previa a desestabilização de todos os países da região por meio de grupos terroristas e separatistas, lançando os países em questão em um caos incontrolável. Essas condições legitimariam que Tel-Aviv instalasse postos de controle e bases avançadas nesses territórios sob a justificativa de montar um cordão de segurança, o que permitiria a golanização dessas regiões no longo prazo. O Plano Oded Yinon, naturalmente, é indissociável da ideia de Grande Israel. Trata-se de um meio para alcançar o fim messiânico, que prevê a totalidade da Síria sob controle de Israel.
O Plano Oded Yinon, porém, só foi retirado da gaveta para valer após o 11 de Setembro, quando ele foi revisado e apresentado ao Pentágono por Israel e promovido pelos neocons na Casa Branca como um projeto de mudanças de regime no contexto da Guerra ao Terror. Para os EUA, porém, a Síria pertencia a um contexto geopolítico mais amplo, que exige a sua decomposição para a formação de um Grande Curdistão monolítico, o que enfraqueceria além da Síria, o Irã e a Turquia. Como esse Grande Curdistão seria, necessariamente, um Estado cliente dos EUA e Israel, você teria aí uma ferramenta importante do atlantismo logo ao sul do Cáucaso. Porque para os EUA, o conflito sírio é apenas um setor no “grande tabuleiro de xadrez” da pressão geopolítica contra o Heartland a partir do Rimland. O Heartland, o “Coração da Terra”, que possui na geopolítica clássica o papel central nos eventos geopolíticos mundiais, e que corresponde hoje em termos estatais à Rússia, deve ser enfrentado pela pressão de um cerco a partir da Europa Oriental, do Oriente Médio, da Ásia Central e do Extremo Oriente. Naturalmente, existe uma dimensão extrativista na ocupação militar estadunidense do território curdo da Síria, mas o interesse econômico é suplantado pelo interesse geopolítico.
Na medida em que, em tese, seria possível derrotar a Rússia a partir do Rimland, também sempre foi parte do interesse geopolítico da Rússia estabilizar os países do Rimland e garantir que eles fossem governados por regimes amistosos. Nesse sentido, o cerco é impedido através da investida na direção do Rimland. Para a Rússia, portanto, em primeiro lugar, a Rússia é um dos países do Rimland cuja amizade e estabilidade garante a segurança da própria Rússia. Mas expandindo a partir daí, a Síria representa também um porto seguro indispensável na busca russa por garantir acesso aos mares quentes, por causa da base de Tartus.
Para a Turquia, a Síria representa um obstáculo para a consecução do projeto neo-otomanista de Erdogan. Por isso, Ancara instrumentaliza milícias turcomanas para basicamente expandir a zona de controle turco para o sul. Trata-se aí de um projeto que vai do controle da passagem entre Mar Negro e Mediterrâneo para o controle do Cáucaso através do Azerbaijão e da hegemonia na Ásia Central. Esse é o caminho projetado por Erdogan para que a Turquia volte a ser uma potência mundial, e conforme ele vai perdendo o controle do país e sua popularidade, uma vitória na Síria vai ficando cada vez mais importante.
Quanto ao Irã, a Síria é um dos elos do “Crescente” que une Irã, Iraque, Síria e Líbano, e que constitui a zona geopolítica xiita que poderia permitir a Teerã se instituir como o centro do mundo islâmico como um polo geopolítico, reduzindo as influências de Turquia e Arábia Saudita.
Não se pode esquecer, também, da China, que dá apoio logístico e material ao governo de Assad e que incluiu a Síria na Iniciativa Cinturão & Rota. A Síria nesse projeto é uma das principais vias de acesso ao Mediterrâneo.
Décadas atrás, a Síria esteve em posição, ainda de dirigir ou pelo menos influenciar um outro projeto geopolítico interessante, o pan-arabismo ba’athista-nasserista, que visualizava a unificação do mundo árabe. Mas este projeto simplesmente naufragou e perdeu qualquer viabilidade.
Em suma, a Síria se depara com a situação típica de um país pequeno em uma posição estratégica durante uma Era de Impérios. É inviável para Damasco alcançar uma posição soberana por meio do isolacionismo, de modo que a soberania síria estará, necessariamente, atrelada à seleção de algum projeto geopolítico mais amplo que contemple também os interesses sírios.